Tuesday, October 31, 2006

O pedigree (texto dedicado à Célia)

Ouvi no outro dia esta expressão e não sei se me deva rir ou chorar pelo facto de ter sido dita num estranho contexto de enunciação: numa reunião de empresa, tipo «balanço de produtividade», eu não sei, que na minha vida nunca trabalhei em grandes empresas, só em empresas bem rascas, como centros de explicações manhosos, situados em caves e sítios medonhos, sem balanços de produtividade e, pelos vistos, sem qualquer «pedigree». Não sei se sabem, mas o pedigree é a qualidade apurada da raça de um animal, ou seja, saber quantos e quais cruzamentos houve nas gerações anteriores e em que é que isso beneficiou, fortaleceu ou prejudicou a raça do dito bicho. Pela mesmo lógica, se aplicássemos a expressão «pedigree» a seres humanos, estaríamos a dizer que a avaliação da sua qualidade era feita em função dos cruzamentos anteriores, portanto, seria algo semelhante a «sangue azul».

Eu sempre achei uma idiotice julgar as pessoas pela família que têm. Como é isso possível, se à partida não escolhemos essa circunstância? Tenho conhecido muito boas pessoas com famílias miseráveis, mas também o caso contrário: péssimas pessoas com famílias razoáveis ou mesmo boas. Tinha uma colega minha na faculdade muito convencida do seu pedigree, mas os pais eram dois simples emigrantes com quinhentos relógios barulhentos e coloridos em casa, trazidos da Alemanha. Ela tinha imensa vergonha da ignorância dos pais, mas a verdade é que eram dois seres simples, honestos e simpáticos, ao contrário dela. De igual modo, há pessoas que revelam um bom fundo admirável, que decididamente não foi transmitido pelos pais, veio de outro lado qualquer, talvez seja o pedigree da pessoa, melhor dizendo, o carácter, a sua essência. Não adianta dizer aos nossos progenitores que eles são parvos, muitas vezes, porque os filhos são sempre de outra geração à frente, pensam de outro modo, e geralmente têm outro carácter, melhor ou pior.

Será que trabalhadores também podem ter pedigree? Quem são eles? Os que chegam a horas, os que trabalham mais, os que raciocinam melhor e mais rápido ou…os mais trapaceiros que lambem as botas ao chefe? O que é um trabalhador com pedigree?

O que é uma pessoa com pedigree? Os tipos da monarquia? Ou uma pessoa benzoca, que se tornou rica à custa de um bom casamento? A minha avó utilizava muito a expressão «fazer um bom casamento» ou «casar bem», que significava mudar de estatuto social, ser promovido por meio do casamento. Embora ela não tivesse defendido isso para ela, defendeu sempre para os outros. Ou será que uma pessoa de pedigree é uma pessoa que mostra estirpe, garra, sabedoria, conhecimentos, mesmo que não tenha nada disso? O pedigree é provavelmente medido por duas balizes: o dinheiro que se tem no bolso e o estatuto que se adquiriu, seja por mérito próprio ou não.

Há inúmeras pessoas que se auto-denominam como alguém importante e, se formos ver, têm falta de tudo, estão é cheias de lata, uma lata medonha que atravessa este mundo e o outro. Ter lata não consiste só em dizer o que vem à cabeça – embora na verdade isso possa ser pouco prudente em algumas situações. É muito mais do que isso. Conheço pessoas tão latosas que metem medo, e juro que é verdade. De há uns anos para cá já vi de tudo e já me desiludi com todo o tipo de situações, com a suposta desculpa «era a brincar». A brincar já me chamaram pobre, gorda, incompetente, idiota, estúpida e…uma pessoa com falta de pedigree, que o mesmo é dizer, sem doutoramento na manga ou com poucas qualificações para alguma coisa. Se eu tivesse acreditado nisso, não estava a fazer o que faço nem me tinha casado, nem ambicionava mais e melhor da minha vida, que nem sempre foi assim. Mas a acusação que até hoje me feriu mais, na minha vida toda, essa sim feita com falta de respeito e de pedigree por uma pessoa de baixo nível, foi que eu tinha «falta de humanidade». A mim pareceu-me de uma crueldade terrífica alguém me dizer isso, porque falta-me tudo menos isso: falta-me dinheiro (a mim e à Floribella), uma profissão estável, capacidade de defesa e de resposta a situações menos boas, falta-me um doutoramento, falta-me a minha mãe, todavia não me falta humanidade. E com humanidade não quero dizer «lagriminha fácil», dessas pessoas que choram nos filmes, que gostam de animais e criancinhas, mas são umas filhas-da-puta na vida do dia-a-dia. A humanidade transcende a caridade, a solidariedade. É perceber quem são os outros, por onde andam, porque erram, e perceber que tudo tem consequências, mesmo que não tenha um significado preciso. Humanidade é também a procura do conhecimento do outro (não é preciso estudar psicologia, só saber ouvir, interpretar, falar).

A mim uma pessoa com pedigree parece-me sempre uma pessoa com humildade para aprender com os outros, antes de mais, e com a capacidade para ouvi-los, mas também para fechar os ouvidos à mediocridade e à ignorância dos outros. Talvez o pedigree seja uma certa superioridade a bocas foleiras, atitudes foleiras, gente foleira que gosta de copiar os outros ou de mandá-los abaixo com o intuito de dizer a si próprio/a «ai que fantástico sou!», apesar de, bem lá no fundo, saber que não é. Acho que ainda não ganhei esta imunidade…olha, talvez eu não tenha pedigree.

2 Comments:

At 8:08 AM, Blogger Brisa said...

Tininha, tu és "rafeira" - o teu sangue tem mistura de algarvio com alfacinha!! Mesmo rafeira, és um dos bichinhos mais amorosos que conheço - não sei como cabe tanta generosidade nesse corpinho estreitinho! O pedigree é bonito, é "bem", mas na realidade não serve para nada! Tenho tido muitos cães ao longo da vida, raferíssimos até cansar, mas todos de uma meiguice e inteligência que fere a alma quando chega a sua hora. Com as pessoas é o mesmo. Não é o canudo, a conta bancária ou a beleza que determinam o verdadeiro sucesso de alguém. É algo mais complexo do que isso - é a magia que cada pessoa tem, o brilho que emana e a generosidade desinteressada que coloca em tudo aquilo que faz para si e para os outros.

 
At 5:02 AM, Blogger fercris77 said...

Meu amor, que comentário bonito! Corpinho estreitinho? O Bino agradece, é porque ainda não viste as italianas...mas para onde vão as massas, as pizzas e os doces?
É verdade o que dizes. O arquivo secreto é um espelho do mundo e hei-de escrever sobre isso, porque não os mais cotados, financeira, eclesiastica ou academicamente que ganham os corações dos empregados. É esta tuga rafeirosa...lolol.

 

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