O que acontece
Eu costumo dizer que vivemos todos numa redoma. A sociedade impele a isso, porque estamos sempre a correr para pagar contas, fazer tudo a tempo e de forma perfeita. No meio disto tudo, às vezes pode haver muito pouco daquilo que somos. Porque se há pessoas que apreciam esse stress, outras há que o detestam e se esgotam a tentar espartilhar-se nas opiniões dos outros.
Eu detesto muitas coisas. Mas a principal, que hoje em dia não sinto tanto como nos anos que ficaram para trás, é a falta de liberdade. Uma vida alucinada para podermos fazer tudo num dia, ganhar o suficiente ao final do mês, pagar contas e ainda sermos filhos, pais e netos de excelência é dose…
O que eu detestava na minha vida, e que ao longo do tempo tenho vindo a conseguir mudar, era o facto de estar sempre a correr, fazer o que não gostava, ganhar uma miséria que não me permitia sair de casa, e ainda chegar a casa sem paciência para ouvir histórias mirabolantes sobre coisas que não não me diziam respeito. Tenho de confessar que sou uma pessoa ansiosa, muito ansiosa, e com muito pouca paciência, mas nos últimos anos fui obrigada a uma paciência de Job. Sabem quem era Job? Aquela figura bíblica ultra-sacrificada a quem Deus castigava por tudo e por nada e estava sempre a entregar trabalhos e mais trabalhos sem lhe dar descanso. Nestes últimos anos tenho-me sentido uma pessoa sem descanso. Vem uma atrás da outra e parece-me que estou sempre rodeada de trabalhos complicados, para além do espartilho do que os outros querem de mim, normalmente em doses cavalares. Por isso eu tenho querido da vida algumas coisas em doses cavalares, também, porque me chateia muito ser Job.
Tudo para dizer que não cresci, nestes últimos anos, a pensar que as coisas acontecem aos outros, bem pelo contrário. Também não me acontece tudo a mim, no meio do azar sou muito felizarda, mas o contacto com o exterior (e com o interior) e com pessoas muito diferentes de mim, ajudou-me a entender que vivemos muito com a espada de Dâmocles sobre a cabeça, mas não temos essa noção. Em nada vemos as verdadeiras consequências. E tudo, por mais pequeno que seja, tem consequências. Até respirar. Mas não vemos assim. Não achamos que lá porque apanhámos um escaldão aos quinze anos vamos ter cancro de pele aos trinta. Mas é possível – embora pouco provável – que tal aconteça. Isto só em relação a nós próprios. Na nossa relação com as outras pessoas, ainda achamos menos válida esta premissa. Não achamos que estacionar o carro em segunda fila tenha consequências para além de uma multa (às vezes nem isso). Por exemplo, não fazemos questão de pensar que uma ambulância assim não pode passar, ou uma pessoa de carrinho de bebé. Portanto, é indiferente se prejudicamos cinco, dez ou vinte pessoas. Prejudicar em nosso benefício é a atitude comum. Eu generalizo essa atitude chamando-lhe corrupção (quando não é inadvertida, porque senão será inconsciência).
Eu costumo dizer que, se Deus existir, é um grande filho da puta. Raramente, na minha vida, vi pessoas a serem castigadas de forma exemplar. Não vale a pena castigar Job se não se castiga exemplarmente pecadores muito piores. Em que estava Deus a pensar? Pelo que entendi, Deus desafia aqueles que podem seguir o caminho que Ele quer, portanto, os iluminados, os que estão dispostos à ascese espiritual através da Fé, que os leva ao paraíso. Então quer dizer que se eu for muito estúpida, não sou desafiada porque não entendo desafio, e, como consequência, também não sou castigada? Então é isso. As pessoas estúpidas nunca são castigadas porque não percebem o desafio de Deus ou da própria vida.
Na nossa sociedade tendemos a ver os obstáculos como inultrapassáveis, sobretudo se forem questões que mexem com a nossa sobrevivência, como a doença, por exemplo. Mesmo que sejamos pessoas positivas, não há hipótese de não nos questionarmos «porquê eu?». Há anos atrás, eu vivia em redomas desse género, que em parte fui perdendo, em parte fui ganhando. Achava, por exemplo, que só os fracos e as pessoas doentes sofriam de depressão. No entanto, um dia chegou a minha vez e eu não achei piada nenhuma em acordar todos os dias com ataques de pânico, sentir-me sempre uma desgraçada, estar sempre tristíssima, e achar que daquele buraco eu não saía mais. Ainda hoje tenho vestígios desse tempo, no meu corpo e na minha alma, e não acho piada nenhuma.
Na minha vida, não tem facilitado muito não acreditar em nada. Considero-me uma hiper-realista. Tenho a noção de que tudo pode falhar sempre, a todas as horas, e nunca me entusiasmo muito com as vitórias. Sou muito moderada com as coisas boas e um tanto exagerada nas más, porque as acho sempre muito prolongadas, eternas. No fundo, doem mais.
Claro que me custa enfrentar a vida de costas tortas, miopia alta, quistos mamários: Não valho mais do que um camelo de pernas partidas. Mas raios partam, quantos de nós não somos vesgos e doentes e escrevemos livros, criamos teorias? O Borges não era cego? O Hawkins não é aleijado? A Frida Khalo não teve poliomielite e um acidente grave e pintou uma obra de excelência, também ela marcada por esse sofrimento atroz? Se Deus existe, porque é que os escolheu a eles para escrever, investigar, pintar? Quantos fundadores de ordens religiosas não eram aleijados? Quantos santos? Inácio de Loiola era coxo, tinha uma perna mais pequena do que outra. O sofrimento também aguça o engenho, ou obriga-nos simplesmente a um esforço redobrado e inclemente de sobrevivência??
Há duas teorias possíveis: a dos carrinhos de choque, que implica acreditarmos no caos como pano de fundo e na ordem como algo meramente aleatório; e a das consequências, que era bom que existisse, que implica acreditar que as coisas (boas e más) têm retorno. A maior parte das pessoas acreditará num compromisso entre as duas, mas também há pessoas originais, que pensam que só há consequências para os outros, são as pessoas que tipicamente se auto-intitulam de «muito boas pessoas», já para deixar claro que não fizeram nada de mal nas suas vidas, ou, no caso do catolicismo, que estão livres de pecado. São as pessoas que mais facilmente acreditam que elas é que estão correctas, e por isso os outros é que adoecem. Gostaria que Deus existisse só para provar que elas também são mortais, que a mortalidade é para todos, não depende do bem ou do mal.
Há estatísticas que provam que estamos sempre a adoecer. As doenças da sociedade modernizada são os problemas cardíacos e o cancro, que mais não deve ser do que um acumular torpe de porcarias no corpo, juntamente com uma genética completamente adulterada pela alimentação e pelo stress. Para além das ameaças externas, dos vírus e das bactérias, temos as ameaças internas: o stress acumulado, a energia mal dirigida, as emoções negativas. Um dia estoira.
O que me chateia é que isto é provocado pelas preocupações constantes da vida: qual é o caminho que devo seguir? Que trabalho devo procurar? Quando me apaixono? Quando tenho filhos? O que é que eu faço agora? E milhares de outras questões diárias, que aparecem segundo a segundo. Nas pessoas mais seguras e optimistas a resposta deve ser sempre «vai tudo correr bem», nas menos seguras «mas onde é que isto vai dar? Não estava preparado para tanto». Não devemos ser tão estúpidos que pensemos que tudo corre bem. Não é verdade. Quando a minha mãe adoeceu, toda a gente me dizia que devia ser positiva, que tudo corria bem. As pessoas mostravam-me estatísticas de cura do cancro da mama, mas não me mostravam as estatísticas de morte por cancro da mama, que é um flagelo mundial. Em Portugal, em cada 5 minutos morre uma mulher de cancro da mama. Acreditam? Eu também não sabia. Pois a minha mãe é uma dessas mulheres que faz parte da estatística negra. Houve 5 minutos dela nessa estatística. Feliz ou infelizmente, eu nessa altura não estava preparada para me ouvir a mim própria antes de ouvir as pessoas. Por isso, achei naturalmente que a minha mãe engrossaria a estatística do sucesso e nunca a do fracasso. Mas na vida temos mesmo de ser fortes e estar preparados para a morte, porque é disso que se trata. Temos de saber viver, de saber sofrer, de saber morrer. Se no meio disso tudo, alguma coisa fizer sentido e formos felizes, realmente felizes, já nos podemos dar por afortunados.
Enquanto ateia, Deus é para mim um desafio inclemente e grandioso. A expressão de Deus é a expressão do próprio homem, do seu pensamento. Deus entra com muita força na porta de cada um que acredita. Na doença, no sofrimento, na morte, mas também na saúde e na felicidade, atribuímos-lhe um cunho – quanto a mim fantasioso – de algo superior a nós próprios, mas que nos guia. Isso dá significado ao caminho que trilhamos, mesmo que seja longo e implique muito sofrimento. Foi isso que Job descobriu. Acreditar em Deus provavelmente altera o cérebro (recentes descobertas dizem isso mesmo). Durante muitos anos, acreditou-se que um crente era mais feliz do que um descrente. Curiosamente, hoje em dia os sociólogos dizem o contrário. Um descrente está liberto do peso que é acreditar em Deus, que muitas vezes aparece como uma dívida que deve ser paga ao longo da vida, tipo juros com correcção monetária. Mas quem se liberta desse peso também se liberta do sentido de Deus, isto é, da ligação entre os acontecimentos como algo divino e providencial, vendo-se como responsável número um nessa ligação. O esforço é meu, que sou ateia confessa, em ligar acontecimentos. É o que estou a fazer.
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