Saturday, April 08, 2006


O Bestiário

Tornámo-nos mais desumanos com o consumismo. À medida que produzimos mais, fabricamos mais, vendemos mais, fazemos mais lixo, desperdiçamos mais, atiramos fora o que não queremos. Dantes, os animais viviam à solta e comíamos carne saudável. Era uma cadeia alimentar explicada na escola. A vaca pasta, come a erva, comemos a vaca, e a erva que a vaca comeu, etc. Hoje já nem se sabe como é. A vaca aparece aos bocadinhos no supermercado, embalada. O que come? Como foi o seu pasto? Provavelmente não foi. Não comeu pasto. Comeu gordura, porcarias baratuchas para a engordar e matar, enquanto lhe tiravam o leite das tetas. Nós comemos isso. Ficámos, ao longo dos tempos, mais gordos, mais sedentários, mais violentos. Vivemos sentados e enraivecidos. Depois tudo o resto se vê nas atitudes: empurrões e asneiras nos metros e comboios, faltas de respeito, indiferença, ignorância total. Quantas pessoas saberão, verdadeiramente, que nos transportes primeiro devem sair as pessoas lá de dentro e só depois se deve entrar? É uma questão de educação, mas é também uma questão prática. Acho eu.
Quantas pessoas saberão que grávidas e crianças têm prioridade? Não é por mais nada, mas são mais frágeis. Experimentem ir com mais uns quantos quilos na barriga, de pé, o caminho todo? Não vão sentir as vossas pernas e pés no final do dia.
A forma como as vacas são hoje alimentadas parece nada ter a ver com isto, mas tem. A forma como as vacas (e outros animais) vivem, é a forma como nós vivemos. Em quadradinhos chamados de casa, comendo pastos inquinados por químicos. Chegamos ao fim-de-semana e parecemos doidos: é o futebol, que provoca bichas tremendas na 2ª circular, são os «passeios de domingo» com aqueles condutores fabulosos que só guiam uma vez por ano e não sabem o que é uma faixa de rodagem, é a praia, que faz uma fila tão grande na ponte que ainda me faz odiar mais a ponte e o «outro lado», são os supermercados e hipermercados, que ficam a abarrotar de gente. Em suma, não há nada para fazer ao fim-de-semana. Ou se faz trabalho doméstico ou se vai fazer um destes passeios turísticos sem rumo.
Também vivemos como animais do ponto de vista dos sentimentos. Não temos pena nem dó de ninguém. A compaixão caiu em desuso, ficou confinada ao catolicismo e sabe Deus como e de que modo, porque há católicos e católicos. É natural desconfiarmos de todos aqueles que nos pedem esmola por causa de uma deficiência, ou simplesmente por pobreza. Mas não é muito natural essa atitude com toda a gente, e muito menos com quem nos é próximo. Como os burros, colocámos palas, e não vemos para os lados. Como os cães, só cheiramos o cu a quem nos interessa. Vivemos assim, na vida pessoal e profissional. Namoramos com quem interessa, relacionamo-nos com quem interessa, e é com esses que mantemos os nossos «contactos», porque o resto do mundo é um saco de lixo que não serve para nada, é um depósito de nós próprios.
Ter, hoje em dia, uma personalidade implica riscos tremendos. Implica, antes de mais, que haja vontade e determinação. E depois implica levar isso a bom porto, a bom caminho, com bom senso. O bom senso tem falhado. Achamos que querer e ter uma personalidade implica não olharmos para o lado, mas é o contrário. O mais saudável é olhar e ver. Saber que terreno pisamos e porque o fazemos. Os propósitos não são tudo. Nem os objectivos. Há percursos e percursos. Mas como vivemos num bestiário, os percursos mais privilegiados são os ínvios, e quanto mais bestas formos, mais prémios ganhamos.

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