Saturday, May 13, 2006


As viagens

Não sou tão prendada como a Patrícia Patrícia, por isso não sei fazer fotolog, mas é pena, muita pena mesmo. A viagem a Barcelona foi um estoiro (ou estouro) em cansaço e diversão, quando ficamos naquele estado-coma maravilhoso a suar em bica por todos os lados, a carregar água, mas a ver tudo avidamente, como se fosse a primeira vez. O que eu gostei de Barcelona…acho que a elegia como cidade para viver, apesar de Roma ser mais apaixonante para mim, talvez por defeito de formação académica, Roma ficou-me na memória pelo Coliseu e pelas colunas de Trajano, pelos gémeos alimentados pela loba (Rómulo e Remo), pelos imperadores loucos como Nero, que mandou incendiar a cidade. Mas Roma é confusa, tão confusa que mete dó. É preciso sorte para não se ser atropelado seja pelo que for: camiões, pessoas, bicicletas, turistas de todos os países. E é sempre assim em todas as alturas do ano: há que fugir para os arredores, que nem sempre são melhores. Não imagino Roma com carrinhos de bebé, sacos de compras, crianças pela mão. Roma é turística, e só se apresenta recatada para o clero. Além disso, conheci Roma em trabalho, não faço ideia de muitas coisas de que me falam como «pontos a visitar».
Barcelona parece perfeita para viver uns tempos. As coisas têm, pelo menos, ar de funcionarem. É uma cidade endinheirada, também, e isso conta muito. O metro é gigante e quem lá vai e anda de transportes tem de estar preparado para suar. Há escadas por todo o lado. Os meus quatro dias de férias ficam marcados por escadas, escadas, escadas e mais escadas. Mas com grande satisfação posso dizer que foram férias tão gigantes quanto as escadas, pelo menos em valor afectivo. E isso é que atribui o cunho à viagem. Nunca gostei de coisas insípidas nem pessoas insípidas que copiam as viagens dos outros. Uma viagem é única em trajecto, aventura e companhia. Sobretudo na companhia. Eu nunca quero visitar os lugares que os outros já visitaram, por muito sensacionais que sejam, deixo-os para o fim da lista. Parece que o facto de os outros contarem as coisas com emoção transfere para mim esse sentimento repetitivo de «é muito bonito». Claro que inúmeros amigos me contaram inúmeras histórias acerca de Barcelona e eu queria visitá-la há muito muito tempo. Mas guardei-me. Se alguém meu amigo tivesse ido, recentemente, a Barcelona, eu já não ia. É como me contarem um filme. Eu já não vou ver se me disserem «tens de ver, é fantástico». Eu já não leio um livro se me disserem «tens de ler, esse livro mudou a minha vida». Sou por natureza uma individualista.
Em tudo conta a circunstância. Roma teve uma circunstância. Barcelona teve outra. E, em 2003, S.Tomé teve outra muito diferente. Em 2004 a Madeira. E, há muitos anos, em 1999, Londres também me marcou muito.
Para além das circunstâncias, o que mais marca as viagens que fazemos são as companhias que escolhemos. E eu sempre fui uma privilegiada, porque sempre tive bons companheiros de viagem. Escolho-os a dedo, confesso, salvo excepções de pessoas que, por algum motivo me foram impostas e de quem não gostei. Mas foi raro isso acontecer. Gosto de viajar com amigos empenhados em ver, aprender, conhecer. Ninguém gosta de ficar com o cu gordo sentado a ver televisão o resto da vida. Certamente a vida é mais que isso, mas infelizmente nem sempre nos é possível concretizar as viagens dos nossos sonhos, graças à falta de dinheiro, de tempo e até de espaço para enquadrar as viagens nas nossas vidas, muitas vezes patéticas e solitárias, muitas vezes rodeados da mesquinhez do próximo e nada mais. Nesse campo, não ter a possibilidade de viajar torna-nos mais fechados. Pensamos que só existe Portugal e o resto é notícia de televisão.
Nas viagens, as pessoas que estão connosco são importantes, mas de igual modo as pessoas que encontramos no país de destino também acabam por nos marcar e deixar saudades. O povo de S.Tomé, da ilha das Rolas, era tão fantástico e simpático, tão humilde que impressionava. A afectividade brotava de uma maneira simples. Havia a angústia da pobreza material, ali encarada como um mal necessário, constante, e totalmente consciente. Mas havia a certeza da riqueza espiritual, do património outrora português, da mestiçagem, das danças, gastronomia e arte africanas. Deixou-me saudades os pretos me tocarem na pele para ver se eu era verdadeira e para eu dar sorte, simplesmente porque era branca e mulher. Pareceu-me uma coisa nova para quem vive encaixotado num apartamento nos arredores de Lisboa a vida toda. Eu era especial. Marcou-me o menino que nos fez uma vénia para passarmos. Esse momento deixou-me lacrimejante, e eu não sou nada lamechas nessas coisas.
Em Roma marcaram-me as japonesas gostarem de fotografias ao lado dos cadáveres apanhados pelo Vesúvio, em Pompeia, dos cães andarem atrás de nós, à cata de comida. Marcou-me a confusão, o caos, mas também a simpatia e a delicadeza das pessoas que tentavam entender o que eu dizia, perante a minha frustração de não entender a língua italiana. Gostava muito de atravessar, diariamente, o Vaticano, muito de manhã, em que só eu, as freiras e os polícias andavam ali. Quando chegava ao Arquivo Secreto, por mais cedo que fosse, havia lá sempre um estrangeiro ou um padre que chegava primeiro do que eu. Gostei muito de oferecer bombons aos senhores do Arquivo Secreto, porque apesar de não falar a língua deles, a simpatia é claramente universal e vence a barreira da formalidade, que tanto prezamos em casos destes.
Não gosto de viagens em série, em fotocópia. Embora entenda que aqui em Portugal as coisas estão estruturadas para o país parar em Agosto (nem há onde fazer compras, o talho fecha, a peixaria fecha, os cafés fecham, etc.), adoro tirar férias quando ninguém tira (se puder), os preços são mais em conta e não está toda a gente caída na República Dominicana, no Brasil, na Madeira, no Algarve ou, em caso de extrema pobreza, nas praias da linha e da Costa da Caparica.
Sempre gostei do caminho que os outros não fazem. A menos que seja um caminho claramente errado, vale sempre a pena a diferença. A alegria de ser único nas nossas escolhas, inimitáveis pela sua própria natureza de partilha e de sedução. Se formos todos para os mesmos sítios, acaba por ser melhor andar em centros comerciais, todos ao molho, visitar as lojas que nos aconselharam e comprar em série.
Por Maio ser o mês dos amigos (assim eleito pela minha pessoa), Maio é o mês da doçura e das viagens fantásticas ao paraíso que, bem lá no fundo, existe dentro de todos nós. Paraíso que não se pode copiar, mesmo que se tire fotografias aos mesmos sítios, mesmo que se filme os mesmos sítios, mesmo que se visite as mesmas coisas. As pessoas que nos acompanham não são as mesmas, as coisas não têm para nós o mesmo valor afectivo. A repetição tornou-se um mal, porque deixamos de nos enredar na cultura de um país para ficarmos enredados em turistas, máquinas fotográficas e de filmar, e recordações iguais umas às outras. Porque será que nós, seres humanos, gostamos tanto disso? Gostamos tanto de ir às mesmas praias, nos mesmos dias, de ir a Punta Cana, Benidorme, Palma de Maiorca, quando temos mais dinheiro ou nos sujeitamos mais ao endividamento? Porque raio é tão caro ir a sítios lindos como Bazaruto, Cambodja, Ilha das Rolas, Kilimanjaro? Já agora, sabem onde fica? Eu só sei porque gostava de lá ir, sou uma nódoa a geografia. O meu mapa são os sentimentos. Só fixo muito bem um lugar se me apaixonar por ele, senão esqueço-me, confundo-o, fixo a minha atenção noutras coisas, noutras histórias.
Fico triste quando me tentam copiar uma viagem. Parece quando na escola me roubavam um trabalho, uma ideia, um lápis de cor. Porra! Uma viagem é uma viagem. É única. Não se repete. Conhecem o Botulho? Fica em Tondela, Viseu. Raras pessoas conhecem o Botulho, é o destino de férias menos procurado e, quanto a mim, tal como a Sertã, é radioactivo, ninguém com a cabeça no lugar vai a esses sítios gélidos no Inverno e tórridos no Verão. Mas é o melhor lugar do mundo, bem como o Caramulo (esse é mais turístico), não só pela paisagem, mas pelas pessoas, pela comida, pela minha amiga Ângela. O Botulho fica no coração, com o seu conjunto de habitantes tipo árvores dos patafúrdios, preparados para coscuvilhar e mandar bocas a quem não põe os pés na igreja nem nas procissões, como eu. O Botulho não tem nada para ver. São casas, um adro, uma igreja, um café, um supermercado onde não gosto de ir porque me conhecem. O Botulho é uma viagem única e não aparece em nenhum roteiro turístico. Por isso, as viagens únicas são aquelas que não estão nos roteiros turísticos. São as viagens dos nossos corações. As viagens únicas fazem-me com amigos, com amor, com espiritualidade e suor. Estão pejadas de problemas e de conflitos, de cansaço, de muita água, de pneus furados, de metros e autocarros cheios, de pés doridos e partidos, de gente descabelada, de conflitos linguísticos. Não interessa Roma, Amsterdão, Berlim, Barcelona, Madrid. Interessa com quem vamos e por que vamos. Interessa por quem vamos. Se por nós, se pelos outros, se por ninguém, se para contarmos que fomos, se para gastar dinheiro, se para contabilizar viagens e dizer «tenho muita experiência de vida», se para visitarmos os mesmos sítios que as outras pessoas visitam, «só porque sim». Decididamente, tudo tem uma razão. Uma viagem não é um acaso.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home