Monday, August 07, 2006

Os irmãos

Não conheço nenhum filho único que goste de ser filho único. Durante a infância, deve ser o paraíso: brinquedos, alimentos, chocolates é para o «menino» ou «menina». Mas ao crescermos apercebemo-nos das desvantagens terríficas que é estar sozinho na família: cai sempre em cima de nós, não há com quem partilhar as chatices de ser educado por adultos, não podemos reclamar, não temos nunca a nossa opinião corroborado dentro de casa, e, mais tarde ou mais cedo acabamos mesmo por ouvir o célebre «não há mais ninguém para tratar disto». Deve ser uma seca… Está bem que há irmãos e irmãs que também não são grande apoio, mas a regra é dividir o mal pelas aldeias, e se só existe uma aldeia, não há divisão possível.
Ter muitos irmãos também é uma desvantagem quando se é mais pequeno: onde está a atenção a que tínhamos direito? Os nossos brinquedos? O nosso espaço? Essa dimensão dilui-se, a menos que os nossos pais sejam ricos e possam arranjar quartos separados, a regra é que tudo passe dos mais velhos para os mais novos.
Eu gostava de ter mais irmãos ou irmãs, mas na minha casinha minúscula seria um horror. Na realidade, irmãos e irmãos, por muito traquinas que sejam, aparam-nos os golpes de cairmos de cu, em muitas coisas da vida.
Se é verdade que nunca aprendi a andar de bicicleta porque o meu irmão me atirava dela abaixo e me gozava por causa das quatro rodinhas, se é verdade que o meu carrinho de bebé serviu de trotinete (mesmo comigo lá dentro) e que eu demorei a aprender a andar porque levei alguns «empurrõezinhos» contra a parede e me estatelei no chão, que nunca tive brinquedos inteiros a menos que os escondesse (e mesmo assim perco a conta de quantos ursinhos e bonecas ficaram em posições pornográficas uns em cima dos outros), se é mentira que roupa do meu irmão passasse para mim porque normalmente vinha pejada de ranhocas estrategicamente colocadas nas mangas, também é verdade que tudo isso são pequenas dificuldades que nos preparam para a vida. Afinal que graça teria ter aprendido a andar sem uns empurrões? Que graça teria ter as bonecas inteiras, sempre na mesma posição, ou o macaco de pano e o boneco careca não terem a cara toda rebentada? Provavelmente o meu irmão também não terá achado muito graça ao facto de eu lhe ter pisados os soldadinhos e os carros miniatura inúmeras vezes, totalmente «sem querer».
Também aprendi coisas fantásticas com o meu irmão. Por exemplo, a arrotar mesmo sem beber coca-cola. Hoje em dia é de uma utilidade fenomenal, sobretudo para assustar o meu sobrinho, que também arrota, mas sem querer. Hoje em dia, arrotar para nós os dois é uma forma de socialização. Os macacos catam-se, nós arrotamos. Aprendi a roubar pastilhas elásticas na mercearia e a cantar músicas das Doce. Com o meu irmão aprendi a partir óculos e legos, a atirar molas da janela e bolinhas pelo canudo, a gozar os velhos só porque são velhos.
Além disso, ter irmãos a viver connosco é ter a mesma educação e base familiar, logo, podemos gozar com as mesmas pessoas, os alvos acabam por ser os mesmos. Há pessoas de família que são verdadeiros emplastros. Mais tarde ou mais cedo, os problemas são os mesmos: perder um amigo, um pai, a mãe, outro irmão, os avós é para os dois (ou mais) irmãos, nunca só para um. Portanto, estamos muito menos sozinhos do que os filhos únicos. E provavelmente teremos sempre uma diferente noção de família, porque na insegurança que é viver, há sempre um apoio. Em parte, deve ser por isto que quando há fraternidades, ou mesmo dentro da igreja, e seja qual for a hierarquia, somos todos «irmãos». Representa o laço mais profundo que pode existir entre seres diferentes. Os padres e as freiras só chamam «pai» ao senhor lá de cima, e provavelmente «mãe» à Virgem Maria (coitado do José…), mas entre eles e mesmo aos fiéis nomeiam-se «irmãos». É talvez o apoio que existe – ou é suposto existir – que define esse estatuto.
Quando somos pequenos gostamos sempre de chamar ao nosso melhor amigo, ou à nossa melhor amiga, irmão ou irmã. Parece que a proximidade das brincadeiras, da maneira de estar e de viver nos faz nomeá-los desse modo. Gostamos de acrescentar filhos aos nossos pais. E muitas das vezes esses amigos marcam-nos, acompanham-nos a vida toda, e em miúdos parecem-nos bem mais fixes do que os nossos irmãos de sangue.
Deve ser muito lixado ser filho único…olhem o caso do Herman José, vejam como ficou: mimado, ricalhaço, parvo. Se tivesse tido um irmão, pelo menos, teria levado naquela cabeça de modo a nunca ter a tosca ideia de pintar o cabelo de louro aos cinquenta anos. Agora é que ele quer parecer um alemão??
Há o caso contrário. O Robin Williams. Filho único, conta muitas vezes em entrevista que, como não tinha com quem brincar, inventava personagens e assim se fez actor. O Fernando Pessoa deu em escritor.
E depois há casos de amores quase incestuosos, como o de Nietzche pela irmã e o da Florbela Espanca pelo irmão.
Os meus amigos filhos únicos são mais solitários e amargos. Mais carentes. Sentem-se sempre pessoas pouco apoiadas, pois não tiveram com quem partilhar doçuras e amarguras da vida. É importante termos alguém que nos parta a cabeça, nos esfole os joelhos, nos mande do triciclo abaixo e nos ensine a arrotar. Isso prepara-nos para o que a vida realmente é: uma tremenda queda, mas que é sempre possível de ser amortizada por um divertido arroto.

2 Comments:

At 5:34 AM, Blogger Brisa said...

Eu não sei o que é não ter irmãos, ou ter apenas um ou dois... Sei só o que é ter uma equipa de futebol, em momentos em que cortamos na casaca dos ausentes, gritamos a nossa inconcordância, clamamos por atenção exclusiva do pai ou da mãe, ficamos enciumados porque achamos que o outro filho é mais desejado que nós. Mas nada se compara aos momentos em que estamos separados. É como termos esquecido um braço ou uma perna algures por aí. Aqueles estupores que nos roubam a coxa do frango assado e não ligam ao que dizemos porque somos mais novos, estão cravados na nossa pele e fazem-nos sempre tanta falta. Eu tenho muitos, muitos. Mas é como a minha mãe diz - temos tantos dedos na mão, mas se faltar um...

 
At 2:47 PM, Blogger fercris77 said...

Ter irmãos é uma aprendizagem constante. Ao longo da vida vamos descobrindo mais e mais razões para estarmos com eles e darmos valor ao que são, porque a nossa biografia é também a deles, e vice-versa. Os nossos irmãos são biógrafos confidentes, são a nossa memória, a nossa história de vida.

 

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