Monday, August 21, 2006


Um dia na minha vida

Como num filme de David Lynch, há dias tão surreais que davam uma história. Podem-me chamar fútil à vontade, mas para mim um dia em que, chegada à estação, se parte a tira da sandália é um dia surreal. Para a maior parte das pessoas seria uma chatice dos diabos, atrasava para o emprego, obrigava a um desvio, ou não, porque ninguém morre por andar o tempo todo com o pezinho de lado. Só que eu acho que as nossas vidas comuns são uma grande palermice. É como dizem os budistas, vivemos fechados em hábitos materialistas e mesquinhos, a nossa vida decorre sempre igual, e as únicas preocupações que temos são para onde ir nas férias e como melhorar o rendimento escolar dos nossos filhos para serem doutores (ou nem isso…). Pouco mais nos preocupa para além da poupança, da reforma, mesmo que nem saibamos o que fazer quando formos reformados. Toda a vida é vivida em função dos saldos, do ordenado, da casa que queremos adquirir e da altura ideal para termos filhos. Poucos de nós arriscamos o que verdadeiramente nos apaixona. Até mesmo o amor é posto de parte, preterido em louvor do conforto e do materialismo. Somos todos uns mentirosos de merda.
Eu acho que há uma certa autenticidade em ter dias surreais. Naquele dia, acordámos para a tolice, a parvoeira, a estupidez na sua expressão mais carinhosa e douta. Não damos uma para a caixa, não dizemos coisa com coisa, não estamos bonitos, nem bem penteados e ainda por cima a puta da sandália fica sem a tira e andamos quilómetros com um pc às costas à procura de uns chinelos baratos porque não se pode gastar muito dinheiro com coisas destas (e também eu quero uma casa, qual fulana mesquinha, mas se vocês conhecessem a minha vida na casa do meu pai também quereriam pular a cerca de vez, acreditem…). É a história da minha vida. Costumo dizer que ainda bem que sou uma perfeita anormal, porque se não, que triste e desanimadora seria a vida, logo eu que acho que ter casa e carro não é tudo.
O dia não seria um episódio do Lynch se fosse só a sandália, porque depois fui centro comercial de Alvalade fora a arrastar o pé à procura de um sítio que vendesse qualquer coisa que eu pudesse mesmo calçar. O que havia barato era 38, «um pé gigante para as portuguesas, vocês não são cavalonas como as holandesas» (sic, senhor da loja), ou 35, que só dá no pé da Teresa, que dizia que tinha pezinho de boneca (e o resto parece que também era, cérebro incluído). Por isso optei pelo 37, uma chinela daquelas ridículas, mas que as senhoras gostam muito, com aquela tira nojenta entre o dedão do pé e o resto dos outros dedos, não sei bem para quê… Depois de comentários bacocos do senhor «já tem sandálias para a praia», «venderam muito bem este ano», etc. lá fui, muito a custo, mudar os sapatos estragados (não comprem na Bata, custaram 25 euros e não duraram nada, agora não há ucraniano sapateiro que faça milagres…) na escada do centro comercial. Depois fui buscar fotografias a uma loja cujo sistema Multibanco falhava ininterruptamente. Paguei em dinheiro as fotografias, lá se foi o numerário do dia…Finalmente a caminho da BN, as dores no dedão do pé eram insuportáveis. Sempre que tenho dores nos pés, sejam que dores forem, de andar muito, bolhas, feridas, unhas, etc. penso que a vida é injusta. Tanta gente com sapatos desconfortáveis e sem queixas, e eu que só calço coisas simples já andava a coxear Lisboa inteira. Fui aos indianos no metro, lá me lembrei de uma casa, e comprei um 38 que me serviu, sem tiras no dedão do pé. Cor-de-rosa. É bem feita para não ser parva, numa altura em que não posso gastar dinheiro cá estou eu a desembolsar o vil metal ininterruptamente para chinelos… Como diria uma senhora velhota que se sentou ao meu lado no metro, «o dinheiro é pesado e sujo e as ciganas escusam de pedir porque eu não tenho trocos e elas andam mais bem vestidas do que eu». Está dito. Para além de andar quase sem sapatos, hoje foi dia de aturar malucos sem papas na língua, gente metediça e fotógrafas sem dedinhos para o Multibanco. Foi dia de comprar merendas a correr no supermercado, para mim e para a Patrícia, mas a coitada ficou retida em Alverca, sem comboios que a trouxessem e com uma neura desgraçada, a comer a sua salada de tomate, que era também para dividir comigo. E eu almocei sozinha no Saldanha a minha merenda e parte da dela, com dois sumos. A Patrícia contribuiu para a minha solidão e para a minha engorda sem querer.
Desculpem-me se os vossos dias são sempre assim. Os meus não. Trabalho sozinha num gabinete e vejo sempre as mesmas coisas e as mesmas pessoas. Diversifico o meu trabalho a escrever o blogue e a ler outros livros porque não aguento a pressão de mudar minúsculas e maiúsculas oito horas por dia, mas melhor isso do que aturar crianças malcriadas por uma miséria. Estamos sempre insatisfeitos…Chego a casa e compro o jantar porque não tenho paciência para a cozinha, simplesmente não fui feita para aquilo. Suponho que se tivesse filhos a minha vida seria uma correria louca e muito mais chinelos e sandálias se estragariam, mas não tenho. Chegar a casa é ouvir as histórias do meu pai, é ouvir uma voz na minha cabeça a dizer «faz os exercícios físicos que te mandaram» (deve ser o personal trainer himself), é ir um bocadinho ao messenger afogar mágoas com a Patrícia e discutir filosofia com o Pedro, ver a Ophra e filmes DVD roubados ao meu irmão.
Na verdade, apesar da minha rotina, sou das pessoas que conheço com menos monotonia na vida. Acordo sempre com uma disposição diferente, o meu pai tem sempre histórias toscas diferentes umas das outras (varia consoante a namorada que escolhe e as pessoas a quem dá boleia), vejo sempre coisas estapafúrdias e surreais, almoço no jardim com a Patrícia, como se fôssemos sem-abrigo com posses ou mulheres das obras, enquanto homens de bicicleta nos gritam piropos ordinários, volto para casa e durmo sempre de forma diferente, com uma disposição diferente e sonhos diferentes. Afinal, onde pára a minha monotonia??
Num mundo emoldurado pelo cinismo, tenho uma vida bastante autêntica. Reduzida no espaço, é certo, e no conjunto de actividades, mas nem todos temos vidas brilhantes e actividades fantásticas. Costumo dizer que escrevo o que posso e sei, nunca disse que ia descobrir a cura para o cancro (quem dera ter capacidades para isso…). Por isso, já não é mau, porque a minha vida é bastante coerente em muitos pontos (não em todos, certamente). Não trapaceio nem sacaneio ninguém, tenho algumas capacidades que uso (outras nem por isso), mas ao menos sou iluminada pela coerência do amor e da verdade. Não serei uma budista, mas vou no caminho da sabedoria das coisas simples…

2 Comments:

At 9:25 AM, Blogger Brisa said...

oh... eu calço o 38 e não sou uma cavalona holandesa - só tenho pouco mais de metro e meio.... :((

 
At 2:42 PM, Blogger fercris77 said...

Deixa lá, porque eu nesse dia só encontrei malucos, não leves a peito...

 

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