Friday, March 31, 2006


Cor-de-rosa & cinzento

Adorava ser uma pessoa mais ingénua, mais cor-de-rosa. Não olhar tão desconfiada para a vida e para as pessoas. Mas também somos o que a experiência de vida e a educação fazem de nós. E, para além de nunca ter sido rodeada de perspectivas cor-de-rosa, nunca vi nada que me fizesse supor sequer que as pessoas têm boas intenções. Boas intenções parecem-me raras, escassas e quase mal-vindas, nos dias que correm. Fico um bocado triste, mas, com sinceridade o digo, não sou capaz de escrever coisas cor-de-rosa, escasseia-me a vontade para isso, até. Não tenho perspectivas luminosas e vejo sempre o copo meio vazio.
De toda a minha vida, a época que mais gostei foi a da minha infância mais recuada, quando ainda percebia pouco ou nada do que eram as pessoas. Quando comecei a perceber que os meus pais trabalhavam o dia todo, faziam serão, deixavam-me com os meus avós para não terem de pagar um infantário (para o qual não tinham posses), desmoronou-se um bocado a minha perspectiva rosa de que a vida é dar banho a bonecas e fazer desenhos. Eu gostava muito de fazer isso, mas constantemente os meus pais e avós diziam: " Quem dera ter a tua idade, não tinha responsabilidades. Quem dera ter tido a tua infância " Isso fez-me ver que nem a infância deles tinha sido muito boa nem o meu futuro ia ser cor-de-rosa. E, como se veio a verificar, o futuro que hoje é presente não é cor-de-rosa, e o futuro-futuro também não se avizinha cor-de-rosa. Mas ninguém nasce com livros de instruções especiais sobre a vida. Tudo se aprende. E há dois tipos de pessoas com vidas cor-de-rosa: as felizes e as imbecis. Há pessoas simplesmente sem qualquer dose normal de consciência. São pessoas felizes, mas arruinam o próximo. Parece-me sempre triste e injusto sermos felizes com um custo tão elevado como esse: a anulação do outro. Por isso, só me resta apostar na felicidade que considero verdadeira, aquilo a que os especialistas definem como «equilíbrio homeostático». São pessoas que mantêm o estado de coerência cerebral, independentemente das circunstâncias. Sabem que são capazes. Isso não significa que sejam sempre capazes, nem são necessariamente as pessoas que dizem «ser capazes». Voltamos à carga com os egocêntricos, que pertencem ao grupo dos que dizem sempre que «são capazes». Errar, ser fraco, reconhecer fraquezas é humano.
Com o tempo, ao crescermos, verificamos que a adolescência, por exemplo, é um período de transição complicado. A forma como lidamos com o mundo, nessa altura, define em muito como vamos ser. Os colegas trapaceiros continuam geralmente a sê-lo, durante a vida. Os colegas mais fracos terão sempre problemas de adaptação ao mundo. Regra geral tornamo-nos pessoas mais competentes, enquanto seres humanos, se o tentarmos, mas não fazemos milagres nem apagamos vivências. O cérebro regista. Como eu já disse, é a diferença entre a criança ou o adolescente que sempre teve criados para tudo e a que nunca teve. São vivências influenciadoras, embora nem sempre determinantes, de como vamos actuar na vida. Na adolescência eu tive uma noção bastante aproximada de como era a vida e quem eram as pessoas. Relacionava-me muito pouco. As pessoas não me pareciam interessantes, e tinham quase todas uma inteligência (ou esperteza) virada para o «desenrasca», ideia pré-concebida pelos pais. Lembro-me de ter uma intelectualidade quase única, que me punha de parte. Naturalmente, isso não fez de mim um génio, o que é pena. Era apenas uma inadaptada por motivos diferentes dos de alguns colegas, que se metiam na droga, ou eram instáveis de cabeça, ou tinham complicações em casa. Eu, aparentemente, tinha uma vida dita «normal» (que hoje não tenho) do ponto de vista familiar e até emocional. Mas nada disso me bastava. Lembro-me de ter essa conciência, de nada me bastar, de não querer ficar por aí, de nunca me ter sequer apetecido a «normalidade».
A chegada à faculdade ajudou muito, ensinou-me a interagir mais e fez-me cair num mundo mais frio, mas muito mais real, em que de facto eu era um número. Por outro lado, todos (ou quase todos) os meus amigos são dessa altura.
Aquilo que mais me doeu, na chegada à vida adulta – que para mim foi repentina e abrupta – foi a realidade social, a interacção falsa e descabida entre as pessoas, o ser obrigada a proteger as minhas costas em todo o lado. A gestão da vida afectiva com golpes de auto-defesa. Acho que por essa altura, já o cor-de-rosa tinha desaparecido para sempre. Acalentei, durante muito tempo, em idade adolescente e na minha fase posterior, a ideia de recompensa. Achava que, se tinha sido sempre boa aluna, ia ter um emprego estável. Achava que, se tinha sempre sido uma pessoa correcta, ia encontrar no caminho pessoas correctas. Achava que o amor ia aparecer rápido e seria definitivo, porque até aí já tinha tido desgostos de amor quanto bastasse. Mas nada foi assim. Tenho ideia que, se fizesse uma estatística, fui das pessoas mais mal sucedidas das turmas onde andei, no entanto, fui sempre a melhor aluna. Fui, muito provavelmente, a que mais demorou a arranjar trabalho (todos os meus colegas tinham boas «cunhas»). Fui a que mais demorou a arranjar um namorado decente. E, ao contrário de todos os meus colegas, não estou casada, não tenho filhos e vivo em casa dos meus pais, a contragosto, muito contrariada, porque sempre achei a emancipação não só saudável como desejável, sob todos os pontos de vista. Que se passou com a minha vida? Continuo uma intelectual com boa cabeça, mas tudo o resto sofreu um colapso, um desmoronamento, que me ensinou a manter consciente, mas desconfiada.
Não sou uma pessoa muito cinzenta, ao contrário do que possa parecer, já desiludida acho que sou um pouco, mas também não tanto como a minha escrita reflecte. Para escrever vou muito ao fundo, busco uma resposta. Acho que sempre tive o dom de ironizar a tristeza, fazer sarcasmos, para isso também é necessária inteligência e crescimento espiritual. Mas, pelo menos para mim, vida e escrita cruzam-se, interagem, e não são cor-de-rosa.

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