Sunday, July 16, 2006


As lições

No outro dia encontrei as minhas agendas da Mafalda, bem antigas, que tinham escrito o meu ideário aos nove, dez anos, os meus ideais de vida. Passavam todos por ser boa pessoa, boa filha, boa neta, boa irmã, ser católica e rezar a Deus, ter amigos. Também passavam por estereótipos engraçados, como ser magra (embora nessa idade eu fosse esquelética). Ao ler as minhas capacidades melhores e piores nas notas da escola guardadas religiosamente pela minha avó, revejo-me inteiramente nelas. Uma nódoa a música e a trabalhos manuais. Muito boa a matemática e inglês, sempre dispersa a português. Razoável nas outras todas.
Lembro-me que nesse tempo tudo era mágico, um fim-de-semana, ir às compras com o meu pai (muito melhor do que ir com a minha mãe, porque ele sempre foi muito mais flexível comigo), ir à praia, ir de férias, ter amigos lá em casa. Nesse tempo eu era ansiosa e nervosa, mas o resto compensava a minha maneira de estar. Depois com o tempo fui perdendo essa estratégia de coping. Na adolescência foi tudo mau e complicado. Nada compensava. Tudo era solidão e angústia, e a morte chegou a tornar-se uma saída possível. Nesse tempo eu julgava estar presa ao mundo de uma única maneira: escrevendo. Mas eu tinha corpo e tinha alma, as coisas eram bem mais complicadas do que isso.
Ao longo da vida eu maltratei muitas vezes o corpo, como inúmeras pessoas: falta de sono, má alimentação, más posturas. Fiquei transformada na típica intelectual, míope e torta de costas. Tratei o corpo como o invólucro daquilo que tinha de mais valioso: o espírito. Alimentei o espírito até à exaustão, tentando estudar e conhecer o mais possível. O ponto de viragem deu-se na faculdade, quando me comecei verdadeiramente a interessar pelas pessoas e pelo dom da amizade, o que para mim veio a ser uma revelação para toda a vida, que me iluminou caminhos e mostrou percursos.
Um dia cheguei a um ponto da minha vida em que entendi na perfeição que o binómio corpo-alma é essencial. Se maltratamos o corpo estamos a desrespeitar o que temos, e a parte psicológica tem de estar equilibrada. Já tive ataques de pânico, de ansiedade, de nervosismo, de cansaço extremo, de tudo o que se possa imaginar, e em todos eu concluí a mesma coisa: levo tudo a peito. Tudo para mim é uma luta de vida ou morte, uma guerra sem tréguas. Não tenho calma para servir a vingança num prato frio, quero-me vingar logo das pessoas e dos acontecimentos funestos, e como não posso enfureço-me e esperneio. Isso tem consequências na minha saúde que são terríveis: fico cansada de lutar antes de começar a luta. Fico derreada, e como tal perco muitas batalhas assim. Porque não tenho calma. Durante anos a minha vida familiar, caótica e confusa, perturbou tudo isso. Se eu chegava zangada a casa, mais zangada ficava, mais triste, mais deprimida. Mesmo com um emprego que gosto e com um namorado que gosto, estou sempre em esforço, em luta desregrada.
Há pouco tempo descobri a consequência óbvia de tudo isso de uma causa não óbvia. Assimilei os comportamentos da minha mãe. Terei assimilado a sua doença? O meu medo terrível do sofrimento pavoroso do cancro da mama não é disfarçável. Tremo da cabeça aos pés quando tenho de ir a exames, quando algum médico suspeita de alguma coisa. Não se trata do «que fiz eu para merecer isto?» (todos sabemos que coisas más também acontecem a boas pessoas, isto julgando que sou boa pessoa), trata-se do «que ando eu a fazer à minha vida?». E o que eu tenho andado a fazer é a chatear-me demais, não estabelecendo fronteiras distintas entre o que eu sou e é correcto para mim, e o que os outros são e é correcto para eles. Costuma-se dizer que tem problemas no peito quem leva tudo a peito ou que o cancro da mama está associado a um grande desgosto. Esse padrão assusta-me. É o meu. Sou uma desgostosa que leva tudo a peito.
À beira de um desses exames chatos que as fêmeas em risco fazem, sinto-me a tremer que nem varas verdes, mas aprendi, até aqui, uma preciosa lição: os hipócritas podem ficar com bons empregos e ter sorte na vida, mas nunca vencem. Ser vencedor não passa por aí. Ser vencedor é não nos chatearmos com eles, é não ficarmos em dívida com ninguém, e não permitir que os outros nos digam o que devemos ser ou fazer. E tratar todos os dias da nossa saúde, sem deixar que pessoas arrogantes e malcriadas nos arruinem a vida. Talvez a vida seja uma roleta russa e me calhe a mim a triste sorte de ser escolhida para passar por uma doença tão incapacitante e que afecta tanto a auto-estima, porque mexe com muitas coisas, entre elas a aceitação prévia de que fomos feitos para a morte e o percurso de luta por vezes acaba aí, e não numa vitória sobre a doença. Quando o meu avô estava doente, uma enfermeira disse à minha avó: " Nunca vi nenhuma doença que seja boa ". A verdade é essa. Mas também como se diz muitas vezes, não há doenças há doentes. A verdade é que há doentes soberbos e destemidos, como a minha mãe, pessoa que honrava sempre as suas lutas. Se o mundo fizer sentido, a força com que somos desafiados é um reflexo do que somos. Por isso, é bom sermos moderados, para sermos moderadamente desafiados pela doença, com umas febres, umas gripes, umas dores de cabeça e nada mais. E morrermos, mais não seja, felizes e completos.

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