Friday, March 24, 2006


A culpa das mulheres

Muitas vezes questiono o facto de haver ainda tanto machismo no século XXI, de continuarmos a achar que as mulheres não são capazes de tudo, sobretudo porque, como toda a gente sabe, ainda lhe cabe o papel principal de «guardiã» da família, de mãe, esposa, amante. Às mulheres que não são assim cabem-lhes rótulos pouco simpáticos: são mulheres de carreira que deixaram o ter filhos para último lugar, colocando os seus próprios interesses em primeiro, são mulheres que se casaram tarde (e vem a pergunta: qual é o problema dela?), ou são simplesmente rotuladas de «frustradas», de «lésbicas», sem apelo nem agravo. Por muito que eu repita, na minha cabeça, que os rótulos não fazem as pessoas, eu enquadro-me na categoria das mulheres muito mais preocupadas com carreira do que com filhos. E tenho ouvido poucas mas boas.
O curioso disto tudo é que estas ideias-chave, estes rótulos magníficos não vêm da boca dos homens, ou porque eles não pensam assim ou simplesmente porque não se preocupam com isso de ter filhos cedo ou tarde (também não são eles que têm de engordar brutalidades para carregar com bebés na barriga, nem dar de mamar). Não vejo os homens preocupados com a questão dos filhos, do tipo " Mas eu cheguei aos trinta e não tenho filhos? Que se passa comigo? Estará algo errado? Vou ser um pai velho? ". Não vejo os homens muito chateados com a questão. Mas as mulheres sim. Chateiam-se a valer. Eu digo sempre que não me chateio nada. Mas chateio. E muito. Porque raio tenho eu de ter filhos? Em que é que isso me «completa» assim tanto? E lá se ouve as outras fêmeas-procriadoras, " Um dia quando fores mãe já percebes ". A sério? E se eu não for mãe? Não percebo? Não encontro sentido existencial? Ai meu Deus, filhos para que vos quero…
Dantes era o casamento. Toda a mulher tinha de se casar. Hoje, as minhas amigas que se casam adoecem antes com um esgotamento só por causa da preparação da festa do casamento e, sobretudo, com os rios de dinheiro que gastam. Casamentos então, odeio mesmo. Não há hipótese de me verem de véu e grinalda, a menos que seja como fantasia de Carnaval. Não há hipótese de eu pagar aos meus amigos almoço/lanche/jantar só para me verem com um vestido ridículo. Não quero. Mas com o tempo, as coisas lá evoluíram e foi decaindo o estereótipo. Não temos todos de casar da mesma maneira. Há quem simplesmente se apaixone, ou viva junto, e parece bastar. As pessoas já não vêm com tretas, como a «oficialização do acto» e coisas assim. Já não temos de declarar aos outros que «somos casados».
Depois vem a questão, não sei se mais masculina se mais feminina, da dependência vs. Independência. Afinal as mulheres querem ou não querem ser independentes? Eu sei que eu quero ser. Não me agrada nada viver do dinheiro de outra pessoa, se fosse esse o objectivo ficava em casa sem trabalhar. Mas questiono muito até que ponto as mulheres querem ser independentes. Muitas querem estar «confortáveis». São essas que apostam em namorados ricos, fingem gostar deles (não custa nada, os homens deixam-se enganar bem), e depois passam a vida a lutar por uma casa maior, uns cortinados novos iguais aos das amigas, um carro, uma decoração fashion. Muito fixe, mas isso não é independência – nem casamento na acepção que lhe dou. É olhar para o próprio umbigo com um deslumbramento doentio. E nós, mulheres, estamos muito doentes. Criámos, durante séculos, armas de defesa que agora se viram contra nós, cheias de força. Criámos o mito da beleza e da estética, e vivemos em função dele. Criámos o mito do sexo frágil e o mito do sexo, que ainda é mais interessante. Durante décadas a sexualidade levou um avanço tal, que tomou as rédeas das nossas vidas. Procedeu-se a um endeusamento da mulher e da sua suposta supra-capacidade sexual, que deixava, em muito, os homens de lado. Esse mito virou-se contra nós. Queremos ser mães e queremos ser também artistas nos orgasmos múltiplos. Isso não é estranho, é difícil e um tanto irreal, dada a vida esmagadoramente cansativa que levamos. Queremos continuar a ser donas de casa exímias, como as nossas mães, mas ao mesmo tempo continuar a fazer carreiras competitivas, em que nos possamos equiparar aos homens. E já não queremos fazer isso sozinhas. Queremos que os homens nos ajudem nessa batalha do ser mulher.
Os mitos do que é ser mulher, hoje em dia, são nossa culpa também. Quisemos tudo de uma vez só, e agora não conseguimos gerir tantas das coisas por que lutámos. Ou pelo menos muitas mulheres não conseguem. Eu sou uma delas. Assumo plenamente a minha fragilidade, a minha má gestão de tantos campos da minha vida, a jogarem todos ao mesmo tempo, dentro e fora da minha cabeça. Penso em tudo todos os dias: quando me caso, como vai ser, quando vou ser mãe, porque é que tenho de ser mãe, como vou gerir isso com uma carreira na qual tenho cada vez mais ambições? Como é que depois vou gerir tantas famílias ao mesmo tempo? E já agora, porque é que esta preocupação me cabe a mim? Porque é que tenho de ser eu a «gestora», já que esse papel me chateia tanto. A explicação é que, apesar de me considerar uma pessoa inteligente (ou pelo menos sensata), fui atingida por diversos estereótipos, deixei-me influenciar pelas palavras dos «outros», aqui incluo homens e mulheres.
No meio disto tudo, os homens, que dantes ocupavam o espaço principal da casa, o sofá da sala, mandavam em tudo e tinham mulheres e filhos sob sua coacção, foram relegados para segundo plano. Não são eles que decidem por nós. Somos nós que decidimos por eles, homens educados, na sua grande maioria, por mães-galinhas, ultra-dependentes deles e eles delas. Uma amiga minha, quando se casou, recebeu do marido o seguinte comentário: " A minha mãe passa melhor a ferro ". Um dia ela agarrou nas roupas dele e respondeu: " Então leva à tua mãe". Acho os homens completamente perdidos neste emaranhado de conquistas feministas e femininas. Que fazem os homens, para além do tradicional papel de macho-reprodutor, se podemos ter tudo o que eles têm? Destituídos do papel principal da casa (ou o que assim aparentava ser!), os homens passaram a companheiros ou amigos, sem qualquer domínio sobre o belo sexo. Daí até à manipulação foi um passo. As mulheres emancipadas sabem que os homens não saem debaixo das saias das mães, não são, na verdadeira acepção da palavra, pessoas «independentes». Por isso, cabe-nos hoje o duplo papel, quanto a mim ingrato e quase incestuoso, de mãe/amante dos homens que vivem connosco. Ou então, e esta alternativa é a mais perversa de todas, cabe-nos fingir que dependemos deles para acariciar o seu lado macho e protector (hoje caído em desuso), mas na verdade não dependendo deles e apenas manipulando a nosso jeito os homens para os fins que verdadeiramente pretendemos atingir. Enquanto mulheres, esta foi a nossa pior conquista: enganar os homens de um modo ainda mais cruel do que aquele com que eles nos enganam a nós. Isso faz de nós personagens cruas, frustradas, vaidosas e fúteis. Subvertemos o sistema e fomos subvertidas por ele.

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