Monday, August 21, 2006


Liberdade

É muito bom ter um blogue. Muitíssimo bom. É a urina do ego, mas também do espírito. Em primeiro lugar, ter um blogue é ser completamente livre de pensar e dizer o que pensamos, o que é uma coisa extraordinária. Regra geral não podemos fazer isso, excepto com os amigos mais próximos. Com a família nunca podemos falar de tudo, com quem trabalhamos é muito perigoso falar sequer, e com alguns amigos há assuntos que são tabu. Raramente nos sobram momentos em que podemos expressar o que realmente nos vai na alma, e no fundo no fundo, quem somos de facto, sem as máscaras que o real impõe. Tenho vindo aqui a assumir o meu cansaço em relação ao real, às máscaras do real e às outras pessoas. Parece-me que cada vez mais somos condescendentes com a injustiça, a corrupção e a estupidez humana, todavia não somos condescendentes com a diferença, com a doença, com as aspirações dos outros. Aspirar a um mundo melhor é uma coisa. Viver num mundo melhor exige o nosso esforço, mas também a nossa compreensão da realidade circundante e da abertura de possibilidades na melhoria desse mundo. Em primeiro lugar, por muito generosos que sejamos, não adianta sermos ignorantes. Na vida temos de aprender o mais possível acerca de tudo, não só para nos mantermos informados, como para nos defendermos. Noto muito que sempre que baixo defesas sou mal sucedida. Isto é, há que ter muito cuidado em quem confiamos os nossos segredos ou até mesmo as coisas simples da vida e o que pensamos sobre ela. Tenho vindo a aprender que, neste campo, dou confiança a quem não devo e faço erros crassos que me tomam grande parte da auto-estima. Se eu contar que tive uma depressão, a maior parte das pessoas vai-me censurar graças à mesquinhez, à falta de informação e ao preconceito contra a doença (as pessoas passam a ser vistas como pouco corajosas, incapazes de lutar, suicidárias, loucas, ou atrasadas mentais), mesmo que a minha intenção em contar seja a melhor.
Em segundo lugar, de que serve dizer quem somos? Quem quiser que descubra. Então eu que escrevo muito, creio que aquilo que sou tem de ser escrito, por isso basta ler para me conhecer em alguns pontos chave do meu pensamento. Para quê mais do que isso? Valerá a pena dizer que me esforço ou sou honesta ou trabalho muito ou tenho muitos sentimentos? A maior parte das pessoas não pensa em filosofia nenhuma de vida. Se eu tiver uma, tenho mesmo de a impor aos outros? Não. Podemos escrever tudo o que quisermos, somos livres, mas dizer só tem importância para quem sabe ouvir. E são poucas as pessoas que sabem ouvir. E Elisabete é muito boa ouvinte, das melhores que conheço. Não censura, não critica, mas dá a sua opinião, expressa o seu pensamento, sem discutir com a mania que tem muita razão. É muito raro. Mesmo alguns dos meus amigos mais próximos não consegue isto. A Diana também é como a Elisabete, e é bastante perspicaz. São boas ouvintes. É mais difícil arranjar homens assim. O Pedro entende as minhas palavras, mas não percebe o quão importantes e pesadas são, o quão duras e custosas ao espírito, no entanto suponho que com treino e vontade chegue ao entendimento pleno das mesmas e as enquadre na vida real. Porque as minhas palavras têm uma realidade, nem sempre de fácil expressão.
Tenho descoberto também que as pessoas são muito pouco condescendentes com a diferença, por mínima que seja, talvez por isso seja melhor não mostrar sequer essa diferença. Não precisa de ser uma depressão. Basta que seja uma coisa simples, ou que para nós é simples e para os outros não. Lembro-me de um dia ter dito à mesa «tenho medo de andar de avião» e tudo me caiu em cima, que o avião não cai (ou que é raro cair), para quê calmantes (normalmente o Pedro até vai ao meu lado), não tem problema nenhum. E como é que eu digo a estas pessoas que andar de avião é fisicamente uma experiência dolorosa, mas psicologicamente ainda mais, e que a presença do Pedro atenua mas não resolve isso, é uma coisa dentro de mim nunca resolvida, como as pessoas que têm medo de locais fechados, elevadores, supermercados, aranhas? Eu tremo, suo frio, entupo-me de calmantes, mas vou na mesma. E já desisti de pensar «caramba, isto é tão fácil para as outras pessoas, porque é que não é para mim?». Não é porque não é. Pronto. Não há mais nada a explicar, e por isso mesmo quando alguém me pergunta «mas não tens medo de andar de avião?», eu respondo «tenho, mas vou na mesma, paciência…», quando sei perfeitamente que durante meses não consigo sequer ouvir os aviões a passar sobre a BN sem estremecer de alto a baixo. Às vezes gostava de responder às pessoas «sou doente mental» e talvez a fraqueza atribuída à doença me tornasse mais humana, mais frágil e fizesse dos outros seres mais condescendentes comigo. Vá lá eu dizer às pessoas que tirei a carta de condução com tanta dificuldade, que hoje, só de me lembrar disso, começo a suar frio? No entanto, canso-me a ouvir as pessoas a enumerar as vantagens de se conduzir um automóvel, como se a minha vida dependesse disso. Ora a minha vida não depende nem de viagens de avião nem de viagens de automóvel. Para mim seria uma crise partir uma perna ou um braço, isso sim, ou ter problemas na coluna como tenho, isso é uma crise terrível, mas carros e aviões nunca me fizeram falta para vir de Oeiras para Lisboa, nem de Lisboa para Oeiras. Verdade seja dita que o carro pode dar jeito ou andar de avião ser cómodo. Mas verdade seja dita que um ataque de pânico não é cómodo e as minhas alterações físicas descontroladas são tudo menos cómodas. Por isso eu sou amiga do Xanax, chamem-me maluquinha, fraquinha, palerma. Como dizia o meu amigo Jorge quando fazia uma sacanice a alguém «eu sou assim, sou boa pessoa».
Com o tempo percebemos que fazer os outros ver a verdade daquilo que somos é mesmo impossível, sobretudo por comparação a outrem. Por vezes sinto-me uma pessoa injustiçada, sim senhora. Ninguém me atribui mais pontos na caderneta por eu ser honesta, e quantas vezes não vejo a caderneta de um mentiroso cheinha de pontos. Quantas vezes não perco vantagem por razões meramente subjectivas, e por isso toscas, oiço bocas porque sou mulher, porque sou nova, porque isto ou aquilo. Há sempre gente a duvidar das nossas capacidades e não é por isso que somos menos bons como pessoas ou no nosso trabalho diário. Outras vezes temos de lidar muito bem com o facto de sermos completamente ignorados ou referenciados pelas razões erradas. Há que perceber que é mesmo assim. Não somos todos os dias excepcionais e o mundo não funciona graças ao nosso ego. Mas penso que a regra também se aplica às outras pessoas. É ridículo pensarmos que a lei da impermanência só se aplica aos outros, mas também é ridículo pensarmos que só se aplica a nós. Um mentiroso não pode ser sempre o detentor do trono e do tapete vermelho, alguém há-de reparar que o meio pelo qual chegou às coisas não foi o mais honesto. Um mentiroso também cai nas suas próprias mentiras. Por muito burra que uma pessoa seja, não está morta, tem certamente sentimentos para além do conforto do seu próprio ego. Se viver sempre sem esses sentimentos, e fizer opções em função meramente das suas necessidades, tenho dúvidas muito grandes quanto à felicidade que possa obter. Evidente que muitas vezes em que me sinto injustiçada apetece-me abanar tudo à minha volta com bastante força para explicar às pessoas que existe algo muito pior do que tomar comprimidos para andar de avião. Mas valerá a pena??
Sendo assim, quando é que nós somos nós próprios? Os budistas dizem que só na morte se vêem os grandes homens, que a forma como morremos é o reflexo inequívoco de como vivemos e da consideração que temos pela vida, pelas pessoas. Gosto da ideia, só não sei se concordo, mas também não assisti assim a tantas mortes. Talvez alguém que tenha assistido a várias mortes possa falar disto com autoridade. Talvez um mestre budista possa de facto aferir que eles, budistas, morrem mais calmos e aceitam pacificamente o seu fim, se houver tempo para isso. Só que eu acho que esperar pela hora da morte é muito tempo para se aferir quem é uma pessoa de carácter. Entre o nascimento e a morte andamos por cá muito tempo, às vezes com bastante vontade de lixar o próximo, ou simplesmente com vontade de nos afogarmos na nossa própria imagem. E quem pune isso? Sai muita gente desta vida sem qualquer punição. Acreditem.
Gosto do conceito de «a minha obra fala por mim». Era a filosofia do Miguel Torga, é a do Saramago também. O Prince também afirma isso, que não dá entrevistas porque a música fala por si. E há escritores que deixaram uma obra tão vasta ignorada em vida que nos questionamos mesmo quem seriam como pessoas, caso de Fernando Pessoa, de Cesário Verde ou mesmo de Luís de Camões. A noção de que a obra pode ser maior do que a própria pessoa agrada-me. Já que somos pessoas vulgares, então que sejamos artistas de excelência. Mas será que um artista excelente é uma pessoa vulgar? Ou far-se-á passar por isso? Mais vale. É bom alguém excepcional passar por alguém vulgar. Mais vale isso do que uma pessoa vulgar fazer-se passar por excepcional seja em que campo for, seja à sombra de quem for e como for. Mais tarde ou mais cedo, justiça será feita. Quer dizer, era bom que sim.


2 Comments:

At 9:16 AM, Blogger Brisa said...

Não interessa o que tens de tomar quando vais andar de avião. E menos interessa ainda o que te dizem. Caramba, não se nota que tens coragem a arrodos quando, mesmo a morrer de medo, insistes em enfrentar as emoções e lá abalas rumo aos teus objectivos? Se calhar, acham-te tontinha só por isso - por, independentemente de tudo o resto, te manteres fiel aos teus princípios e seguires o caminho que queres ainda que tenhas de andar descalça sobre espinhos! Ainda bem que as pessoas más se revelam, a seu tempo. É a forma, indirecta, de avisarem que tens de mudar de passeio. Mas não te lamentes nunca das injustiças que vives, pois enriqueces por dentro de uma maneira invejável! E, por isso, é tão maravilhoso descobrir o tesouro que és - conversando contigo ou lendo-te!

 
At 2:38 PM, Blogger fercris77 said...

Querida Brisa-Elisabete:
Ora essa! Tu é que és uma excelente ouvinte, nada chata nem nada pérfida (há ouvintes pérfidos que gostam de usar as informações que lhes dás para o pior fim!)que compreende muito bem o que digo. Acho que ser mãe te tornou muito mais inteligente e aguçou o teu sexto sentido, não ficaste simplesmente a fazer festinhas na barriga, de salto alto e a dizer «para a semana estamos cá os dois!!».

Beijinhos!

 

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