Monday, August 21, 2006


Com quem andamos

Lamento a conotação negativa desta expressão. Geralmente com quem andamos é com quem dormimos, mas aqui utilizo a expressão em sentido lato. Com quem andamos não é com quem nos cruzamos, mas sim, com quem nos fazemos acompanhar por escolha própria. E de quem gostamos, naturalmente. Estou a excluir, deste modo, todas as pessoas que não nos dizem nada, porque se não nos dizem nada, não andamos com elas. Quer dizer, seria lógico que assim fosse. Mas não é.
O grande problema das pessoas com quem andamos é não serem escolhidas a dedo, com um critério definido à partida: valores, sentimentos e proximidade. São as três coisas que eu acho que aproximam as pessoas de bem. As pessoas que não são de bem aproximam-me por dinheiro, hierarquia, objectivos. Diferente, não acham? Muita gente confunde-se. Por isso há casamentos cuja base é tudo menos válida. Mas resultam na mesma, e eu não sei explicar isso, porque toda a vida vi gente com casamentos fracassados que se amava a sério. Talvez o não-amar seja uma espécie de seguro: se não se está envolvido não custa magoar, não se é magoado, não há preocupações em demasia.
Seja qual for o carácter de uma relação, o que aproxima as pessoas são, inevitavelmente, as três coisas que supracitei. Se alguém não tem uma base de valores que se coadune com a minha, que vou fazer? Vou ser amiga de um ladrão, se não concordo com o acto de roubar e o considero ignominioso? Vou ser amiga de um mentiroso, se acho a mentira altamente reprovável? A fronteira é sempre a moral. O pior é fazer o despiste. Quem são estas pessoas?? Muitas vezes é difícil identificá-las claramente. Somos enganados anos a fio por alguém que se mascara habilmente com os nossos valores possuindo outros, de baixa estirpe.
Sentimentos. Mesmo que alguém tenha valores semelhantes aos meus, sem afinidade de sentimentos, sem gostar das pessoas, não tenho por onde me aproximar. O coração fala e dita regras desconhecidas. É importante gostarmos das pessoas, mas devia haver uma regra que ditasse que só nos podemos apaixonar por quem tem os mesmos valores do que nós. Devia haver uma lei que nos proibisse de nos aproximar de ladrões, mentirosos, gente inescrupulosa e arrogante, snob e palerma. Muitas vezes o amor é cego porque queremos, também nós, ser cegos. Quem não vê o próximo é porque também não se deve ter visto a si próprio, nunca deve ter mergulhado bem lá no fundo. O medo de nos olharmos solicita e selecciona o medo de olharmos o próximo. Assim, prendemo-nos a pessoas com pouco conteúdo e muita ganância, que nos aleijam, mesmo quando não nos apercebemos. A mentira é um grande aleijão, caso não saibam, e embora muitos de nós prefiram viver numa redoma, dentro de uma mentira, não posso considerar isso um modo de vida correcto.
Afinidades. Transcende valores e sentimentos. São coisas que nos unem: experiências comuns, leituras comuns, interesses comuns. De nada vale procurarmos que os nossos interesses sejam iguais aos dos nossos amigos ou amados, podem ser muito diferentes, mas alguns interesses comuns têm de existir. Que brincadeiras podemos fazer com alguém que não partilha do nosso sentido de humor? Pintar as unhas? Que leituras, que filmes, que DVDs partilhamos? Tem de haver uma base. Uma pessoa que não acha graça a nada sem ser a si própria não tem estirpe. Tem de haver graça, piada, tragédia, comédia para partilhar, histórias de interesse. Namorar e ter amigos não é só aparecer para pedir coisas, quando nos lembramos que estamos em crises sentimentais, espirituais ou de trabalho. Se sabemos dizer «preciso disto», também temos de saber perguntar «precisas de alguma coisa?». Tanto os namorados como os amigos, se gostarmos deles, têm de ser surpreendidos sem ser com reprimendas. Palavras doces são requeridas, apoio moral e presentes surpresa, mesmo que não sejamos dados a isso. Mais não seja…aparecer! Um namorado não é um trolha qualquer a quem pedimos boleia e ajuda quando precisamos, ou nos dá dinheiro, ou que nos telefone para tirarmos dúvidas ou que nos convida para passeios com amigos de quem nós nem gostamos. Esse grau de utilitarismo tem de ser ultrapassado, pessoas não são objectos. Talvez um dia criem robôs para fazerem isso tudo e as mulheres estúpidas parem de explorar homens tolos ou vice-versa. Namorar é muito mais do que isso. Até ter amigos é mais do que isso e não exige sexo. Sexo sem afinidades, valores, sentimentos também deve ser bom…mas a vida inteira?? Se as pessoas baseiam a vida em boas casas, bons carros e uma casa de férias estão a reduzir-se à sua dimensão de trolhas. Agarrem num livro dos budistas tibetanos e leiam-no do princípio ao fim. Talvez não fiquem a acreditar na reencarnação, mas pelo menos passam a acreditar que somos bem mais do que esse mescla torpe de desejos caprichosos.
Se descêssemos, a fundo, ao mais fundo de nós, não iríamos gostar. Lá no fundo somos crianças a correr para a casa-de-banho com vontade de fazer xixi, puras, genuínas, salutares, sem as máscaras estúpidas das calças vincadas, das gravatas, dos saltos altos, dos decotes, dos bens materiais. Queremos atenção e diversão, sem qualquer outro interesse de maior nos que nos rodeiam. No outro dia fiz a experiência de me tentar lembrar qual foi a última coisa que me deixou mesmo mesmo feliz, sem amarras nem sanções. E foi pintar. Muito antes de escrever, eu pintava imenso, em miúda, riscava e desenhava muito, e isso fazia de mim uma pessoa muito feliz.
Claro que não pode ser sempre assim. Tem de haver consequências assinaláveis naquilo que fazemos, dizemos, criamos até. E quem vive sem consequências, algures no seu materialismo? De que é feito? Temo que para estas pessoas a criança dócil e inteligente já não esteja acessível. Com essa perda, adeus sensibilidade. Choramos pela morte do nosso animal de estimação mas não somos capazes de ser honestos nas outras coisas todas. Talvez atinjamos objectivos elevados, como trabalhar numa empresa, ter uma boa casa e não precisarmos de andar de transportes públicos porque nos vão buscar a todo o lado. Talvez consigamos enganar os tolos que pensam que somos boas pessoas e temos muitas capacidades. Todavia, esta é a morte certa do espírito. Não esperemos nunca que a iluminação esteja ao nosso alcance, porque não está. Ao fundo do túnel está um vazio indissolúvel. Sem a companhia de quem amamos e de quem nos ama, estamos reduzidos à nossa dimensão mais pequena, somos crianças órfãs para sempre. Como dizia Fernando Pessoa, estamos reduzidos à nossa «orfandade existencial». Isto não depende de sermos mais ricos ou mais pobres, mais letrados ou iletrados, mais ou menos brilhantes. Depende de uma coisa chamada sapiência. Alguma coisa eu tenho de ter aprendido com os budistas nestes últimos dias…

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