Wednesday, April 19, 2006

" A meta do homem é ser inimigo de si próprio – o homem e a sua sombra são uma só coisa. " (Friedrich Dürrenmatt, Labyrinth, stoffe I-III: Der Winterkrieg in Tibet)

A coisa mais certa na vida de todos nós e a morte. Sabemos que não vale muito a pena pensar nisso, nem stressar. Vamos morrer e acabou-se tudo. Pelo menos para mim, a quem a simples ideia de vida para além da morte, paraíso e inferno fazem comichão só de pensar. Explico mais uma vez. A ideia de todas essas coisas, quanto a mim, deve-se à nossa própria cobardia para aceitarmos que não somos eternos e que, muitas vezes, não temos recompensa nenhuma no bem que fazemos e também não somos punidos pelo mal.
Muitas vezes a minha mãe me dizia, mesmo em criança, que eu iria pagar por todas as minhas faltas. Ideia católica ou laica, a minha mãe tinha toda a razão, como todas as mães. Na verdade, paguei bem caro as vezes que lhe critiquei a comida que fazia, a decoração da casa, a falta de esforço para mudar a vida que tinha. Na realidade, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. O preço foi alto demais e eu nem o suportei. Por vezes, sinto tanta insustentabilidade na minha vida, que acho estranho andar por aqui, ainda. Hoje sou eu que faço a comida em casa, nunca apreciada que também nunca fui grande cozinheira, não tenho casa para decorar nem espaço para as minhas coisas, e se calhar não me esforço o suficiente. Tudo o que criticava na minha mãe é aquilo que hoje sou. Se eu confessasse isto a um padre, certamente ele me diria que eu estava isenta de pecado, visto ter assumido e confessado a minha culpa, e até expiado os meus pecados, ao fazer, anos a fio, serviço doméstico detestável e a ter uma vida em casa que pouco ou nada tem a ver com aquilo que considero ser a minha identidade, enquanto pessoa. Mas não é assim tão simples, sobretudo porque fico a pensar que se eu tive retorno em tudo de mau que disse e fiz, porque é que algumas pessoas nunca tiveram retorno negativo em coisas que, aos meus olhos, são muito piores?
No outro dia, finalmente esclareci isto com a afirmação de uma amiga minha acerca das minhas 29 primaveras: ela disse-me que o mal e o bem não existem um sem o outro. O que é verdade. Mas verdade é também que tudo depende de uma coisa chamada perspectiva, que por sua vez depende de diversos factores: da nossa educação, dos nossos valores morais, de como queremos levar a nossa vida, e finalmente de quem somos, na nossa essência. Porque há muitas coisas que somos e ninguém nos ensinou a ser. Podemos ser honestos numa família de ladrões, só porque essa «é a nossa natureza», e uns perfeitos sacanas no meio de gente honesta. Creio que em parte as coisas são redutíveis ao cérebro, aos químicos, e noutra parte, bem mais subjectiva, ao que somos, no seu conjunto. Por este motivo eu não me admiro nada que muitas pessoas com a minha vida nunca vissem nada como punição ou simples consequência, e apenas como coincidência. É talvez a minha maneira de interpretar a realidade. Em todo o caso, é sempre a minha maneira de interpretar a realidade.
Por exemplo, não habito muito em zonas cinzentas. Sou uma pessoa que age correcta ou incorrectamente. Não fico tempos infindáveis a pensar, a desculpar-me (ou melhor, fico mas sei que não adianta). Se tenho desculpa tenho. Se não, não tenho. Comigo sou implacável. Com as outras pessoas não, porque definitivamente não sei por que valores se regem. E às vezes não consigo perceber. Simplesmente não percebo e dou-me por vencida. Tenho sempre imensas questões: como conseguem as pessoas dormir à noite com tanta sacanice, com tanta falta de amor ao próximo? Por que raio de princípios se regem as pessoas que namoram/casam por interesse? Como é possível que, num mundo tão complexo e indefinido, uns trabalhem tanto para encontrar o amor, e outros simplesmente dispensem essa busca, baseando-se em coisas mais fáceis e simples, como o dinheiro, as viagens, as ajudas de custo, sem a mínima preocupação com o que é correcto, com o que pode ou não magoar o outro?
Decididamente estou perdida. O caminho certo é saber que as coisas existem, podem fazer mal à saúde e ignorá-las. E eu não consigo fazer isso. Não sou de ignorar, de me resignar. «Foram as circunstâncias que me levaram…», «foi a possibilidade que…». Não foram nada. Mentira da grossa. Então todos fazíamos asneira. Não temos todos as mesmas circunstâncias, nem as mesmas possibilidades. Isso é verdade. Não é verdade que sejamos obrigados a errar. Ninguém é obrigado a andar com ninguém, que eu saiba.
O que define o tempo que passamos aqui, vivos, de pés assentes no chão? Não sei. Mas deveria basear-se num argumento objectivo. Deus olhava cá para baixo e dizia: "Fizeste 350 maldades, dessas 300 foram conscientes e 50 dependeram das circunstâncias. Vives 50 anos." Seria objectivo e concreto, este argumento. Mas vêem porque é que eu não acredito em Deus? Que sabe Deus sobre nós, para se dar ao luxo de levar tanta gente boa, até mesmo na Páscoa, quando devia estar ocupado a ressuscitar o filho pregado na cruz, pelos nossos pecados? Deus devia ser engenheiro informático ou matemático, ou mesmo médico. Devia saber fazer médias aritméticas. Contar os cigarros que fumámos e os copos que bebemos. Mas não. Morre gente de cirrose hepática todos os dias que nunca tocou em álcool. Morre gente de cancro do pulmão que nunca fumou. Os outros andam por aí, ocupados, metidos no vinho e nos cigarros. Morre tanta gente jovem que só fez o bem. Deus leva tantos jovens. E anda por aí tanta gente amarga e farta de cá andar, a empestar a vida aos outros com sacanices de primor e distinção. E dormem à noite tranquilos. Respiram sem dores, dormem sem dores, acordam bem dispostos, não sofrem cansaço, enxaquecas, depressões, esgotamentos, psicoses, dores de dentes, hérnias discais, dores lombares, mononucleoses, dermatites, conjuntivites, pacreatites e afecções na vesícula.
Se Deus fez esta criação foi cru nas ideias. Criou homens e mulheres recheados de sacanice. Houve pouca doçura no trato da espécie e nas relações dentro da própria espécie. Estamos sempre empenhados em aniquilarmo-nos uns aos outros, sem dó nem piedade. Como os komodos. São os animais mais parecidos com o homem: perigosos, silenciosos, rastejantes, cruéis, prontos a destruir todas as outras espécies. Que me pareça, Deus não foi nada perfeito.

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