Saturday, April 08, 2006


A arte de não ver

Caros leitores do meu blogue, que o mesmo é dizer, caros amigos. A autora deste blogue assume-se, a partir de hoje, a pessoa mais miope de Portugal. O padre Feytor Pinto já foi operado e tem muito menos diopterias do que eu, com toda a certeza. Por isso, óculos fundo de garrafa são os meus. Se entendem alguma coisa de doenças oculares, ou, como dizem os leigos, miopia é só excesso de visão e desfoca tudo, na vista esquerda tenho 17,5 diopterias e na direita 18. Graças a Deus não vêem a minha cara de desgosto!
Se a teoria das reencarnações estiver correcta, na outra vida eu devo ter sido um pérfido homem ou uma pérfida mulher, ou então era voyeur. É que só pode. Devia ser um tarado sexual, espião de mulheres, daí ter nascido nesta vida com miopia (pobre padre Feytor Pinto!, o que terá sido na outra vida?).
Já no outro blogue eu discursei acerca da miopia e dos miopes. Normalmente são pessoas tímidas, escondidas na tristeza de uns óculos grossos. Só há pouco tempo se começou a olhar para a questão estética. Dantes, não havia nem um apresentador com óculos, excepto o Carlos Cruz e o Fialho Gouveia. Mas no Telejornal não. Há bem pouco tempo tínhamos a Alexandra Abreu Loureiro, que eu adorava, com as suas quatro diopterias (sim, um miope sabe sempre a miopia dos outros miopes) expostas ao público, num belíssimo par de óculos de massa. Agora já vemos na rua muita gente que expõe a sua «doença». As lentes de contacto foram uma bênção, mas também só foram feitas para alguns sortudos: as pessoas sem alergias, as que podem usar lentes, os miopes fraquinhos. Pessoas como eu só podem usar lentes incomodativas, e claro, importadas. E lentes de contacto têm grandes inconvenientes: utilizadas durante muito tempo provocam queratites, conjuntivites, problemas diversos.
A miopia está associada a uma inteligência elevada. A miopia alta, claro. A partir das cinco diopterias as pessoas seriam génios. Infelizmente, não é assim. Há muita gente cegueta e estúpida. Isso é mesmo não ser bafejado pela sorte. Mas esse é um dos mitos dos miopes, de que são miopes porque estudam muito. Mas eu tenho miopia desde os cinco anos, e na altura do meu primeiro par de óculos nem sabia ler.
Também há o mito contrário, de que os miopes são retardados, atrasadinhos mentais. De facto, com os pares de óculos que usávamos há uns anos, o aspecto não diferenciava muito do de um atrasado mental. Eu tenho fotografias em que estou tão mal que ninguém dava nada por mim. E sofria-se muito mais. Parecia que todos os óculos faziam dor de cabeça, havia erros crassos, e as armações não facilitavam. Havia também o problema da incompreensão alheia. Ninguém percebia que um míope tinha uns óculos feios, mas tinha de os usar ou ficava ceguinho. Toda a gente gozava. Na escola era do pior, eu ouvi de tudo: "És ceguinha? Vês-me?", isto quando não me roubavam os óculos e andavam a brincar com eles. Com o tempo eu defendia-me: "Partas pagas, e olha que os meus óculos não foram baratos!" Acabava-se logo a brincadeira.
Raramente um míope aprecia o mesmo tipos de saídas que as outras pessoas. Sempre odiei discotecas porque não conseguia usar as lentes de contacto com o fumo. E sempre odiei praia. Não era igual às outras pessoas, quando saía da água não via ninguém, e geralmente ia parar a chapéus-de-sol que não eram os meus, com pessoas que não eram os meus pais e me olhavam de lado: "De onde raio veio esta míope? Não quero um filho assim." Lembro-me com grande precisão da primeira ida ao oftalmologista, a minha mãe teve o desgosto da vida dela quando soube que eu era míope. Nunca entendi se era por ir passar pelo mesmo que ela, se era pelo dinheiro que ia gastar, ao longo da vida, comigo. Mas acho que eram os dois. E com razão. Um míope gasta como ninguém. Então se usar lentes e óculos é sempre a gastar. E se for um doente «progressivo/hereditário», como eu, é todos os anos a deixar dinheiro na óptica. Uma óptica nunca vai à falência com miopes «progressivo/hereditários». Ter uma óptica ou uma funerária parecem óptimas ideias.
A vida quotidiana não ajuda a miopia. Passamos horas a ler, a escrever, a ver televisão, a fixar o computador, muitas vezes com pouca luz. E passamos horas mal sentados e sem tempo para ginásticas (isso fica para outro capítulo, mas a minha escoliose não é melhor do que a minha miopia). Cada vez temos de ler mais e preencher mais e mais papéis, com cruzinhas, bolinhas, números e letras pequenas. As pessoas deviam ter mais compaixão por pessoas como eu e como o padre Feytor Pinto. Afinal, somos pessoas de inteligência superior confinados a esta dura deficiência.

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