Sunday, October 15, 2006


A pragmática

Na faculdade aprendíamos sempre que havia uma parte da gramática muito pouco estudada em Portugal e muito desprezada pelas pessoas chamada «pragmática». A pragmática é o contexto de enunciação, ou seja, quando dizemos uma frase, os seus componentes têm sentido graças ao contexto em que a dizemos. Isso por vezes poderá modificar a classificação gramatical de uma palavra, ou seja, retirar ambiguidade à sua classificação (é nisso que se baseia a homonímia), e poderá também modificar totalmente o sentido de uma frase. Na frase «Sou casada com o Pedro» há vários pressupostos, mas um deles será certamente que eu sei quem é o Pedro, ao passo que o leitor pode não saber. «Pedro», como qualquer nome (ou pronome) é um deíctico, só faz sentido no contexto de enunciação que determinamos. Tudo isto é muito mais complicado do que aparenta e tem nomes do arco-da-velha, de uns eu lembro-me, mas de outros nem por isso. Qualquer linguista dava cabo de mim depois desta explicação torpe e ignorante. Mas é mais ou menos isto.
De igual modo, frases citadas fora do seu contexto de enunciação podem causar problemas de comunicação (mesmo ruído): é nisso que os jornalistas se baseiam para vender jornais, e depois o entrevistado vem sempre com a desculpa «a frase foi retirada do seu contexto, não era isso que eu queria dizer», mas ninguém liga nenhuma, porque a pragmática é, por si só, um jogo inteligente e sábio, só para pessoas atentas, e com tanta confusão, nunca andamos atentos a coisa nenhuma. Por isso eu acho que, na maior parte das vezes, a comunicação não é verdadeira, é só ruído, e a verdade fica muito aquém.
Garanto-vos que sou uma pessoa atenta. Vou dizer melhor: sou obcecada por palavras, porque isto roça o patológico. Não fixo poemas, mas fixo tudo o que me dizem, do mais agradável ao mais ofensivo. É bom e é mau. Se eu um dia quiser escrever um romance, estou à vontade, tenho todos os elementos comigo. Mas se quiser ser feliz, é mau reter tanto lixo. Por isso, é um pau de dois bicos, e o meu psiquiatra dizia-me sempre isso acerca dos escritores: ou eram pessoas muito lúcidas, que sabiam dominar as palavras e os sentimentos, ou se envolviam no turbilhão da sua própria existência e por vezes adoeciam. Eu tento o equilíbrio impossível, que é o de gerir palavras e sentimentos com alguma doçura, apesar de ser daquelas pessoas que ouve as palavras e as entrelinhas. Isso faz-me supor intenções. O que é péssimo. É a pragmática que provoca o nosso envolvimento pessoal com as palavras dos outros, «o que é que o gajo queria dizer com isto?».
Para haver uma interacção inteligente têm de existir dois interlocutores inteligentes, com contextos pragmáticos comuns. Experimente dizer a uma pessoa completamente burra que ela é burra. É como falar com uma parede. Experimente dizer a um mentiroso que ele é mentiroso, mas não directamente, com uma boca ligeira. Ele vai afirmar logo a seguir que diz sempre a verdade.
A minha capacidade de leitura nas entrelinhas começou muito cedo, mas com o tempo desenvolveu-se. Isso significa que já entrei na idade adulta, confesso que não há muito tempo, porque já fui a ingenuidade em pessoa, mas nos dias que correm, sou tudo menos parva e ingénua. A minha ingenuidade terminou no dia em que comecei a entrar nos hospitais com a minha mãe, quando ela estava doente. Em primeiro lugar, deixei de ser tola: deixei de pensar que só as outras pessoas adoecem, seja do que for, mas principalmente de cancro. Em segundo, deixei de achar que sabia tudo sobre a minha mãe (que por acaso é título de um filme do Almodôvar). Afinal, como me disse o meu psiquiatra, eu nada sabia sobre ela. Em terceiro, percebi o quão más e incompetentes conseguem ser as pessoas, porque já às portas da morte o internamento da minha mãe foi recusado e ela até chegou a ser enviada para a fisioterapia com metásteses nos ossos. Em quarto, percebi que a vida é frágil e que temos de ser fortes para conseguir dizer ao telefone «a minha mãe está a morrer», portanto, a vida exige muitas vezes que sejamos totalmente realistas. Em quinto, compreendi que uma parte da minha vida tinha morrido para sempre com a minha mãe e que, como qualquer ser vivo em apuros, eu tinha de lutar pela minha sobrevivência, procurando não sucumbir à tristeza e à depressão.
Com todos os acontecimentos dos anos subsequentes, que as sequelas da morte dela agravaram de forma trágica, a minha capacidade pragmática revelou-se de uma utilidade extrema. Descobri mesmo que quem me tinha ensinado isso tinha sido a minha mãe. Muitas das palavras dela fazem hoje muito mais sentido. Afinal, o contexto é outro e o estado de espírito também. Hoje em dia, tenho os olhos e os ouvidos muito mais abertos para o que me circunda (e o que não circunda).
Evidentemente que, mesmo em contexto pragmático compreensível, sou muitas vezes enganada e trapaceada pela vida, mas geralmente há uma parte de mim, tipo SOS, que me grita que isso vai acontecer. Por vezes a ansiedade é gritante, e nisso os exercícios de Pilates também ajudam, porque aquela aparente simplicidade do respirar correctamente é, afinal, muito mais difícil do que parece, exigindo atenção, concentração e uma calma quase zen. Apesar de eu ser uma pessoa com muita pouca calma, procuro nunca demonstrar isso aos outros, a uns porque não tenho confiança, a outros porque não lhes quero dar esse gosto. Afinal, há pessoas hipócritas que nos provocam reacções tipo urticária.
Considerei sempre a minha vida uma bela complicação. Acima de tudo, o que é complicado? Eu própria. Eu sou muito complicada e louvo o Pedro por conseguir gostar de mim ao ponto de termos casado, porque a minha complexidade é de extremos e até eu me irrito. Além disso, tenho a mania que sou artista e que sei escrever. E um artista é um egocêntrico da pior espécie, porque acha sempre que a sua arte supera a sua existência, que é transcendente e transtemporal. Talvez eu não seja assim uma artista tão convencida como isso, mas é nessa minha veia que o sangue se cruza com o do Pedro (metáfora esplêndida), porque ele também é um artista como eu, pouco hermético, marginal. Somos dois marginais arrumados e competentes, portanto antíteses das boas (ou oxímoros dos bons), bem construídas.
Talvez seja eu que chamo para o pé de mim gente da pior espécie, se calhar, como diz a Lisa, o universo acha que eu ainda tenho muito para aprender com essas pessoas. E na verdade, a Lisa é uma sábia. Eu tenho muito a aprender com pessoas torpes: são elas que me ensinam, todos os dias, aquilo que eu não devo nem quero ser, e não devo nem quero ensinar um dia aos meus filhos. Para além disso, que melhor exercício pode haver para valorizarmos o que é essencial, na vida, senão confrontarmo-nos com gente da pior espécie? Assim percebemos que somos a excepção: porque temos amigos sem ser por interesse, porque amamos a pessoa que está do nosso lado, porque somos nós que fazemos os trabalhos que assinamos, tomando responsabilidade por eles, porque não tendo a melhor casa do mundo, ao menos temos uma casa ( o mesmo vale para o emprego), porque somos honestos em relação às nossas falhas e não achamos que temos de ser sempre o centro das atenções, porque toleramos a diferença sem no entanto admitir a imoralidade, etc. Tudo isto é raro, mas povoa a maior parte do meu mundo. Este é o meu mundo e eu sou uma privilegiada, porque nunca os meus amigos me deixaram sozinha na minha imaturidade e nos meus erros. E provavelmente eu nunca me isolei na minha imaturidade e nos meus erros. Para além disso, nos últimos tempos, pessoas fantásticas têm-se cruzado comigo no meu percurso pessoal, isso é a prova que também se cresce a bem, e não só a mal.
Eu já aqui me fartei de falar das aulas do JPA (qualquer dia indico o site dele para todos os que o quiserem conhecer, mas terei de obter uma autorização), e evidentemente sempre falei mais das aulas do que dele porque esse é que foi o meu universo durante um mês e meio e eu só tenho o hábito de falar do que conheço. Mas o JPA também é daquelas pessoas que brinca com a pragmática de forma inteligente (nem ele nunca deve ter dado conta!), porque tudo o que diz pressupõe um contexto. Por exemplo, adora retirar o nome predicativo do sujeito às suas frases, diz: " A natação é ", mas sou eu, ouvinte atenta, que lhe completo a frase " A natação é impraticável para mim ", ou seja, por vezes não é preciso dizer mais nada. Se ele disser " o exercício é ", eu já sei que para mim o exercício é essencial. Este é o nível de pragmática mais fácil, corresponde ao nível da bicicleta ou do remo mais simples. Penso que à medida que as pessoas se conhecem melhor passam para níveis de pragmática muito mais complexos, que exigem uma atenção muito superior e uma inteligência trabalhada. É isso que nos leva sempre à frase «porque será que ele/ela disse aquilo?». Portanto o contexto e a intencionalidade cruzam-se, embora por vezes a intencionalidade (pressuposta) dos outros seja um tanto egocêntrica ou até psicótica, porque nós supomos uma coisa, mas por vezes nunca chegamos a uma certeza, as certezas ficam diluídas no tempo e no espaço. As intenções são suposições nem sempre certas.
Mais do que nunca, a frase do Óscar Wilde citada pelo JPA no meu livro de casamento vem à minha cabeça: " Na vida, existem duas tragédias: uma é a de não realizarmos os nossos desejos, a outra é a de realizarmos os nossos desejos ". De facto, não realizar desejos é trágico para o ser humano, isso parece movê-lo por entre escombros, assombrá-lo, persegui-lo. Mas onde reconheço o Óscar Wilde é na outra metade de frase: um desejo realizado também é uma tragédia, talvez porque atire o homem para uma nova busca utópica de um desejo maior, ou talvez porque muitas coisas se esfumam nas nossas mãos perante um desejo satisfeito naquilo a que chamamos «mundo real». Esse é o Wilde descontente que conheço das minhas leituras, um homossexual perseguido e acossado pela sociedade vitoriana do seu tempo (parece que a rainha de Inglaterra já pediu publicamente desculpa e lhe erigiu uma estátua, tantos anos depois…). Todavia, falta-me a pragmática: não reconheço o JPA na frase. E a intenção dele só posso supor. Além disso, um professor deve sempre transmitir segurança profissional, mas também pessoal, mesmo que como pessoa seja frágil, não deve nunca transmitir isso aos seus alunos (doentes então nem se fala), excepto em casos muito raros, por isso a mim o JPA parece-me sempre seguro, demasiado seguro para concordar com o Wilde achando que é trágico realizarmos ou não realizarmos desejos. Mas também não me parece que a frase apareça fora de contexto para ele ou para mim, porque a pragmática tem de lá estar. Além disso, acaso ou coincidência, o JPA foi acertar num dos meus escritores favoritos. A mim parece-me sempre que trágica sou eu, na minha interpretação da realidade, trágico é o Wilde, na vida desgraçada que teve, sempre a ser julgado como pedófilo e desprezado como artista. Mas se o JPA partilha a frase comigo, é porque a tragicidade faz parte dele de alguma maneira – estou no domínio da suposição – como faz parte de quase todos nós.
A frase não é nada sólida (como qualquer citação), parece flutuar no universo a lembrar-nos que de uma maneira ou de outra vamos parar à tragédia maior do ser humano, que é a de ter transgredido, na Bíblia, o espaço fechado e paradisíaco que Deus lhe tinha destinado, graças ao desejo (não esquecer a figura mais transgressora da narrativa do Génesis: a mulher, que é afinal quem move o homem para o pecado). Portanto o desejo é que é trágico, quer se consiga realizá-lo ou não, é ele que despoleta a procura, a realização e a frustração de sonhos, a nova busca, etc. Talvez o desejo é que nos faça andar numa roda-viva e nos empurre para a frente, mesmo que seja na direcção errada, mas sem esse motor que nos puxe, que graça tem a vida?







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