Tuesday, June 06, 2006


O dia, o mês e o ano

Se para muitos de nós os dias, os meses e os anos se sucedem, por muito que assim seja, sabemos sempre que há um ou outro que não esquecemos nunca. Pode ser o dia dos anos, porque gostamos de fazer anos (eu gosto do meu dia), pode ser o dia do nascimento de um filho ou do nosso casamento (essas datas não tenho, mas tenho memorizada a data de nascimento do meu sobrinho). Pode ser o dia em que começámos a namorar.
Este mês para mim é desastroso. Junho é o mês da morte da minha mãe. E todos os dias me fazem recordá-la, talvez hoje com mais clareza do que nunca, pela dureza que estes últimos anos me têm trazido, em dor, em mágoa, em consequências desastrosas.
Já tive várias conversas acerca disto com muitos dos meus amigos, e tenho sido certa naquilo que penso: o que receio que aconteça é mesmo o que acontece. A minha vida tem tido sempre essa história. Por isso, ou tenho costela de bruxa e sei o que se passará, pelo menos na minha vida, ou simplesmente porque penso acontece, puxo os acontecimentos (mas se fosse assim, as coisas boas também teriam de acontecer, certo??). Na minha vida, as coisas boas demoraram sempre muito mais a acontecer do que as más. Ou talvez seja a minha experiência, a minha subjectividade a falar. Talvez seja uma sensação apenas, e as coisas boas estejam equiparadas às más. Como pessimista absoluta, eu só penso nas coisas más. Acho sempre que as boas ainda não começaram a acontecer, ou começaram devagarinho.
Aquilo que para uns seria mais um dia quente de Junho, para mim foi o dia da prova de Português dos meus alunos do 9º E, à qual eu faltei por estar no enterro da minha mãe. Razão sobejamente dura para ter marcado toda a minha vida com ferro em brasa.
Às vezes sinto-me uma mulher muito queixinhas. Sinto que me queixo de tudo aos amigos todos. Quando era católica queixava-me tanto a Deus que Ele deve ter ficado surdo (ou mandou Jesus, o filho, ir falar com a Solnado…). Mas já concluí que não expresso nem metade do que sinto, o que me leva a crer que não sou queixinhas (um queixinhas de verdade hiperboliza a realidade tanto quanto pode), sou muito sensível. As coisas, por mais pequenas que sejam, doem a sério. Parecem pontas de cigarro a fazerem feridas na minha pele. Neste caso na alma.
Para além de toda a tristeza que a morte inflige e do luto, que, além de duro, é prolongado ad aeternum, há mudanças estruturais na vida que nunca mais esquecemos. E há coisas que achamos que nos acontecem aos dez anos, mas que aos vinte e quatro já não, como ficarmos a tomar conta das pessoas. Mas eu fiquei. Eu que sempre fui uma rebelde dada às lides intelectuais, nada vocacionada para o mundo doméstico (a minha casa é a prova disso), de repente vi-me a braços com uma casa tão caótica quanto a minha própria cabeça, que vagueou muitos e muitos anos por mundos estranhos (há fotografias dessa altura que eu nem me lembro de ter tirado, há coisas que não me lembro de ter feito e há pessoas que preferiria não ter conhecido).
Enquanto o meu pai achava graça a tudo (talvez como meio de se inteirar daquela dura realidade), contando piadas, às vezes hilariantes, acerca de vizinhos que falavam da minha mãe ou faziam pedidos estranhos, eu estava arrasada, tão arrasada que recorri a ajuda dita «técnica», para ver como era olhar um luto de fora, para ver o que dizia o psicólogo e o psiquiatra acerca do assunto. Na altura fiquei surpreendida por ser vista como uma pessoa «solitária e muito séria», coisa que eu nunca achara sobre mim própria, porque estava sempre a brincar e, embora gostasse muito de fazer coisas sozinha, também adorava companhia. Fiquei surpreendida de me dizerem que eu deveria abranger no meu núcleo mais amigos. E fiquei muito surpreendida por ambos me acharem inteligente, ao ponto de ser capaz de escrever uma tese ou escrever um livro, ou dar aulas numa universidade. Eu não me achava capaz de nada disso, e não me acreditava capaz de escrever uma tese, embora já contasse com alguns livros na gaveta.
Os anos que se seguiram a 2001 foram arrasadores, desconexos, muito tristes para mim. Descobri o significado da palavra «desemprego» com todas as letras (que só há bem pouco tempo mudou). A palavra «espera» também se tornou sinónimo de «infinita». A palavra «medicamento» tornou-se sinónimo de «diário, quotidiano». A palavra «amigo» tornou-se imprescindível. Mas descobri outra coisa: que tinha entrado na idade adulta e estava sozinha na minha descoberta do que era ser adulto. Ser adulto implicava, acima de tudo, não permitir que os outros nos espezinhassem. E isso eu deixei muitas e muitas vezes e, como a minha aprendizagem não está completa, continuo a deixar. Não fico alegre. Fico triste com a minha cobardia, ainda hoje. Antigamente atribuía essa cobardia a ingenuidade – fazia sentido – e à minha fragilidade por causa do luto. Mas hoje em dia, que sou mais forte e mais adulta, atribuo à minha burrice o facto de dar (ainda) muita confiança às pessoas, de achar que a opinião delas pode, sequer, ser importante (mas quando e onde é que me convenci que certas opiniões são importantes??). Estou ainda presa a essa armadilha da baixa auto-estima, e da imagem que em casa têm de mim, como serviçal obrigatória, substituta indigna da minha mãe, porque não faço nada tão bem como ela – o que é uma boa verdade, mas também é bem verdade que não quero fazer nada como ela, nem quero fazer as opções dela, e por isso, quando me sinto a experienciar coisas semelhantes, que me deixam infeliz e perdida, fujo a sete pés.
Aprendi que muitos dos nossos monstros não se podem enfrentar de uma vez só. E que muitos exigem que nos afastemos e sejamos nós próprios, independentemente de os outros gostarem ou não. Um dia, numa sessão, a psicóloga perguntou-me porque é que eu me torturava a ir a almoços e jantares que detestava, se odiava isso. Com a idade que já tinha, eu era obrigada a ir, na realidade tratavam-me (e tratam) como se fosse criança. E eu sempre odiei isso. Por isso, de há uns anos para cá, tenho assumido completamente que não posso gostar das coisas só porque os outros querem. Nem fazer porque os outros querem. Claro que tenho imensos problemas…mas não será este o caminho em direcção a mim própria, a ser o que sou como quero? As pessoas dão-lhe o nome de «mau feitio» ou de «orgulho» ou «falta de paciência», mas onde raio está escrito que temos de aturar pacientemente ofensas contínuas ou rebaixamentos injustos? Toda a minha vida tive de ouvir que era menos por ser mulher, por ser mais nova do que o meu irmão, por não ter emprego, por não ter vida própria…mas que raio de argumentos são estes? Nada disto tem a ver com falta de inteligência, falta de capacidades, falta de força de vontade, falta de trabalho. São apenas circunstâncias. Terei pedido para nascer mulher, irmã mais nova? Terei pedido para perder o emprego de que tanto gostava e ter escolhido uma profissão azarada e sem futuro? E o que é falta de vida própria? Seria mais respeitada se fosse casada e tivesse filhos, ou teria exactamente o mesmo papel na família? Nada disso redimiu a minha mãe, casada e com filhos, de ter de, única e exclusivamente, tratar dos outros sem respeito nenhum por ela própria. Se eu tiver de morrer por um sonho (como ela), que seja o meu, aquele que eu escolhi, e não o papel que os outros escolheram para mim.
Todo o meu percurso actual tem a ver com a morte da minha mãe. Antes disso, o meu percurso tinha a ver com terminar o curso, ter um namorado, sair de casa. Se a minha mãe fosse viva, muitas coisas não se teriam passado, essencialmente graças à força de espírito dela, que tudo aplacava. Como ela não está comigo, sem ser por sentimentos, eu tive de fazer esforços brutos, diários e persistentes, para poder simplesmente ser quem sou e conseguir, com quase trinta anos, sair da minha casa, em direcção ao que quero. Não sei se é em direcção à normalidade – para mim, isso só existe na vida de algumas pessoas, aquelas que nunca passaram por nada parecido ao que eu passei ou por nada que as fizesse reavaliar o que são – mas tento sempre que não seja em direcção oposta ao que mais desejo.
Com o passar dos anos, tornei-me muito mais radical com as pessoas. Distingo-as melhor, engano-me menos. Mas continuo a enganar-me muito, continuo a suportar muita arrogância, muita falta de coração, muita imbecilidade e muita traição. Faz parte da vida – agora eu sei isso – da vida de quem se esforça pelos trilhos da dignidade e não sai fora desse mundo repetitivo do amor e da honestidade. Estou certa de que o mundo não é justo. Para mim, teria sido muito (mas muito) mais fácil aprender todas as lições da vida com brandura, doçura e sem sentir a morte por perto. Estou certa de que um caminho fácil teria feito de mim uma outra pessoa, se calhar com outras opções de vida. Mas o esforço também me moldou o carácter.
Diz a minha amiga Sofia, não podemos achar que temos valores mais válidos do que as outras pessoas. Só porque colocamos o amor em primeiro lugar, isso não faz de nós pessoas melhores. Mas não posso concordar com a Sofia. Quem põe o amor em primeiro lugar, como ela e eu sempre fizemos, para mim tem mais valor, mesmo que sofra mais. É o meu grande julgamento da humanidade. Sou adulta e posso fazê-lo. Todos os que agem abaixo disso, estão a apostar na mediocridade do conforto, do dinheiro, dos interesses múltiplos. Pode ser um caminho de felicidade, todavia para mim é ignoto e é tabu. Não quero conhecer esse caminho. Parece-me sobejamente fraco. E quem se apercebe, como eu me apercebi, de que a vida é muito curta, muito dura, e escapa-se em segundos, não pode dar-se ao luxo de se desperdiçar em coisas menores. Infelizmente, eu desperdiço-me a pensar nelas.
Passados estes anos todos, quase tudo o que eu previa (e mais temia) aconteceu. Quase tudo o que a minha mãe previa (e mais temia) aconteceu também. E os conselhos da minha mãe foram preciosos, porque me orientam todos os dias, e me ensinam o valor do instinto, do apuramento do sexto sentido, que por vezes nos defende das ameaças mais estranhas.
Gosto muito daquela teoria estupenda que os actores têm, a fim de justificar quem fica no meio artístico: eles dizem que os actores maus são levados pela maré e só ficam os bons, só esses são reconhecidos, com o passar dos tempos. Gostaria muito que com as pessoas e as atitudes fosse o mesmo. Mas muitas vezes parece-me que esta teoria é contrária à realidade: parece-me que ficam as piores pessoas à tona e as outras simplesmente desaparecem ou não são valorizadas, ou morrem. Tenho tantos exemplos disso. Parece que, depois da morte da minha mãe, acabou o tempo da redenção e do perdão do ser humano, e no entanto, o mundo já devia ser assim antes da morte dela. Eu é que não sabia.

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