Sunday, July 30, 2006


Os sofás da vida

Eu digo sempre e nunca me arrependo: uma vez sentados, ficamos a engordar e nunca mais nos levantamos. Os sofás da vida são vários: o da nossa casa, o da casa dos outros, o da nossa profissão, o do sistema social, o da nossa condição física e psíquica. Sentamo-nos, acomodamo-nos, borrifamo-nos e está a andar.
Vamos por partes. Do sofá particular para o sofá geral. O da nossa casa. Acomodamo-nos à situação que temos facilmente. Se nunca puxaram por nós, se nós não puxamos por nós e se nunca ninguém o fizer, um dia chegamos a velhos e não sabemos que roupa vestimos, onde guardamos as coisas e o que é ferver água. Nem sequer nos apercebemos que o leite vir por fora não é «o que deve acontecer». O sofá da casa dos outros é bem mais complexo e infindável. Nem todos o temos, nem todos nos sentamos nele, mas a verdade é que a maior parte das pessoas o faz. Se pudermos ficar entretidos com os favores alheios, até ficamos. Se pudermos pedir boleia ao vizinho todos os dias, até deixamos o carro à porta estacionado e poupamos algum dinheiro (a gasolina está cara, gastamos a do vizinho). Na profissão vai dar ao mesmo. Se pudermos sobrecarregar algum paspalho com trabalho fazê-mo-lo, melhor ainda se nós ficarmos com os louros e ele nunca lucrar com isso. Que mania esta de sermos competentes…
O sofá do sistema social tem a ver com este, mas é mais generalizável. Habituamo-nos, acomodamo-nos até mesmo à injustiça. Se nunca nos tocar, ainda bem, não temos de nos chatear muito, só toca aos outros. Se nos tocar vemos em breve que reagir é um desatino, um stress e muitas vezes não a leva a nada. Infelizmente. Fartamo-nos de pagar impostos, pagamos, pagamos, pagamos, mas tudo nos custa uma fortuna – para que servem os impostos então, se nem à saúde grátis e rápida temos direito? A saúde devia ter sapo ADSL, sobretudo para quem mais precisa. Então um bebé pode ficar horas numa sala de espera? Então um velhote doente, com reforma miserável, muitas vezes a viver sozinho e sem ajudas, pode ficar o dia inteiro no centro de saúde? Eu pago fortunas por tudo o que faço: dentista, oftalmologista, ginecologista. Mas eu posso pagar. No entanto, nem sempre foi assim. Lembro-me de um dia ter ficado a tarde toda à espera de uma vacina para o tétano que durou 5 segundos, dada num gabinete cheio de velhos a tossir. Neste país morre-se de infecções hospitalares por falta de gestão: ninguém arranja os ares condicionados, sem os quais é impossível estar num hospital. Eu sei que isto é o estado das coisas, este não é um sofá confortável. É um sofá roto, miserável e atrasado no espaço e no tempo. No entanto, muitos de nós estamos acomodados a ele, por falta de tempo, de energia, de dinheiro para combater as salas de espera e as urgências, onde eu praticamente já passei um fim-de-semana à espera de ver o meu pai.
E se se tiver dinheiro? Gasta-se. Gasta-se tudo. Em consultas, internamentos, seguros de saúde, e em coisas estúpidas, que se pagam sabe-se lá porquê, só porque é «política da empresa», como refeições a doentes terminais e psicólogos que nunca aparecem.
A minha filosofia é que quem se acomoda num sofá acomoda-se em todos. E quem não se acomoda num, não se acomoda nos outros. Uma pessoa que se acomode num casamento por dinheiro também se acomoda numa profissão por dinheiro. Um pessoa acomodada num sistema de saúde miserável deve ter uma vida miserável, que não lhe permite fazer mais nada senão acomodar-se. E neste caso, não vejo como possa ter culpa da sua acomodação, visto que é uma questão de sobrevivência. Já o casamento por dinheiro…
Uma pessoa trapaceira é sempre uma pessoa trapaceira. Quem é mau em casa é mau no trabalho, e vice-versa. Isso topa-se bem na cara das pessoas. Não posso acreditar que quem se case sem amor possa ser bom profissional. Desculpem a analogia, devem pensar que nada tem a ver. Mas tem. A ética e a moral percorrem a vida. Quem se acomoda a um sofá, acomoda-se a todos com facilidade. Quem é interesseiro, arranja amigos interesseiros que lhe corroborem as opções de vida, assim como eu arranjo amigos de acordo com os meus valores morais (embora nem todos corroborem as minhas opções, e ainda bem). Uma pessoa desonesta não vai arranjar amigos honestos que lhe recriminem as atitudes. É natural que um ladrão tenha amigos ladrões, assim em vez de roubar uma casa, juntam-se e roubam um banco. Ou seja, quanto mais parecidos os nossos amigos forem connosco (e mais de acordo estiverem com os nossos valores) mais fácil se torna fazermos as coisas em conjunto. A grande falha da humanidade é que às vezes o mal vence, ou seja, o ladrão convence o honesto – e mais fraco – a ser rei. E lá vão os dois, certamente com motivações diferentes, roubar o banco. O ex-honesto corroborou as opções do ladrão tomando as mesmas. Temos corrupção ao mais alto nível.
O exemplo é estúpido e quase hollywoodesco, eu sei disso. Mas escutem. Acontece todos os dias. Há pessoas manipulativas que nos fazem tomar as opções mais estranhas, na nossa vida. Até a sermos corruptos. Até a sermos ladrões. Até a nos sentarmos em sofás que outrora negaríamos veementemente sentarmo-nos. Porque é que eu acredito tanto que pessoas corruptas dão cabo das outras e que as «outras» nunca dão cabo das corruptas? Porque sou uma pessimista. Raramente, ao longo da minha vida vi um corrupto a ser punido como deve ser e a pagar pelo que fez. É o sistema. E estamos sentados nele.

1 Comments:

At 5:27 AM, Blogger Brisa said...

Brilhante metáfora!

 

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