Sunday, March 26, 2006


Sorte e Azar

Se é verdade que alguns de nós puxamos com força a sorte ou o azar na vida, outros nem por isso, e não são por isso mais sortudos ou azarados. Alguns nem acreditam nesta premissa, acham que «é o que tem de ser». Ou, na doce perspectiva budista, «tudo depende da forma como encaramos as coisas». O que também é verdade, mas que, quanto a mim, não exclui a sorte e o azar das nossas vidas.
A começar pela vida que temos, o país, a cidade, a família onde nascemos. Na perspectiva budista (e em muitas outras, de pessoas que vêem e ouvem Jesus Cristo), tudo isso estava pré-determinado antes da nossa reencarnação, a fim de aprendermos uma «lição» qualquer nesta nova vida, mesmo sem nos lembrarmos da anterior. O que faz todo o sentido, tendo em conta que os monges budistas não fazem nada na vida, são só monges e lutam nos filmes do Jet Li, e as pessoas que vêem Jesus Cristo são tão criativas que publicam livros com relatos dessas vivências supra-normais, e têm um ouvido maravilhoso, que lhes permite ouvir Jesus quando ele diz qualquer coisa.
Eu acho que nem tudo depende da perspectiva. É verdade que mesmo azarados em muitas coisas podemos ter sorte noutras, ou ir conquistando aquilo que queremos, mas isso não faz de nós pessoas de sorte, apenas pessoas esforçadas.
Eu explico o que é sorte. É uma rapariga como a Paris Hilton, sem qualquer talento especial, ter resmas de dinheiro e ainda ganhar mais do que os pais. Aquilo que se previa ser um fracasso de gente (sem talento, sem inteligência, sem valores morais) é afinal um poço de sucesso. É sorte. Mas é óbvio que poderíamos sempre ver as coisas noutra perspectiva, e pensar que ela, afinal, é azarada, porque com tanto dinheiro não faz nada de jeito. Eu tenho sempre a impressão de que a Stéphanie do Mónaco, se não fosse princesa e vivesse em Portugal, vivia nas barracas com os seus filhos todos, cada um de seu gajo. Mas é princesa, por isso tem a sorte de poder viver como quer, com a circunstância negativa de ter de estar habituada a ver os seus talentos íntimos fotografados a toda a hora. Também não precisa de trabalhar para alimentar aquelas bocas todas, basta-lhe ir ao baile da Primavera, magra e bem vestida para ninguém falar mal. Apesar de os Grimaldi parecerem amaldiçoados, não o são. São uma família normal: passam por mortes, desastres, relações sem futuro, filhos ilegítimos. É quase uma família portuguesa. Se morassem nas barracas, ninguém falava neles, eram «normais», assim toda a gente acha que são azarados, que lhes acontece tudo. Também eles puxam os problemas e os azares, não têm mais que fazer na vida. Não têm um horário a cumprir, não têm o problema do desemprego, do sustento familiar, do pagar renda da casa, nem sequer o problema de ter casa. Quando se estala os dedos e se tem as coisas, qual é a dimensão da sorte e do azar? No entanto, certas sortes não nos impedem de viver uma vida infeliz, e certos azares não nos impedem de sermos felizes e realizados. Talvez a perspectiva conte, de facto.
Não me lembro de grandes exemplos de sorte, na minha vida. Tenho alguns, mas a maior parte achei merecidos, e todos eles tiveram o reverso, a consequência, um azar qualquer. Isso significa que pago sempre um preço. Por isso, eu considero sorte, na minha acepção: «acontecimento inesperado que traz prosperidade, sem que tenhamos de fazer seja o que for para isso, quer mereçamos ou não». Vejam se não tenho razão. O que é «merecer»? É ter de trabalhar para, fazer esforço, ter um conjunto de valores que permitam ganhar qualquer coisa. Mas se nada se fizer, e algo nos cair no colo, isso é o quê? Sorte. Óbvio. Nunca gosto que me digam «Tiveste sorte», prefiro que me digam «Mereceste isto». Ou então, num nível mais rebuscado «Tiveste sorte e mereceste», o que também é possível. Podemos merecer muito uma coisa e nunca tê-la, por mero azar.
Claro que temos sempre de fazer um percurso espiritual que nos permita valorizar o que temos, e não o que não temos nem podemos ter. A satisfação com o que somos, com o que temos é a maior expressão de felicidade. Eu, por exemplo, só sinto a felicidade entrecortadamente, exactamente porque, na minha vida, tudo o que houve de bom teve um reverso negativo, mas o contrário nem sempre se aplicou, ou nem sempre consegui aplicar (se calhar foi falha minha). Há coisas que me pareceram, única e exclusivamente, más. Há pessoas que me pareceram só empecilhos, e pouco ou nada aprendi com elas. Nem sempre sou uma pessoa construtiva, Há pessoas que me parecem tão inúteis, que é difícil imaginar a função delas. Talvez seja essa, a inutilidade.
Já fui mais optimista do que hoje sou. Dantes eu imaginava que a maior parte das pessoas era fixe, e havia umas quantas ovelhas ranhosas. Mas hoje vejo o mundo de outra maneira. Acho que por uma boa pessoa que aparece na minha vida, aparecem dez inimaginavelmente estúpidas e cruéis. Talvez estejamos a perder humanidade. Ou talvez eu tenha simplesmente chegado à idade adulta, sem sorte ou azar em demasia.
Tenho dificuldade em encaixar o porquê de, na minha vida, tudo ter tido consequências, mas não ver o mesmo na vida das pessoas que me parecem estupidamente cruéis. Parecem-me sempre pessoas com incrível sorte: têm bons empregos, têm sempre quem as ajude, conseguem manipular e humilhar o próximo sempre que é necessário. Talvez umas não sejam felizes. Mas algumas são, talvez por serem tão imbecis que se tornam inconscientes. Raramente sofrem consequências do seu comportamento. Talvez porque só vivam para elas próprias, longe da sorte ou do azar dos outros.

1 Comments:

At 3:07 PM, Blogger Thiago said...

Achei muito interessante o que você escreveu. Até parece que estava descrevendo o que eu estou sentindo!
Até mais e parabéns pelo artigo!
http://portalzan.blogspot.com/

 

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