O merecimento
O merecimento depende de uma só coisa: da nossa interpretação da realidade. Quando vagueio no Vaticano, a fazer tempo para ver se sou a primeira a entrar no arquivo (nunca sou, são sempre os frades e os franceses, porque eu distraio-me a olhar para outras coisas), descubro centenas de pessoas que tiveram a sorte de, no meio das suas vidas atribuladas, poderem visitar Roma. Esta cidade fantástica é como uma esponja, absorve energia, absorve estrangeiros, mas é forte e poderosa, parece uma estaca. Sente-se perfeitamente que foi o centro do império romano – agora o império do Berlusconi e dos seus amigos corruptos. Mafiosos, corruptos, desordenados, expansivos, os italianos têm esta fama, às vezes justa, às vezes injusta. Todavia, são calorosos e têm o sangue na guelra, isto é, zangam-se com uma facilidade imensa e deixam transparecer o seu mau humor. Não são contidos, berram, gritam, esperneiam no meio da rua.
As pessoas que visitam Roma, amontoadas aos magotes em todo o lado, são de todo o género, brancas, altas, pequenas, orientais, ocidentais, esquisitas, aleijadas, doentes. Todavia, muitas conhecem Roma de uma maneira que eu não conheço, porque para mim não é um destino turístico, é um local de trabalho. Belíssimo e privilegiado. Por isso mesmo, levo os dias a ouvir as pessoas dizerem-me «ai que sorte que tens!», «ai que rico trabalho!», «és uma pessoa de sorte». Daí este post. O merecimento. Terei eu merecido vir até este destino feliz fazer o que faço? Como diz a Patrícia, cuidado com o que desejas. Quando viajo para aqui é o que penso. Eu desejei tanto isto, e por vezes sinto-me tão em desequilíbrio nas minhas emoções. Serei capaz?
Lido bem com a solidão, sobretudo porque tenho Internet, o que muito contribui para comunicar sem problemas. Não há o cara a cara com as pessoas, é verdade. E tenho saudades. Mas não morro por isso, não fico aflita, não me apetece voltar. Para mim o mais frustrante é a falta de velocidade com que aprendo as coisas. Quero aprender tudo de uma vez: onde é mais barato comprar, como ler um mapa, como ir de metro e de autocarro para aqui e para ali, e acima de tudo, como compreender italiano e falar italiano. Não tenho em conta que, neste contexto tão diferente do habitual, tudo é difícil para quem nunca se desenrascou sozinho, muitas vezes por preguiça, outras vezes porque nem me deixavam pensar. Se eu fosse só fruto da minha educação, e não da minha força de vontade, provavelmente ainda saberia fazer menos. Fui tão amordaçada ao medo do desconhecido, que se tivesse ficado no mesmo sítio a ouvir que porque chove não devo ir trabalhar, que devo estar sempre a comer, que devo andar sempre muito agasalhada, provavelmente hoje seria uma obesa sem futuro e sem vontade de coisa nenhuma.
Será que merecemos? Será que merecemos que as coisas nos corram mal? Será que merecemos os nossos pais, as nossas mães, os nossos irmãos, os nossos patrões? O que nos acontece, na vida?
Há teorias que dizem que somos nós os seleccionadores do que nos acontece. Escolhemos lições para aprendermos com elas e evoluirmos nas nossas falhas, crescermos. Mas será que sim? Ou melhor, será que é sempre assim? Muitas das vezes não será azar? Ou sorte e azar dependem mesmo de quem nós somos e de como interpretamos as nossas experiências? Se quisermos muito uma coisa ela acontece? E se não quisermos e ela surgir?
Há uns anos atrás não colocava sequer a hipótese de vir trabalhar para Roma, nem sequer de estudar os assuntos que estudo. Há uns anos atrás não colocava hipótese alguma. Queria sair de casa, onde me sentia entalada, a sufocar, numa vida que nunca desejei. Comigo é de extremos. Eu sou de extremos, talvez. Eu desejo muito, as coisas acontecem. Eu desejo muito que não aconteça, as coisas acontecem. Devo ter um pensamento potenciador de experiências. Talvez todos nós tenhamos, só que o usamos muito pouco. Eu uso muito. Acontece-me tudo de que tenho medo. Acontecem-me também as coisas que eu quero, mas a um outro nível, mas lento, mais langoroso, ou assim o interpreto. A mim as coisas más parecem ser como vulcões cheios de lava. Transbordam. Talvez eu potencie todas essas experiências. Talvez estivesse destinada a elas. Talvez eu estivesse destinada a Roma, quando me apaixonei por ela, aos dezasseis anos, no início do estudo do latim. Nessa altura, o meu professor de latim parecia-me ser a pessoa deste mundo que mais sabia de tudo e mais alguma coisa. Mas, mais do que nunca, todos os ensinamentos dele estão aqui, mesmo ao lado. Se eu pensar nisso, é uma emoção muito grande, fico comovida. Eu consegui. Estou cá, a ler documentos em latim. Eu já estive cá? Eu já estaria destinada a estar cá? A primeira vez que vi o Vaticano e as pontes ao pé do Castelo de Sant’Angelo pensei que estava noutra vida diferente da que tinha antes. Pensei ter renascido, reencarnado. Pensei se isto me estaria mesmo a acontecer nesta vida. Porque pensava nisto mas não achava possível.
Do mesmo modo, as coisas menos boas também são assim: um deslumbramento pela negativa. Eu sempre tive medo de perder a pessoa que mais força tinha, na minha família, que tudo suportava: a minha mãe. Tinha pavor de ser eu a eleita para o lugar dela. E infelizmente isso aconteceu. E eu estive anos a passar por situações em que me sentia triste e desanimada, humilhada pelo medo, incapaz de avançar, de pensar sequer que poderia mudar isso.
Não sei se é culpa, se se pode dizer isso ao que nos acontece. Mas há tantas coisas em que somos estupidamente culpados e nem damos conta. Temos relações sufocantes e humilhantes com as pessoas, como se elas tivessem o dever de nos dar oxigénio para respirar. E deixamos. Somos mesmo culpados. Porque o tempo passa e não educamos os outros para não dependerem de nós, nem nos auto-educamos para não dependermos dos outros. Somos tristemente algemados num sofrimento inglório, em que esperamos mais e mais dos outros. Se isso um dia muda dizemos que sofremos uma grande desilusão, que nos traíram. E provavelmente alguém nos traiu, de facto, nós próprios. Nós próprios traímo-nos nas nossas expectativas inglórias dos outros. Achamos que eles vivem para nós. Com uma função. E se essa função se perde? Se um marido ou namorado deixa de o ser? Se a mulher passa a mãe, mas embora não deixe de ser mulher, é outra diferente, uma pessoa com atenção a mais coisas?
Somos escritores e subescritores da nossa vida. A nossa assinatura está no melhor e no pior que fazemos, e nas coisas mínimas, insignificantes, toscas. Nós somos a nossa melhor biografia. Está tudo marcado no corpo, na alma. As minhas emoções estão concentradas nos mesmos sítios: nos olhos e nas costas. Curiosamente são os meus instrumentos de trabalho, entre outros, como as mãos, as pernas, e, nunca esquecer, o meu cérebro.
Quando vejo os senhores do arquivo penso em como serão eles quando eu não estou lá. Invariavelmente iguais. É um bocado indiferente quem entra e quem sai. É um trabalho um bocado triste, mesmo que o Papa lhes pague fortunas. No entanto gosto muito deles e não sei explicar porquê. Cabem dentro do meu coração. E quando saio daqui tenho saudades, até dos senhores do café, da Paola a fumar à porta a dizer-me «Ciao!» e do senhor que me diz sempre «Salve!» e do outro que me diz «mangia primo, paga doppo!» (come primeiro e paga depois). É que para eles é tudo normal, mas para mim é novidade. Não é uma biblioteca igual às outras, nem um local de trabalho igual aos outros. Mas parece que os conheço há muito tempo, só que há uma barreira e não lhes posso dizer nada, como a sereia do Hans Christian Andersen não podia falar com o seu amado. Às vezes penso «estava destinada a conhecê-los?». Talvez seja estúpido gostarmos de pessoas que mal conhecemos. Porque será que umas nos inspiram tanta confiança e outras não? Teremos falado a mesmo língua, antes da Torre de Babel? Porque será que quem me atende me inspira confiança e às vezes, mesmo noutra língua, sei que está a dizer a verdade? Não será estranho?
Muitas das vezes, apesar de eu já ter saído de depressão, penso que, na realidade, não saí do mesmo sítio, foi só uma impressão. Que há coisas queimadas na minha pele, nos meus sentimentos, na minha cabeça, que nunca vou sair de depressão e do luto, ou seja do que for, que a tristeza, uma vez por outra, toma o meu tempo e o meu espaço interior, mesmo dentro do arquivo, e eu sou a mesma de sempre: uma pessoa frágil à procura de coerência e de felicidade, que não entende nada das outras pessoas, dos seus objectivos, das suas palavras, dos seus ritmos, porque vivo noutro mundo muito diferente. Mas talvez não viva. Algumas pessoas entendem-me muito bem. Algumas pessoas eu entendo bem. Seja em que língua for. Talvez algumas pessoas mereçam o meu entendimento, e talvez eu também mereça o delas. Nunca se sabe…
O merecimento depende de uma só coisa: da nossa interpretação da realidade. Quando vagueio no Vaticano, a fazer tempo para ver se sou a primeira a entrar no arquivo (nunca sou, são sempre os frades e os franceses, porque eu distraio-me a olhar para outras coisas), descubro centenas de pessoas que tiveram a sorte de, no meio das suas vidas atribuladas, poderem visitar Roma. Esta cidade fantástica é como uma esponja, absorve energia, absorve estrangeiros, mas é forte e poderosa, parece uma estaca. Sente-se perfeitamente que foi o centro do império romano – agora o império do Berlusconi e dos seus amigos corruptos. Mafiosos, corruptos, desordenados, expansivos, os italianos têm esta fama, às vezes justa, às vezes injusta. Todavia, são calorosos e têm o sangue na guelra, isto é, zangam-se com uma facilidade imensa e deixam transparecer o seu mau humor. Não são contidos, berram, gritam, esperneiam no meio da rua.
As pessoas que visitam Roma, amontoadas aos magotes em todo o lado, são de todo o género, brancas, altas, pequenas, orientais, ocidentais, esquisitas, aleijadas, doentes. Todavia, muitas conhecem Roma de uma maneira que eu não conheço, porque para mim não é um destino turístico, é um local de trabalho. Belíssimo e privilegiado. Por isso mesmo, levo os dias a ouvir as pessoas dizerem-me «ai que sorte que tens!», «ai que rico trabalho!», «és uma pessoa de sorte». Daí este post. O merecimento. Terei eu merecido vir até este destino feliz fazer o que faço? Como diz a Patrícia, cuidado com o que desejas. Quando viajo para aqui é o que penso. Eu desejei tanto isto, e por vezes sinto-me tão em desequilíbrio nas minhas emoções. Serei capaz?
Lido bem com a solidão, sobretudo porque tenho Internet, o que muito contribui para comunicar sem problemas. Não há o cara a cara com as pessoas, é verdade. E tenho saudades. Mas não morro por isso, não fico aflita, não me apetece voltar. Para mim o mais frustrante é a falta de velocidade com que aprendo as coisas. Quero aprender tudo de uma vez: onde é mais barato comprar, como ler um mapa, como ir de metro e de autocarro para aqui e para ali, e acima de tudo, como compreender italiano e falar italiano. Não tenho em conta que, neste contexto tão diferente do habitual, tudo é difícil para quem nunca se desenrascou sozinho, muitas vezes por preguiça, outras vezes porque nem me deixavam pensar. Se eu fosse só fruto da minha educação, e não da minha força de vontade, provavelmente ainda saberia fazer menos. Fui tão amordaçada ao medo do desconhecido, que se tivesse ficado no mesmo sítio a ouvir que porque chove não devo ir trabalhar, que devo estar sempre a comer, que devo andar sempre muito agasalhada, provavelmente hoje seria uma obesa sem futuro e sem vontade de coisa nenhuma.
Será que merecemos? Será que merecemos que as coisas nos corram mal? Será que merecemos os nossos pais, as nossas mães, os nossos irmãos, os nossos patrões? O que nos acontece, na vida?
Há teorias que dizem que somos nós os seleccionadores do que nos acontece. Escolhemos lições para aprendermos com elas e evoluirmos nas nossas falhas, crescermos. Mas será que sim? Ou melhor, será que é sempre assim? Muitas das vezes não será azar? Ou sorte e azar dependem mesmo de quem nós somos e de como interpretamos as nossas experiências? Se quisermos muito uma coisa ela acontece? E se não quisermos e ela surgir?
Há uns anos atrás não colocava sequer a hipótese de vir trabalhar para Roma, nem sequer de estudar os assuntos que estudo. Há uns anos atrás não colocava hipótese alguma. Queria sair de casa, onde me sentia entalada, a sufocar, numa vida que nunca desejei. Comigo é de extremos. Eu sou de extremos, talvez. Eu desejo muito, as coisas acontecem. Eu desejo muito que não aconteça, as coisas acontecem. Devo ter um pensamento potenciador de experiências. Talvez todos nós tenhamos, só que o usamos muito pouco. Eu uso muito. Acontece-me tudo de que tenho medo. Acontecem-me também as coisas que eu quero, mas a um outro nível, mas lento, mais langoroso, ou assim o interpreto. A mim as coisas más parecem ser como vulcões cheios de lava. Transbordam. Talvez eu potencie todas essas experiências. Talvez estivesse destinada a elas. Talvez eu estivesse destinada a Roma, quando me apaixonei por ela, aos dezasseis anos, no início do estudo do latim. Nessa altura, o meu professor de latim parecia-me ser a pessoa deste mundo que mais sabia de tudo e mais alguma coisa. Mas, mais do que nunca, todos os ensinamentos dele estão aqui, mesmo ao lado. Se eu pensar nisso, é uma emoção muito grande, fico comovida. Eu consegui. Estou cá, a ler documentos em latim. Eu já estive cá? Eu já estaria destinada a estar cá? A primeira vez que vi o Vaticano e as pontes ao pé do Castelo de Sant’Angelo pensei que estava noutra vida diferente da que tinha antes. Pensei ter renascido, reencarnado. Pensei se isto me estaria mesmo a acontecer nesta vida. Porque pensava nisto mas não achava possível.
Do mesmo modo, as coisas menos boas também são assim: um deslumbramento pela negativa. Eu sempre tive medo de perder a pessoa que mais força tinha, na minha família, que tudo suportava: a minha mãe. Tinha pavor de ser eu a eleita para o lugar dela. E infelizmente isso aconteceu. E eu estive anos a passar por situações em que me sentia triste e desanimada, humilhada pelo medo, incapaz de avançar, de pensar sequer que poderia mudar isso.
Não sei se é culpa, se se pode dizer isso ao que nos acontece. Mas há tantas coisas em que somos estupidamente culpados e nem damos conta. Temos relações sufocantes e humilhantes com as pessoas, como se elas tivessem o dever de nos dar oxigénio para respirar. E deixamos. Somos mesmo culpados. Porque o tempo passa e não educamos os outros para não dependerem de nós, nem nos auto-educamos para não dependermos dos outros. Somos tristemente algemados num sofrimento inglório, em que esperamos mais e mais dos outros. Se isso um dia muda dizemos que sofremos uma grande desilusão, que nos traíram. E provavelmente alguém nos traiu, de facto, nós próprios. Nós próprios traímo-nos nas nossas expectativas inglórias dos outros. Achamos que eles vivem para nós. Com uma função. E se essa função se perde? Se um marido ou namorado deixa de o ser? Se a mulher passa a mãe, mas embora não deixe de ser mulher, é outra diferente, uma pessoa com atenção a mais coisas?
Somos escritores e subescritores da nossa vida. A nossa assinatura está no melhor e no pior que fazemos, e nas coisas mínimas, insignificantes, toscas. Nós somos a nossa melhor biografia. Está tudo marcado no corpo, na alma. As minhas emoções estão concentradas nos mesmos sítios: nos olhos e nas costas. Curiosamente são os meus instrumentos de trabalho, entre outros, como as mãos, as pernas, e, nunca esquecer, o meu cérebro.
Quando vejo os senhores do arquivo penso em como serão eles quando eu não estou lá. Invariavelmente iguais. É um bocado indiferente quem entra e quem sai. É um trabalho um bocado triste, mesmo que o Papa lhes pague fortunas. No entanto gosto muito deles e não sei explicar porquê. Cabem dentro do meu coração. E quando saio daqui tenho saudades, até dos senhores do café, da Paola a fumar à porta a dizer-me «Ciao!» e do senhor que me diz sempre «Salve!» e do outro que me diz «mangia primo, paga doppo!» (come primeiro e paga depois). É que para eles é tudo normal, mas para mim é novidade. Não é uma biblioteca igual às outras, nem um local de trabalho igual aos outros. Mas parece que os conheço há muito tempo, só que há uma barreira e não lhes posso dizer nada, como a sereia do Hans Christian Andersen não podia falar com o seu amado. Às vezes penso «estava destinada a conhecê-los?». Talvez seja estúpido gostarmos de pessoas que mal conhecemos. Porque será que umas nos inspiram tanta confiança e outras não? Teremos falado a mesmo língua, antes da Torre de Babel? Porque será que quem me atende me inspira confiança e às vezes, mesmo noutra língua, sei que está a dizer a verdade? Não será estranho?
Muitas das vezes, apesar de eu já ter saído de depressão, penso que, na realidade, não saí do mesmo sítio, foi só uma impressão. Que há coisas queimadas na minha pele, nos meus sentimentos, na minha cabeça, que nunca vou sair de depressão e do luto, ou seja do que for, que a tristeza, uma vez por outra, toma o meu tempo e o meu espaço interior, mesmo dentro do arquivo, e eu sou a mesma de sempre: uma pessoa frágil à procura de coerência e de felicidade, que não entende nada das outras pessoas, dos seus objectivos, das suas palavras, dos seus ritmos, porque vivo noutro mundo muito diferente. Mas talvez não viva. Algumas pessoas entendem-me muito bem. Algumas pessoas eu entendo bem. Seja em que língua for. Talvez algumas pessoas mereçam o meu entendimento, e talvez eu também mereça o delas. Nunca se sabe…
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