Wednesday, October 25, 2006

As xoxas velhas

Há muitas coisas na vida que parece nunca fazerem sentido para nós, sendo arremessadas para um canto simplesmente porque não as conseguimos resolver. Tal e qual como o cubo mágico, que só alguns privilegiados conseguem resolver em poucos minutos (e alguns tristes nunca conseguem fazer aquela porcaria), assim é a vida. Todos nós temos alguma coisa a dizer e a fazer por ela, mas enquanto alguns conseguem arranjar significados precisos para o que acontece, outros não conseguem.

Tenho tido alguns privilégios raros, mas todos eles recentes. Um deles é o de trabalhar no que gosto realmente, outro é o de trabalhar com quem gosto, e finalmente a liberdade de muitas vezes poder fazer o que quero, com pouco ou muito dinheiro. Ao longo da vida sempre encontrei quem me ajudasse a não sair dos trilhos. Óbvio que tenho dias em que penso no pior que pode acontecer: perder tudo isto, e é bom ter essa consciência. A vida é mesmo impermanência.

Uma coisa eu sei, gosto muito de viver, mesmo em dias de chuva e mesmo em situações que não sei dar a volta. Por gostar de viver é que comprei uma cama com colchão ortopédico, para dormir melhor, tento saber as receitas mais saudáveis, tento perceber como é que posso evitar doenças, procuro ir regularmente ao médico fazer todo o tipo de exames, e leio tudo e mais alguma coisa acerca das vias espirituais e espiritualizantes da vida. Não sou uma iluminada, mas gosto de iluminados, de preferência sapientes e que saibam explicar, mesmo que as coisas já tenham sido ditas uma e outra vez.

No outro dia deparei-me, numa revista médica, com um conselho magnífico para evitar o stress, de modo a prevenir quer o cancro, quer as doenças coronárias: não tentar stressarmos com situações que não podemos mudar de todo. Apesar de existirem situações de pura injustiça com as quais nos temos de debater e que obviamente gostaríamos de mudar, a começar pelos carros estacionados em cima dos passeios, às filas de espera no médico, à má educação diária das pessoas que nos atendem, às pessoas que nos passam à frente nos empregos sem terem capacidades para isso, temos de pensar que podemos sempre mudar qualquer coisa, que devemos reclamar, fazer queixa, ou permitir que o próprio tempo se encarregue de mostrar que assim não pode ser.

A minha tristeza não vai só para estas situações. Vai para as xoxas de velha. Eu explico o código linguístico. Xoxa de velha, no Algarve (pelo menos em Olhão) significa simplesmente «alforreca». Alforreca é um nome feíssimo. Lembra-me verruga, lembra-me forro, e al deve ser um prefixo árabe, que significa o artigo definido «o» ou «a». A forreca? Se o nome era feio, vejam como os olhanenses o substituíram para outro ainda pior, na ordem da adjectivação, como diz o Ric. Xoxa de velha. Eu sempre pensei que isso fosse calão para dizer «órgão sexual feminino», vulgo vagina. Este belo pensamento poderia perfeitamente ser incluído nos «Monólogos da Vagina». Então estou a falar de vaginas, ou seja, metonimicamente, de mulheres. Mulheres-alforrecas. Como o livro daquele professor universitário atrevido chamado «Couves e Alforrecas – segredos da escrita de Margarida Rebelo Pinto».

Xoxas velhas são mulheres muito semelhantes a alforrecas: venenosas, dissimuladas na areia ou no mar, só damos conta delas se as pisarmos. Aí, tornam-se agressivas e nojentas, fazem imensa comichão e provocam em quem as pisou (mesmo que seja sem querer) uma vontade imensa de fuga, de afastamento e de stress pós-traumático, do género: “Ai, meu Deus! Uma alforreca! Não quero pisá-la!”. Porquê velhas? Pelos vistos porque as alforrecas são semelhantes às vaginas das senhoras velhas, terão o mesmo aspecto, coisa que só saberei quando for velha, se lá chegar. Metaforicamente falando, as gajas-alforrecas assemelham-se imenso a velhas tristes e amargas que já desistiram da felicidade, do amor, da conquista das coisas pelo esforço. Mas nas velhas isso é bastante perdoável, porque a idade, a doença, a perda propiciam muitas vezes que se desista. Uma velha raramente vai à procura do amor, ou de ser feliz, ou de fazer um mestrado, um curso qualquer, um estudo (excepto as velhas que vão a congressos). Raras são as velhas que agem desse modo, até pelo nosso enquadramento cultural. Em Portugal, os velhos são simplesmente pessoas tristes e acabadas.

Agora quando se é mais novo dissimula-se essa tristeza com outros artifícios que, no agora, no hoje, no presente, são excelentes, mas que com o tempo veremos serem simplesmente perdas de tempo imperdoáveis. É importante termos amigos, namorar, investirmos na vida pessoal e na profissional, mas de uma forma mais ou menos transparente, para que nunca possa haver dúvidas, nossas e dos outros, de que agimos pela informação processada pelo nosso coração e razão, e não pela nossa ganância, inveja, falta de consideração pelo próximo. Tudo o que está a este nível eu classifico como falta de humanidade. E isso provoca que, anos e anos mais tarde, a solidão ataque com uma força que nenhum dinheiro do mundo pague, nem nenhum condomínio de luxo, nem nenhum desejo aparentemente satisfeito, nem nenhuma viagem cara, nem um mestrado ou um doutoramento. O mais importante é a nossa consciência, e eu ainda não percebi como é que algumas pessoas vivem na ausência parcial (ou total) dela, mas a verdade é que sim.

As xoxas de velha passam os dias a dissimular o que não têm: dinheiro, estatuto, beleza, inteligência, moral, modéstia. Uma alforreca não tem nada disso: parece uma bosta de ranho e escarreta de velho doente, são pobres, não têm qualquer estatuto, a menos que seja na taxonomia dos seres vivos*, e são desprovidas de inteligência ou sequer esperteza. Moral e modéstia são coisas de que não precisam. Existem e têm uma função qualquer na natureza que eu ainda não descobri (lançar veneno aos peixes?). Assim há pessoas iguais, tipo «não me toques ou eu lanço-te veneno, não me pises, não me maces, não me impeças o caminho». A diferença é que uma alforreca não segue as pessoas. Fica ali, deitada, ameaçadoramente, com um ar triste. Podemos cobri-la de areia, tocar-lhe com um pau, sentarmo-nos em cima (ou, se tivermos irmãos mais novos, atirar-lhes com ela…eu levei com algumas). Apanhamos com o veneno, mas ela não vem atrás de nós de forma agressiva, a gritar: “Ai que agora vais ver! Vou-me vingar!”. Portanto, eu gosto mais de alforrecas do que de xoxas de velhas. As alforrecas ainda podem ser levadas pelo mar para algum sítio (também nadam livremente), mas as xoxas de velha fazem bem pior do que isso: transportam-se a elas próprias (ou fazem alguém transportá-las) para o mais perto possível dos outros, sob pena de serem umas coitadinhas a precisarem de apoio e terem «muito jeito para lidar com pessoas». Todavia, gostam de fazer o papel exacto de uma alforreca: ficarem na areia, dissimuladamente, à espera de uma vítima ingénua e desabrigada, que não tenha maturidade ou experiência para saber que ela está ali para envenenar e não para incentivar. Depois essa pessoa faz o papel da onda que as transporta para onde elas querem ir, servindo de meio, servindo de canal, prestando um serviço de cooperação do qual acham uma recompensa que ainda não descobri qual é. Então lá vai a alforreca, rumo a outra areia, fixar-se noutro local para apanhar mais vítimas desprotegidas. Talvez as xoxas de velha vivam disto: sugar os outros impiedosamente.

As xoxas de velha são normalmente «as putas que têm sempre sorte», na expressão utilizada pelo meu amigo Paulinho, que conhece gente com médias medíocres tiradas em privadas que estão no ensino com horários completos, e que apesar de não saberem escrever português dão a disciplina de português (ou língua portuguesa) e formação na mesma área, qual especialistas completas e dedicadas. Pronto, este é um exemplo, como muitos outros, de corrupção no trabalho a favor das xoxas velhas. Há a corrupção na vida comum, todos os dias, a pessoa que nos rouba o lugar no supermercado ou pára no lugar dos deficientes, por exemplo, ou respira no nosso ombro enquanto estamos no Multibanco, não para ver o código, mas simplesmente por má educação.

Há a corrupção familiar, as pessoas que se metem na família por algum motivo menos aceitável, como explorar, mentir, trapacear, envenenar. Xoxas velhas, portanto. Relações que não promovem o amor e a harmonia são simplesmente detestáveis, e ninguém, por mais ganancioso que seja, vive só de dinheiro e de metas definidas sem valores, cujo lema é «o mais importante é lá chegar, não como se chega lá», porque isso subverte todas as regras da espiritualidade, que dizem o contrário. Apesar disso, uma xoxa velha a sério dirá sempre que o percurso de aprendizagem é que lhe interessa, porque uma xoxa velha mente com a boca toda. Quando uma xoxa velha gasta os seus recursos, não sabe mais o que fazer, copia as outras pessoas que a circundam, a ver se pega, e, apesar de se dar mal com as outras pessoas, dirá sempre que se dá muito bem, que tem jeito (isto porque alcança os objectivos), que é estupenda (como é que ninguém vê isso…), que sabe tudo, que aprende tudo rápido e que é muito sensível aos outros. Ao menos uma alforreca não diz nada.

Perguntas pertinentes para todos os leitores (ajudem e enviem-me as vossas respostas):

1) Quando acaba o reinado de uma xoxa de velha? O meu amigo Paulinho diz que é nunca. Eu cá não sei…a vida muda todos os dias e há pessoas que nos parecem coerentes na sua maldade, mas são fracas por dentro e esboroam-se como miolo de pão seco. Eventualmente o seu reinado poderá acabar quando Cristo descer à terra novamente;

2) Que fazer a uma xoxa de velha? Pontapeá-la até chocar com uma rocha e ficar a boiar na água, à deriva? Deixá-la envenenar as pessoas de quem gostamos? Ignorá-las, mas ter cuidado para não as pisarmos? Pôr a xoxa de velha em terapia (mesmo que ela seja terapeuta, ou assim se considere)? Como evitar o stress diário que uma xoxa de velha provoca nas pessoas? Esperar que ela envelheça e veja o que é bom para a tosse? Ou seguir os conselhos dos mestres budistas e pensar que o que nós detestamos nos outros é o que temos de pior dentro de nós e mais reprimido, e por isso não devemos escamotear essas características, nem excluí-las do nosso mundo; nesse caso a solução passará sempre por aceitarmos as circunstâncias sem as tentarmos influenciar com a nossa perspectiva de vida;

3) Onde vivem as xoxas velhas? A preferência de qualquer pessoa seria sempre: a milhas. A realidade é outra: vivem sempre perto de nós, se não mudam-se para aí;

4) Que fazem as xoxas velhas? Mandam os outros para terapia, mas elas é que precisavam. O resto já aqui ficou descrito em pormenor;

5) Que profissões têm? Quase todas, mas as mais surpreendentes são as profissões de ajuda: médicos, psicólogos, formadores e professores. Xoxas velhas aqui é do pior que pode acontecer, porque prejudicam a vida a centenas de pessoas diariamente, sem escrúpulos nenhuns nem dor na consciência;

6) Que fazem nas horas vagas? Copiam os outros. Viajam à conta. Andam à procura de alguém que as sustente o resto da vida. Ah, e copiam os outros outra vez;

7) Quem amam? Ninguém. Não vale amar o próprio umbigo, porque uma pessoa que está sempre a dizer bem de si própria não deve ter grande auto-estima;

8) Quais os objectivos de vida? Atingir o sucesso por meios fáceis, ser sustentado sem esforço próprio nem contribuição mínima, prejudicar; de resto querem o impossível: ser felizes mandando os outros abaixo, como eu sou ingénua e ainda tenho uma réstia de crença no ser humano, acho que sendo mal intencionados só semeamos a discórdia e a desordem no universo, por isso não posso acreditar que xoxas de velha se saiam sempre bem ou tenham um fim feliz, porque se não desejamos a felicidade aos outros, que raio de bicho somos nós?

9) Em que ou quem acreditam? Em si próprias e nas pessoas que lhes lambem o cu, dizendo-lhes que são lindas e maravilhosas. Quem não lambe o cu está fora de jogo, vira-se as costas… Também acreditam em quem tem dinheiro, vontade de as sustentar e de trabalharem por elas. Em termos de valores morais, não têm nenhuns, por isso mentem dizendo que acreditam na ética, na moral, na transparência;

10) Quem odeiam? As suas antíteses. Xoxas velhas odeiam-me sempre. E eu odeio-as sempre também. Passam a odiar quem não lhes liga e se liga às antíteses delas, isso é que não perdoam mesmo…; também odeiam pessoas felizes;

11) O que acontece às xoxas de velha? Nada. No máximo são ofendidas, maltratadas ou ignoradas por quem não gosta delas, mas suponho que ignorem totalmente esse facto e passem ao capítulo seguinte da sua vida frutuosa sem qualquer problema, sem se perguntarem sequer «mas porque é que isto aconteceu?»; outras chegam mesmo a Ministras e fazem os estragos que vemos;

12) Até onde pode chegar uma xoxa de velha? Até ao infinito, porque força de vontade aliada a maldade é uma mistura atómica muito poderosa, todavia aquilo que já vi permitiu-me chegar a estas conclusões: sobem na vida, na horizontal e nunca na vertical; têm profissões bem pagas; arranjam amantes porque nunca se casam com quem amam (casar por amor subvertia logo uma xoxa de velha); muita mais gente lhes passa a lamber o cu, porque ocupam posições de poder mesmo para isso; podem destruir completamente namoros, casamentos (o próprio e os dos outros); as pessoas respondem-lhes na mesma moeda, portanto só se aproximam delas por interesse ou ingenuidade, e ao longo da vida a percentagem de interesseiros aumenta, mas diminui a percentagem de ingénuos (xoxas de velhas não enganam nunca, mas nunca, cotas e pessoas experientes), o que significa que xoxas atraem xoxas; raramente têm filhos para não estragar o corpo, mas quando têm são as melhores mães do mundo, apesar de nunca estarem com os filhos e com frequência estes serem crianças deprimidas; tratam mal quem está abaixo delas (empregados ou gente hierarquicamente inferior, ou sem as mesmas qualificações, quer dizer, se tiverem um mestrado tratam mal quem não tiver e assim por diante). Xoxas de velhas podem chegar a ter tudo, mas nunca chegam à felicidade suprema, à verdade, ao amor, à plenitude e à iluminação…o pior é que acham que sim, por isso é que o mundo está como está.

13) Como salvar o mundo de uma xoxa de velha? Esqueça. O mundo já está perdido há muito tempo. Todavia, pode-se escolher ignorá-las, trapaceá-las ou responder com as mesmas armas, sendo dissimulados e mal intencionados com elas. É que merecem mesmo…

* O Dicionário define alforreca como um «animal celentrado e cifozoário marinho, em forma de campânula, disco ou sino, de tecido gelatinoso e semitransparente, com órgãos urticantes, que nada livremente, também conhecido por medusa». Em termos metafóricos pode querer dizer, curiosamente, «coisa sem consistência, palavra mal formada, coisa ou pessoa defeituosa». (in VVAA, Dicionário da Língua Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, p.165).

1 Comments:

At 1:59 PM, Blogger Ana said...

venho um pouco tarde, eu sei, só dei com este canto agora... mas uma correcção: xoxas de velha são lebres do mar, não são alforrecas. :)

 

Post a Comment

<< Home