Friday, March 31, 2006


O funcionalismo público e os funcionários públicos

Há muito tempo que venho a pensar nisto, no dito funcionalismo público e nos funcionários públicos, mas, como sempre, foi uma conversa quotidiana que ouvi que me despertou a atenção. Diversas senhoras que almoçavam perto de mim, funcionárias públicas de uma biblioteca iguais a tantas outras, conversavam acerca da vida, queixando-se. Até aqui nada de estranho, toda a gente se queixa, salvo as pessoas mais tímidas ou introvertidas, que se queixam para dentro, ou os egocêntricos vaidosos, que só falam deles próprios. Mas as queixas eram do melhor. Uma queixava-se que na cantina devia haver um complô contra ela porque lhe tinham servido, única e exclusivamente, uma fatia de carne, em vez das três a que tinha direito, por isso, já que ia ficar com fome, pediu sopa e pagou menos. O comentário é corriqueiro, bem sei, mas é assim mesmo que começa uma boa reflexão. Primeiro, cantina é cantina. É para quem necessita, não há luxos nem pedidos suplementares. Há o básico. Sobretudo, cantina é, regra geral, para estudantes, gente pobre, regra geral também. Segundo, para que quer uma funcionária pública três fatias de carne, em vez de uma, se passa todo o dia sentada? Personalidade demonstrou a empregada, que lhe negou o pedido. Ora bem. Lá porque é funcionária não tem mais direitos do que os estudantes. Volto à carga. Cantina é cantina.
As pessoas, com o tempo, foram deixando de lado os valores que distinguem o privilégio do abuso. Assim como algumas pessoas deixaram de distinguir o menos bom do abuso. Dá para os dois lados. O funcionalismo público é o primeiro caso. São pessoas ultra-estabelecidas no sistema, tipo lapas, que vão exigindo mais coisas e mais coisas, sem nunca compreenderem que têm de fazer novas aprendizagens. Chegam à menopausa e querem a «promoção a que sempre tiveram direito», com argumentos, ainda por cima estabelecidos por lei, de «contagem de tempo de serviço». Apesar de fazer sentido, não faz todo o sentido que, por sermos velhos, sejamos melhores do que os outros trabalhadores, e por isso sejamos promovidos. O estar há muito tempo num sítio não é determinante de uma aprendizagem correcta, nem é sinónimo de competência.
Mas fico ainda mais admirada com os mais novos, os funcionários públicos mais recentes do funcionalismo público. Para já, como é que entram no sistema? Nunca entendi os concursos ditos «públicos», parecem-me verdadeiras jaulas de nepotismo. Sim, entram por competência, claro. E saias curtas, amigos no sistema, etc. Tudo bem. Entrados no sistema, como é que ficam? Quase ninguém efectiva, mas eu estou sempre a ver gente incompetente a efectivar. As pessoas jovens também não são, necessariamente, as mais dedicadas ou competentes. Por vezes tratam os clientes abaixo de cão.
O funcionalismo público é, regra geral, uma proliferação nefasta de gente estúpida cravada no sistema, preguiçosa e corrupta, ultra-dependente de outros trabalhadores mais competentes. Passam o dia a «verificar ficheiros» e a «enviar faxes», coisas úteis, tão úteis quanto ler o Tio Patinhas ou jogar Tetris (também há tempo e espaço para isso). Levantar o cu da cadeira para atender o telefone é o sacrifício supremo. Depois almoçam na cantina, criticam o comer da cantina (mas almoçam lá sempre, porque é barato), querem mais comida, como se fossem atletas de alta competição com grande performance, e ainda se chateiam se não têm a tão almejada «promoção».
Evidentemente, não posso generalizar. Já fui funcionária pública, num trabalho (não emprego…) sem efectivações possíveis: professora. Muitos colegas trabalham com esforço e dedicação, novos ou velhos, mas tantos e tantos «colegas» (merecerão esse nome?) põem atestados (como a galinha põe o ovo...) semanais, sem doença assinalável que não seja um certo pecado capital chamado «preguiça», retirando o lugar a tantos colegas desempregados muito mais competentes. É isso o funcionalismo público. Mais uma vez se aplica a norma que eu e os meus amigos temos para estes casos: todas as putas têm sorte.
No outro dia, no Telejornal, passava uma notícia acerca do trabalho na restauração. O entrevistado, professor de hotelaria, dizia que a restauração não atraía os jovens porque eles queriam ser «funcionários públicos». Não estavam habituados a trabalhar ao fim-de-semana, queriam horários fixos e não rotativos. Se formos ver, tem uma certa lógica: as pessoas gostam de ter hora de entrada, hora de saída, hora de almoço e fins-de-semana. O funcionário público tem um serviço de saúde privilegiado (pelo menos a ADSE paga os óculos aos míopes, não é como o SNS, que dá uma comparticipação de dez cêntimos…). Mas penso que o senhor terá dito isso pela ideia-mestra que gere o funcionalismo público: o dolce fare niente. Não se estaria a referir aos professores, que mesmo que não façam nada convém sempre que façam alguma coisa, para não serem mortos pelos alunos, nem se estaria a referir aos médicos, que, nas urgências, não podem dizer: "Realmente hoje não estou para aqui virado." Mas talvez se estivesse a referir às senhoras desta e de outras bibliotecas.
Da minha parte, não tenho saudades de ser funcionária pública, a não ser pelo serviço de saúde (que me pagava os óculos). Gostava dos miúdos, das aulas, mas nunca gostei dos colegas (na sua maioria), nem da carreira, que acho miserável, pois trata os professores como saltimbancos sem família com papéis multifacetados, de pais, psicólogos, artistas de circo; nem de concorrer (os papéis parecem um jogo tipo Cubo Mágico). Não tenho saudades de «progredir» na carreira, porque isso simplesmente não existe. Acho que nenhum professor, hoje em dia, tem uma carreira. Tem mais um carreiro, um caminho esconso, construído a pulso. Acho os meus colegas professores – os que ainda concorrem – vitoriosos enquanto funcionários públicos, porque não se deixaram acabrunhar (ou não puderam mesmo) pelo funcionalismo público dos colegas, pela sorte das putas, pelo sistema corrupto. Para além disso, um professor que seja competente trabalha muito, mas muito mesmo, arduamente, todos os fins-de-semana, e ainda é criticado pelo «longo» mês de férias, em Agosto, quando por vezes, no(s) mês(es) seguinte(s), não é colocado, não tem direito a ordenado, como foi o meu caso. Também não há efectivações para ninguém, nem reformas. Em breve os professores serão um bando de velhos caquéticos, com Alzheimer e Parkinson, a trocarem os nomes dos alunos enquanto entregam os testes com as mãozinhas trémulas, ou perguntarão «Ai hoje é que era o teste?», como acontecia com uma professora que eu tinha, de inglês, a excelência e a competência em pessoa (assinava o livro de ponto e ia embora). Com tantos esgotamentos e depressões, como ficarão os professores? Ou melhor, como ficará o sistema de ensino, que tantos partidos políticos assumem estar assente nos «interesses» do aluno (que ninguém sabe quais são, nem o próprio aluno) e não nos do professor?

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