Tuesday, October 10, 2006


A aliança

O significado de algumas festas e acontecimentos foram-se perdendo, ao longo dos séculos, desde os tempos mais remotos. Já ninguém percebe bem quais são os símbolos do casamento verdadeiros e quais são os falsos símbolos, à excepção dos padres, que também se vão vendendo aos tempos modernos. O vestido branco era o símbolo da pureza e da virgindade, mas já poucas mulheres casam virgens. O véu era o símbolo de que o marido «destapava» o rosto da mulher, ou seja, era o primeiro a desflorá-la (também me parece que já não é assim…), e pelos vistos, segundo outros padres, era também o símbolo de que o marido deveria sempre respeitar o espaço da mulher. A festa era a união das duas famílias, e era a mulher que mudava de campo de acção, ou seja, passava a ser obrigada a ter não uma mas duas famílias, ou uma só, na totalidade. Hoje em dia o homem tem as mesmas obrigações.
Do ponto de vista prático, tudo isto é muito difícil. O meu sogro diz que eu desconstruí alguns mitos e fiz tudo ao contrário. Não casei de branco (virgem nem se fala), véu para quê, não casei pela igreja nem ao fim-de-semana. Em parte tem a ver com a minha irreverência, mas também tem a ver com a minha simplicidade na forma de encarar as coisas. Julgo que em alguns passos-chave ainda consigo ser simplesmente eu. Mas noutras coisas não consigo ser eu própria e fico longe daquilo que considero ser a simplicidade. Sou verdadeiramente complexa, ou então as pessoas à minha volta são complexas e eu não sei lidar com isso nem consigo ignorar. Porque termos duas famílias é sinónimo de nos preocuparmos com as duas e com as pessoas que fazem parte de ambas. E isso também traz problemas em acréscimo.
Sempre fui apologista da distância de segurança necessária entre as pessoas, sobretudo porque a minha mãe me ensinou assim. Essencialmente porque estão sentimentos envolvidos, muitas vezes não reagimos com a cabeça e reagimos com o coração. Outras vezes não temos simplesmente coragem de reagir. Queremos pensar que é tudo distante de nós e que não temos nada a ver. Mas estamos a observar com atenção, e não gostamos muitas vezes que haja intrusos funestos a tentarem ocupar lugares indevidos. Um lugar devido é sempre um lugar conquistado pela honestidade e pelos sentimentos. Se isso não existir, estamos a usurpar tempo, dinheiro e bons sentimentos aos outros e por arrasto à família dos outros, quando esta é envolvida, que é a regra. Ou bem que as pessoas vivem envolvidas numa relação e não sabemos o que lá se passa, ou bem que somos envolvidos (por vezes arrastados…) para essa relação, e nesse caso avaliamos, julgamos, opinamos, porque de outro modo não é possível viver.
Eu sempre fui apologista da diferença, por achar salutar a diversidade de opiniões, de credos, de conceitos estéticos. Mas nunca fui capaz de aceitar uma só diferença que me acicatasse os valores morais, mesmo que isso implique opor-me às pessoas de quem gosto. Sempre que da minha família se aproximaram pessoas sem escrúpulos eu reagi, e reagi mal. Pareceu-me sempre desonesto que, por muitos traumas ou dificuldades que passemos, tentemos trapacear os outros para atingir os nossos objectivos. Mas não significa que para os outros isto faça sentido. Porque já vi que não faz.
Agora vem o meu dilema moral. A aliança significa fidelidade, é de ouro porque o ouro é um metal dúctil e perene, como deve ser uma relação, está no anelar esquerdo porque do lado esquerdo é o coração e nesse dedo está uma veia directamente ligada ao órgão com que supostamente amamos as pessoas. Até que ponto a minha aliança permite que eu pactue com imoralidades e desconexões de comportamentos? Até que ponto o meu amor é cego, surdo e mudo, se eu não sou cega, nem surda nem muda? Até que ponto o meu silêncio é justo? Porque é verdade que devia estar feliz e tenho muitas razões para tal: saí finalmente de casa, estou com o Pedro, tenho emprego e posso roubar chouriços dentro do prazo à minha cunhada e ao meu irmão, o meu sobrinho diz batata, o meu pai tem uma nova namorada e o meu coordenador de trabalho é uma pessoa justa e humana. Além disso, tenho amigos que me dizem o que fazer nas piores situações. Melhor do que tudo isso, até hoje as minhas ecografias mamárias só deram quistos benignos, portanto posso estar feliz, não sofro, por enquanto, de cancro da mama, pelo menos que eu saiba. Tenho alguma inteligência, algum talento e procuro ser justa com o meu semelhante. Só que sou totalmente intolerante com a imoralidade. Totalmente. E o casamento deve ter-me aguçado essa incapacidade de lidar com as pessoas mal intencionadas. Talvez seja a velha teoria da defesa do território. Uma mãe defende sempre a família, a todo o custo.
A minha avó é boa a lidar com estas situações. Dir-me-ia «obedece ao teu marido». E pronto. Tudo seria mais fácil se eu não tivesse cérebro ou não o usasse. Estou certa de que uma boa fada do lar o faria. Talvez sejamos melhores pessoas no fingimento absoluto. Damos a aparência de uma compostura totalmente falsa, mas ao menos atingimos os nossos objectivos.
Os outros e as suas atitudes são a prova da nossa inércia e da nossa ineficácia humanas: não os podemos mudar de sítio, não vale a pena mudarmos de sítio (eles seguem-nos, pelos vistos) e sinceramente não vale a pena desviar o olhar da cena do crime, porque ele está lá. Acaso Judas deixou de se sentir perseguido pela culpa depois da crucificação de Cristo? Por isso, se algo está podre no reino da Dinamarca, é melhor lutar contra isso do que pactuar ou mudar de reino (que é o mesmo que pactuar).
Tudo o que achamos ir durar pouco pode durar eternamente e vice-versa, tudo o que damos como eterno pode ser questão de segundos. Por exemplo, vivemos a achar que somos eternos, mas em segundos podemos perder a vida. Por outro lado, temos tendência a desprezar algumas coisas negativas, a achá-las passageiras, furtivas. E no entanto elas estão lá e já fazem parte de nós e da nossa maneira de estar, porque nos acomodámos às coisas menos boas sem nenhuma explicação. Para meu bem (ou para meu mal, depende da perspectiva) nunca me acomodei a isso. Sempre achei que as coisas más não deviam ficar. Mas o exercício da paciência também está incluído na aliança, no casamento, na minha história de vida. Não sei se devemos ser tolerantes com algumas diferenças, mas devemos ser tolerantes com a espera. Se uma mulher não soubesse esperar, não engravidava nem tinha filhos. Se não soubéssemos esperar nunca teríamos capacidades de aprendizagem nem de alcance de objectivos. Esperar é uma virtude muito difícil de gerir. E enquanto esperamos devemos simplesmente ter uma atitude: ver e aprender. Para não mais se repetir.



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