Sunday, October 01, 2006


As coincidências

Por muitas vezes, na minha vida, eu quis acreditar que as coincidências existiam. E por muitas vezes permiti-me não acreditar numa ideia que me parece transcendente ao entendimento comum da realidade. Porque raio uma coisa completamente absurda nos acontece? É verdade que muito de nós, se pudéssemos escolher, escolheríamos muitas coisas diferentes daquelas que temos, seja o corpo, seja a cabeça, seja a família, seja o país de nascença, seja uma casa diferente. Muitos de nós gostaríamos de ter mais saúde, mais dinheiro, outras oportunidades. É muito difícil a aceitação da vida como ela nos aparece. É muito difícil a felicidade. Eu acho. A ansiedade também nos impede ao discernimento, do aqui e do agora. A vida por vezes parece rápida e por outras vezes obriga-nos a bruscas paragens de profunda reflexão: porque é que me aconteceu isto?
Acho que é mais fácil não acreditar nas coincidências, porque assim tudo tem uma explicação plausível, mesmo que esteja distante no tempo e no espaço. Para quem não acredita, sobra pouco, significa tão somente que as coisas acontecem no acaso, que flutuam no universo, que chocamos com as pessoas por mero acaso, tipos carrinhos de choque, umas vezes damos toques suaves outras espatifamos a alma. Deepak Chopra não acredita em coincidências, mas em razões pré-definidas. Eu não sei naquilo em que acredito. Uma em cada dez mulheres portuguesas tem cancro da mama. Uma delas foi a minha mãe e morreu, o que me obrigou a uma paragem brusca da vida que levava. Nunca me considerei uma pessoa burra, mas também nunca tinha sido obrigada a olhar para certas coisas antes da morte dela. Será que estava pré-definido no meu caminho esse acontecimento? À medida que avanço na vida, a minha idade avança também, e com isso espero fazer o meu espírito avançar. Pelo menos tento. Das dez mulheres portuguesas, eu serei também, tal como a minha mãe, a tal escolhida para adoecer desse padecimento? Ou terei outro qualquer? Qual é a estimativa? À medida que vou chegando aos trinta anos, vou tentando perceber como funciona o universo, e mesmo assim apetece-me chorar o azar que tive na vida com toda a força. Mas não apetecerá isso a muita gente? Todos os dias penso quando é que o universo me escolherá para sofrer novamente, embora tendo a noção de que estou a ser estúpida: é essa antecipação que me faz sofrer. Há um filme italiano tristíssimo chamado «O quarto do filho», em que um psiquiatra perde um filho quando este fazia um mergulho. No espaço em que isso acontece, ele tinha ido visitar um doente hipocondríaco a quem tinha sido diagnosticado cancro no pulmão, e que lhe diz: " Agora que estou doente não tenho medo de morrer. A vida é uma evidência e eu esperei toda a vida pela doença. " A ironia da situação é o psiquiatra ouvir esta forma exemplar de explicação da realidade interior e profunda do ser humano enquanto ele próprio tinha a estabilidade em risco, porque raros de nós se preparam para a morte, dos outros e sobretudo a nossa, e eu também só percebi isso na morte da minha mãe. Antes disso, a minha noção era a de que, se em dez mulheres uma tiver cancro da mama, não seria a minha mãe nem eu. E era uma falsa noção. Tanto foi a minha mãe como posso ser eu.
A felicidade completa é sermos nós, aqui e agora. Parece simples, mas raros são os contemplados nessa busca. Tenho de ser franca. Se muitas vezes não acreditei no destino e na razão de ser das coisas, muitas vezes também não acreditei nas coincidências. Talvez seja mesmo uma escolha, uma perspectiva, uma opção que se toma. Por vezes muitos acontecimentos, muitas pessoas, muitos percalços, muitas travessias me pareceram fazer perfeito sentido no meu caminho. E quando digo isto não me refiro a coisas boas, tão somente, conto com todas as más. As pessoas que de mim se aproximam (ou de quem eu me aproximo) também parecem ter um significado, um denominador comum, bom ou mau, mas específico. Gosto de ver a minha antítese para perceber quem sou, de facto. Quando dizemos «eu era incapaz de fazer aquilo» estamos a definir-nos, embora pela negativa. Por vezes temos de espreitar os outros para perceber isso.
Não aceito nada bem as injustiças. A mim parece-me sempre que determinadas pessoas deveriam estar com outras, chocar com força para aprenderem, mas de facto não tem sido assim, e talvez não tenha de ser. A mim parece-me que certas pessoas nunca deveriam adoecer e morrer, mas calha a todos…a alguns a experiência da tristeza e da angústia fá-los-ia aprender a dar valor aos seus actos, mas esses não são punidos senão com a infelicidade, ou tão somente com a estupidez e a inconsciência (que não me parece chegar). Outros parecem receber punições pesadas só por serem eles próprios ou pessoas inteligentes. Qual é o valor de tudo isto? Quem somos, afinal? Será como na selva, que os leões caçam uma gazela ao acaso, depois de atacarem a manada? Será que as doenças e a morte são assim? Qual é a triste sorte do ser humano, a sua condenação?
Dói-me a incapacidade de algumas pessoas para verem o caminho escolhido com clareza. Muitas escolhem o que dá jeito, outras o que está mais perto, outras ainda escolhem em função do seu umbigo e nada mais. Quais as consequências das nossas escolhas? Haverá para uns e não para outros? Quem somos depois de sacrificarmos os nossos sentimentos em nome dos nossos objectivos?

0 Comments:

Post a Comment

<< Home