Friday, March 31, 2006


Match Point e a teoria do engano

Quando vi o filme do Woody Allen, Match Point, fiquei surpreendida. Não pelo filme, não pelas personagens, não pela história. Mas por ser um filme do Woody Allen assim, daquela maneira. Primeiro pareceu-me um filme barato, vulgar. Depois pareceu-me um filme maduro, mas pouco versátil. E por fim pareceu-me um filme de terror, a encenação dos cruéis defeitos da humanidade, levados ao extremo: a morte, tirar a vida ao próximo, anular um problema por via do assassinato.
Desculpem não me lembrar do nome das personagens (e muito menos dos actores). Conta a história de um rapaz pobre, mas muito ambicioso, que, a fim de levar a cabo o seu objectivo número um na vida, ficar rico, utiliza a célebre artimanha de conquistar uma rapariga de boas famílias, ou seja, podre de rica, mas ingénua e muito apaixonada.
Se fosse eu a realizar o filme, que sinceramente me entristeceu, eu punha tudo ao contrário. Uma rapariga pobre conquista um rapaz rico. Mas essa personagem também lá está, só que num plano secundário, passando depois para um plano primário. O que lhe acontece é que sofre as consequências disso. Estroina e pouco hábil nas relações, separa-se do rico e apaixona-se pelo pobre, que entretanto casara com a menina rica. Vejam, se fosse ao contrário, o impacto que não teria: menina pobre casa com menino rico por dinheiro e apaixona-se por rapaz pobre. Bonito, mas o fim teria de ser modificado. Porque o mataria ela? Certamente seria capaz, enquanto mulher, de se escapar ao maridos quantas vezes quisesse para cair nos braços da sua paixão fogosa, escondendo-a de tudo e de todos. As mulheres são o máximo.
Mas Allen não encena as coisas desse modo. É o rapaz pobre casado com a menina rica que se vê enredado no meio de duas mulheres: a legítima, que ele não ama, e que desesperadamente tenta engravidar para o «segurar» (desconfiada da verdade dos factos, ou seja, que ele tem uma amante); e a amante, ex-namorada do irmão rico da menina rica, actriz sem emprego e sem auto-estima, desesperada pela solidão e grávida do rapaz pobre. A teia de relações parece complexa mas reduz-se ao mínimo em poucas palavras: há os ricos, confortavelmente instalados na vida e sem preocupações, e há os pobres, preocupados, desesperados, ansiosos de subir na vida ou mesmo conseguir um emprego. O rapaz pobre encena aquilo a que os gregos chamavam de «hybris», ou seja, ousadia, tentativa de ultrapassar os limites do bom senso. Cai na teia do amor e da paixão, mas não com quem queria. Fica enredado nas próprias mentiras, tornando-se um incompetente no trabalho, no amor, na vida. Colocado perante a hipótese de mudar tudo isso, mas permanecer pobre, a opção dele é matar a amante e o filho que esta esperava dele, simulando um assalto. A forma fria, calculista e amoral com que o faz define-lhe o carácter: é um crápula que leva tudo ao extremo para conseguir o que quer.
Eu acho que o mundo está dividido em três partes, uma preta, outra branca, e outra cinzenta. A preta é constituída por este tipo de pessoas sem escrúpulos, que tudo fazem para chegarem aos seus objectivos: andam com quem não ama mas lhes dá benefícios, mentem, trapaceiam, são hipócritas, mas aparentam sempre a calma da amoralidade. Chamam a tudo «luta pelos interesses», mesmo que se refiram a algo tão abstracto como os sentimentos. A parte branca são as pessoas que, não tendo este tipo de comportamento e regendo-se por valores sóbrios, só conseguem as coisas por esse tipo de valores. O que significa que, muitas das vezes, simplesmente não conseguem. São incapazes de estar com alguém sem ser por amor e sentimentos sinceros. E a zona cinzenta, onde se situa a maoria de nós, é constituída por pessoas que oscilam entre estes dois comportamentos, bastante confusos, sem perceberem bem quais são os seus valores morais e que vantagens lhes dão.
No prática, um valor moral rege um comportamento. Não dá vantagens ou benefícios materiais. Permite às pessoas com consciência dormir à noite. As que não têm consciência não precisam de valores morais. Dormem bem à mesma.
O rapaz pobre não é apanhado pelo assassinato da rapariga, depois de muitas peripécias em que, pelo menos eu, torci para que ele fosse apanhado e preso, punido e saqueado daquela vida vazia. Mas essa é a grande lição do Woody Allen, a que mais triste me deixou, mas é uma lição verídica, coerente com a vida real: os maus dormem bem à noite e não são punidos pelos seus actos, não sofrem consequências. A amoralidade deles protege-os de se tocarem, de se acharem fragilizados, de pensarem «estará isto correcto?». O rapaz pobre segue a sua vida, tem um herdeiro da rapariga rica e vive a sua vida de mentiras. Cheio de dinheiro e de sucesso, apesar de ter morto uma mulher que carregava o seu filho. Chamem-lhe sorte, como diz o filme, acaso do destino, um pormenor que muda tudo a favor de um crápula. É assim a vida. E Woody Allen sabe disso.

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