Friday, September 15, 2006



As surpresas

Estou sempre a dizer que, na vida, temos sempre de estar preparados para o melhor e para o pior, dizem os budistas que do mesmo modo, com o mesmo espírito calmo, de aprendizagem, de recepção do destino, todavia isso é difícil. Para além da obesidade, a depressão clínica é outra das doenças da moda. Ou seja, o Tallon vai ficar rico outra vez (apesar de ter espancado a mulher), e os psiquiatras vão começar a facturar como nunca (aliás, já começaram). Isto para dizer que, na vida moderna, o nosso ritmo indiferenciado de vida, ora depressa, ora devagar ora a mil à hora vai tendo consequências desastrosas na saúde física e mental, matando também o convívio, porque uma pessoa deprimida ou obesa tem tendência a isolar-se do mundo, e quando não o faz, anda na vida profundamente infeliz.
Daquilo que conheço de mim, a obesidade parece-me algo mais longínquo do que a depressão, mas isso é porque se calhar nunca estive grávida ou nunca estive na linha ténue que separa um gordo de um obeso, fiquei só pela categoria de «gordinha» em algumas idades, em alguns anos. A regra, quando estou nervosa com alguma coisa, é não comer, nem ter vontade de ver comida à frente, e não o contrário (se calhar felizmente para mim).
A quebra da ligação entre seres humanos foi-se dando, ao longo dos tempos, graças a inúmeros factores, mas eu acho sempre que perda de saúde, perda de valores e perda de ligação entre as pessoas tem tudo a ver. Talvez não seja uma leitura assim tão absurda, se pensarmos que dantes as refeições eram sagradas porque estavam todos presentes, que não havia o fast food, nem excessos de sal e açúcar. Os carros também eram raros, andava-se muito mais a pé ou de transportes (hoje há um carro por cada pessoa). Depois não havia aquelas situações ridículas de uma pessoa ir de carro para o ginásio e querer estacionar à porta para não andar muito, mas depois ir andar na passadeira rolante para queimar calorias. Afinal é melhor passear ao ar livre ou sob o ar condicionado? Há qualquer coisa na palavra ginásio que foi, entretanto, subvertida, porque as pessoas acham que, graças ao ginásio, podem suprimir a boa alimentação e os passeios a pé.
Naturalmente nem todos podemos ser atletas de alta competição ou exímios nadadores, mas também não percebo bem o conceito de andar de carro até ali à esquina, todos os dias a todas as horas. Curiosamente, nunca estivemos tão cansados e esgotados, nas nossas relações interpessoais, no nosso emprego, na nossa vida diária, na nossa falta de tempo para tudo, para ler, para escrever, para estudar, para brincar, para ir ao cinema ou simplesmente andar.
A ginástica acaba por ser uma actividade edificante, de aprendizagem do próprio corpo e das capacidades que ele pode alcançar se puxarmos por ele. Não é fácil para quem passa muito tempo sentado ou em permanente stress, mas eu acho que aquilo que mais gosto nas aulas de ginástica é a minha concentração nos exercícios e não na vida exterior, porque sei que se me desconcentrar faço tudo mal, por isso normalmente afasto os meus pensamentos nefastos ou mesmo qualquer pensamento. Depois da aula de ginástica eles já não irrompem do mesmo modo. Atinjo uma espécie de zen, em que me sento no comboio e as coisas más são más à mesma, mas não me perturbam o espírito. Este foi um estado que fui conseguindo, porque nas primeiras aulas vinha à mesma a pensar em tudo com raiva e desespero, que é assim que eu penso em tudo. Eu penso e a seguir tenho uma emergência em dizer, e depois em fazer, e percorro o dia todo a pensar, a dizer e a escrever, enquanto ao mesmo tempo faço o meu trabalho de correcção de inúmeros textos, quase todos iguais uns aos outros. Quando eu dava aulas não era nada assim, dar aulas exigia trabalho de casa e uma dedicação extrema, mas o meu trabalho actual é de uma solidão incomparável, por isso falar com pessoas parece-me um bálsamo, porque na biblioteca não há interacção possível.
Apesar de nunca me ter passado o nervoso de ir para o ginásio – basicamente porque não confio nada em mim e tenho sempre receio de não conseguir fazer as coisas – tenho de confessar que é uma parte do dia muito importante, que eu levo muito a sério, e à qual não falto nem para ir buscar o bolo ou o bouquê de casamento. No maior caos e no maior stress que tenho atravessado nestes últimos tempos, como qualquer noiva (apesar de eu nunca ter querido ser uma noiva nem ter festa de casamento, quase fui obrigada), as aulas de ginástica estão ali como blocos de cimento em quem ninguém pode tocar, nem o stress, nem os sogros, nem o noivo, nem o homem do gás e da água, nem o homem da entrega da cama que nunca levou a cama.
Numa das primeiras aulas de ginástica, por exemplo, era o dia anterior a uma ecografia mamária e eu estava a tremer da cabeça aos pés, porque o cancro da mama me apavora. Todavia, saí da aula muito melhor, dormi bem e os meus quatro quistos mamários cá estão, mas já dão menos incómodo, porque as aulas me fazem esquecer deles, e do perigo que eles representam para mim, tendo em conta que qualquer dia um deles poderá cometer o erro de se multiplicar. Quando vou à aula não penso nisso.
Noutra aula, das últimas, tinha tido uma discussão tão severa com o Pedro, mais uma vez porque não queria festa de casamento mas os convidados estavam a multiplicar-se à velocidade da luz, que julguei nem conseguir ir à ginástica, mas mais uma vez a aula me apareceu como um bloco de cimento incontornável, e eu saí de lá calma e completamente convencida de que às vezes temos de baixar os braços e permitir que uma parte da festa seja dos outros. Nesse dia o JPA teve razão até sem saber, eu poderia ter-me candidatado a monge budista.
Dias sem ginástica são piores do que os outros, porque tenho mais tempo para me zangar e chatear com as inúmeras invasões de privacidade que tenho sofrido nos últimos tempos (e não só), talvez por culpa minha, porque sou condescendente com coisas que normalmente as pessoas não são, e sob esta aparência de pessoa racional, tenho as emoções à flor da pele e sinto quase todos os dias a falta da minha mãe e da vida que tinha, e dos dias em que ela não estava doente e se zangava comigo. Porque a minha vida está dividida em duas partes: antes da doença e da morte da minha mãe e depois, em que, como em qualquer perda, eu deixei a minha velha identidade para trás. Como dizia o Vinicius de Morais, morre e nasce-se todos os dias, e foi isso que aprendi, de uma forma dura e com consequências para toda a vida. Acho que nunca terminamos um luto. Morto o pai ou a mãe, ou um irmão, estamos sempre de luto até ao fim dos nossos dias. A mim comovia-me a forma como a minha amiga Teresa chorava quando via alguém semelhante ao pai dela. O pai morrera quando ela tinha dez anos e a mãe vestira-a de preto da cabeça aos pés, algo que a tinha traumatizado profundamente. Todavia, antes de a minha mãe morrer, eu não sabia exactamente qual era o valor dessa perda. E hoje eu percebo muito bem o choro da Teresa, porque há inúmeras vezes que eu passo em locais que frequentava com a minha mãe e choro também. Durante anos não consegui frequentar a baixa lisboeta, por exemplo, nem a avenida Visconde Valmor ou a 5 de Outubro, onde a minha mãe chegou a trabalhar.
As aulas de ginástica são para mim uma surpresa, porque sou capaz de sair deste turbilhão de emoções sempre latentes (e algumas tão dolorosas) e estar ali, só ali. Para mim o maior problema da vida foi sempre a ansiedade, nunca estar em lugar nenhum, em tempo nenhum, nunca estar aqui e agora. E na ginástica eu sei que estou ali, embora o aquecimento me custe muito, psicologicamente o que eu penso é «quanto mais e melhor fizer, menos tempo tenho para estar triste». Nunca saí mal de uma aula que fosse, nem zangada, nem triste, nem furibunda, nem com vontade de partir tudo, até porque quando saio de lá já não tenho forças para isso. De qualquer modo, saio bem comigo própria, cansada, claro. Talvez tudo isto tenha a ver com o meu gosto por disciplina. Só que eu sou uma disciplinada que gosta muito do seu espaço criativo. É verdade que ali dentro não posso criar grande coisa, porque eu não sei nada de exercício físico, embora me esforce por compreender a utilidade de cada exercício. O espaço criativo é o próprio professor, que nos últimos tempos pareceu andar entusiasmado com a ideia de eu ir em forma para o meu casamento, por isso fomos trocando piadas sobre isso, embora eu seja muito opaca a comentar certas coisas, sobretudo porque não acho gracinha nenhuma a noivas nem a casamentos. Mas ele deve achar, pelos vistos. Nem falo das minhas amigas, que andam todas num turbilhão, tipo damas de honor, embora só uma vá ao meu casamento.
Sou uma pessoa pouco dada a estereótipos e convenções. Festas e banquetes só entre amigos chegados. Mas deve ser assim com quase toda a gente, eu não mando nos convidados das outras pessoas, e pelos vistos já há muito deixei de mandar no meu casamento. Gosto da ideia do JPA, de eu ir em forma para o casamento, porque talvez a minha cabeça também vá em forma e eu consiga músculo suficiente para tomar de novo as rédeas da minha vida.
Talvez as aulas de ginástica não fossem uma surpresa tão boa se eu não fosse disciplinada ao ponto de querer fazer, de querer aprender e de querer conseguir. Talvez não fossem tão boas se o JPA não fosse tão exigente, mas ao mesmo tempo tão preocupado com os seus alunos. Chegamos ao fim de algumas jornadas da vida suspirando fundo e libertando-nos de um fardo pesado, mas chegamos ao fim de outras já com saudades e até felizes do percurso trilhado. Quando fiz psicoterapia também não gostei do começo e até antipatizei com a psicóloga, achava-a bruta, achava que ela era sabichona e tinha a mania que a sua filosofia de vida é que estava certa. Todavia, com o tempo, ela e as sessões, e muito provavelmente eu, tudo se revelou uma surpresa ímpar. Não saí de lá curada, nem dei a volta inteira à minha vida de seguida, mas tenho a certeza que ganhei instrumentos para o fazer mais tarde. Do mesmo modo, não saio do ginásio curada, nem pouco mais ou menos, sou sensata ao ponto de saber que de um ginásio vou passar para outro e que tenho de exigir mais e melhor de mim.
Muitas das vezes precisamos dos olhos dos outros para nos vermos melhor. É estranho, mas se nunca ninguém nos disser que valemos alguma coisa e se formos pessoas inseguras, possivelmente nunca acreditaremos no nosso valor real, acreditaremos, isso sim, num valor possível. O valor real muitas das vezes está acima das nossas expectativas e até das dos outros. Se a psicóloga nunca me tivesse dito que eu estava a melhorar e a superar as expectativas dela, eu não acreditaria nisso. Se o JPA não me dissesse que eu me esforço, se calhar eu continuaria a pensar que nunca mais passava daquela marca. Quando deixamos de acreditar no nosso valor passamos a acreditar na mediocridade. Do mesmo modo, se estivermos demasiado convencidos de que somos bons e de que não precisamos de ajuda ou de orientação não evoluímos grande coisa. Creio que em qualquer aprendizagem seja assim, é um processo contínuo e nunca sabemos bem onde termina. Podem surgir surpresas desagradáveis, mas podem haver outras incomensuravelmente dóceis e ternas. Pode ser uma viagem solitária ou não, e pelo caminho podemos conhecer estrangeiros ou pessoas iguais a nós. De qualquer forma, é uma viagem válida e vitalícia, e nunca mais esquecemos os nossos mestres e companheiros de viagem. O JPA é um deles.

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