Friday, March 24, 2006


A peça que falta

Nas nossas vidas, sentimos por mais de uma vez, que falta uma peça, inaudível, silenciosa, pacata. Uma coisa qualquer que, aparecendo, nos toma os sentidos todos, e não só alguns. Algo que nos faça escapar do barulho constante da vida mundana, que implica sofrimento, quase sempre. Para muitos, a peça que falta é o amor, para outros a plenitude de espírito, para outros o emprego ou a casa dos seus sonhos. Muitos completam faltas com outras faltas, ou responsabilizam o próximo pela falta de alguma coisa. Entristece-me isso. As pessoas que são assim são mentalmente desequilibradas. Têm namorados porque não são felizes, têm filhos porque não são felizes, têm bens materiais porque não sabem mais o que fazer. O endividamento permanente faz parte deste carácter. Ou os pais que sufocam os filhos, e os fazem viver em função dos seus próprios interesses, ignorando a dimensão humana, a pessoa do lado de lá. Parece invulgar, mas não é. Este aspecto explica a cara triste e desiludida das pessoas nos transportes. Não têm para onde ir, vivem aprisionadas nos empregos e nas frustrações pessoais. Custa-me, mas julgo que a maior parte das pessoas vive assim, pelo menos nos meios citadinos, onde a solidão faz parte do dia-a-dia e se deita connosco. Conheço poucas pessoas felizes. Muito poucas. São excepções à regra, e isso, na verdade, doma os meus sentidos e os meus pensamentos, daí que eu julgue, com bastante certeza, que a maior parte das pessoas não é feliz, não pensa muito sobre isso ou sobre as causas da suposta infelicidade/frustração diária. A maior parte das pessoas é simplesmente infeliz, e pensa, com um grau de certeza bastante grande, que se tivesse outro marido/outra mulher, outros filhos diferentes, outra casa, outras possibilidades, outro emprego, seria, com bastantes probabilidades, feliz. O que não temos é a causa da infelicidade, em vez da congratulação diária (e um bocado pacóvia, diga-se) com o que somos e com o que temos – é a teoria budista em todo o seu esplendor.
Por se concentrarem na sua própria infelicidade, as pessoas tendem também a observar a infelicidade do próximo e a tocar nos pontos fracos com força e determinação nunca antes vistas. É por isso que por vezes um grande amigo nosso nos diz: " Que cara péssima! Que borbulha horrível! Que te aconteceu?? ", com o ar mais sério do mundo. É por isso que os pais adoram dizer aos filhos: " Não consegues fazer nada. Não és capaz. Vê se aprendes. " É por isso que não há alminha no mundo que não me diga: " Tens carro, tens carta, porque não conduzes? ", em vez de " Tens carro, tens carta, não conduzes, então dá-me o teu carro, que me dá jeito ". Isto seria não só uma atitude positiva, como inteligente. Por isso aqui fica o repto lançado: quem quer o meu carro? Quem ficar com ele tem de me prometer que não me manda mais conduzir, nem se questiona mais acerca das razões que me levam a não conduzir, nem me tenta dar lições de condução. Eu não ando por aí a fazer isso a ninguém. Não digo aos meus amigos com excesso de peso: " Mas tu és doido? Emagrece mas é… ", nem digo aos meus amigos magros: " Que anorexia! Pareces um cabide, vai comer qualquer coisa! ". Se eu não digo isso aos meus amigos, porque é que os meus amigos me mandam conduzir? Preocupação com o meu futuro, é sempre o argumento. Lá vem a velha mania de as pessoas viverem no futuro, esquecidas do presente. Eu bem digo a mim própria que o que é importante para mim pode não o ser para os outros, ou vice-versa, mas nunca entendi as quinhentas mil pressões para eu conduzir. Será que por eu não o fazer o mundo fica mais pobre? Será que não conduzir é equivalente a não querer ir ao hospital tratar-me? Porque será que as pessoas gostam tanto de malucos na estrada? E eu, que tenho a consciência da minha loucura, tanto quanto possível, sou penalizada?
Isto que estou a descrever é muito estranho, mas a minha vida, que é simples e patética, parece ofender muita gente bem intencionada. Ou porque isto ou porque aquilo. Ou porque faço ou porque não faço. Conheço tantas pessoas mal intencionadas, e ninguém se chega a elas a dizer: " Ó vadia, larga o gajo que o estás a explorar!! ". É uma pena. Há uma certa falta de sinceridade em quem me dá «bons conselhos». Quando alguém vem com essa lançada, já sei que é uma pessoa frustrada à espera de me magoar. A minha fragilidade poética e existencial parece ser a antítese deste mundo. As pessoas parecem ter sempre vontade de aconselhar as outras a fazer exactamente o que elas querem, como querem, quando querem. Todos os que não cumprem isso são teimosos e desobedientes, são rebeldes, quando, ao fim e ao cabo, estão a ser eles próprios, assumindo falhas. Tenho tanta vontade que as pessoas enfiem os «bons conselhos» pelo rabo acima… É tão difícil ser pessoa, nos dias que correm.

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