Thursday, November 16, 2006

O mundo da investigação

O investigador, aqui em Portugal, não existe. Tal estatuto foi abolido há muito tempo – ou talvez nunca tenha havido. Há professores investigadores, há doutores, há mestrandos e doutorandos. Não há investigadores, ponto, sem vírgula. Como diz a minha amiga Diana, a vida do investigador é confundida com a de um parasita social, com a de um sem abrigo sem tecto. Aqui em Portugal, em primeiro lugar, não há estruturas para suportar a investigação, seja do que for e onde for e para que for. Já agora, para que serve um investigador e a investigação? Normalmente, é para deitar para o lixo. Aqui em Portugal, basicamente queremos coçar os tomates, dizer que pertencemos à Europa, que somos «produtivos» e, acima de tudo, não fazer nada. Por todos os motivos e mais alguns, mas sobretudo porque cansa (ou porque somos mal pagos, ou não somos pagos, ou não gostamos, ou não queremos, ou não temos tempo) não queremos fazer nada. Queremos estar atrás de uma secretária o dia todo e dizer que «produzimos», «descontámos», «tivemos lucro». Só existem estas palavras na mente materialista de governantes e do povo, que quer reforma, e muito bem.
Agora o investigador. O investigador trabalha, tem horários, tem objectivos, como toda a gente. Mas, acima de tudo, não tem direitos, só deveres. O investigador não tem férias, nem 13º mês, nem subsídios de coisa nenhuma, e para além do trabalho dito «normal» (que normalmente é uma anormalidade), tem de fazer trabalho de graça. Ora este é um ponto sensível na cabeça das pessoas, porque, como é óbvio, ninguém gosta de trabalhar de graça e é algo que de ético nada tem. Mas vejamos. Se toda a gente pensasse que só por dinheiro é que o mundo funciona, iríamos ter um mundo construído sobre betão, com empresas e nada mais. Na realidade, estamos a caminhar nesse sentido. As nossas vias espirituais e espiritualizantes têm vindo a perder significado. Gostamos todos de dizer que damos importância ao que vale a pena, mas isso varia de pessoa para pessoa, e muitas pessoas simplesmente nunca aprenderam o que vale ou não a pena, porque orientaram toda a sua vida em função de um ponto só: sucesso material. Se isso existir tudo o resto compensa, mesmo que esmaguemos meio mundo. É evidente que num mundo assim, não há lugar para a filosofia, a história, a cultura, a arte, a literatura, e quem se quiser aventurar por aí ou tem dinheiro ou tem de se preparar para penar muitos anos. Porque há certos investimentos que nos vêm do bolso, e com toda a força do mundo. Não se faz mestrados ou doutoramentos sem dinheiro, por exemplo.
Até aqui, sempre tive um certo desgosto pela situação portuguesa. Achei sempre que tínhamos uma cultura rica, mas somos um povo acabrunhado, triste, espiritual (o fado é a prova disso), mas que se perdeu completamente. Não somos lá muito competitivos em nenhuma área. Os nossos especialistas, seja no que for, devem ter passado fome, frio, sede, ou então ganharam bolsas. Chegámos a um ponto meu conhecido. O que é uma bolsa? Uma bolsa é uma quantia de dinheiro, tipo saco do Patinhas, com euros lá dentro, em forma de contrato (normalmente) mas sem qualquer valor jurídico. Uma bolsa é o Estado a dizer «toma lá, miserável, vai estudar mais uns anos porque não tens emprego». O dinheiro vem todo da CEE, fundos comunitários, etc. O fundo comunitário paga ao Ministério ou departamento, este paga à Universidade e esta paga ao bolseiro, depois de pôr a render.
Mas nos outros países europeus parece ser bem pior. Em Itália ninguém é pago por nenhum trabalho de investigação. Na Alemanha é-se obrigado a pagar a própria tese de doutoramento ou não é publicada, nem aprovada. No arquivo do Vaticano andam polacos, franceses, ingleses, alemães, indianos, congoleses, mas só um tuga: eu. Dantes eram mais, e de vez em quando lá aparece outro tuga, um paleógrafo de qualquer coisa. Os documentos estão velhos, podres e mal amanhados com cordéis, não há caixas decentes, dá a sensação que os empregados fazem carrinhos de mão com elas e as põem no lixo (será?).
A forma assassina como tratamos a cultura é o espelho do que somos, enquanto país. É um bocado triste. O arquivo ainda espera que publiquemos alguma coisa. Enquanto os outros trabalham, ficamos a coçar os tomates. Há falta de financiamentos, é verdade, mas também há falta de fé nas nossas capacidades, há falta de crédito em nós próprios e há a mentalidade ultra-mercantilista de «não me pagam para isto». Se os alemães e os japoneses pensassem assim, nunca teriam reconstruído os seus países depois da guerra. Somos de vistas curtas. Achamos que, se não for pago, se não pudermos poupar uns tostões para a reforma, então não é bom, não é produtivo. É evidente que não estou a defender o trabalho de escravo ou o trabalho para patrões corruptos. Estou a defender um investimento pessoal que pode ser cultural, que pode levar mais longe a pátria. Que seria de nós se a Amália dissesse «vender limões é mais seguro do que cantar fado, que não vende, não vou nem tentar». Que seria de nós se os músicos dissessem que a música não dá dinheiro, se os pintores dissessem que a pintura não dá dinheiro, se os escritores deixassem de escrever porque, sem dúvida nenhuma, não dá dinheiro? Não teríamos uma base cultural tão rica e magnânime, certo? Um país produtivo não é só aquele que vai ao topo do ranking empresarial e investe no estrangeiro.
Palermas como eu, que vêm isoladamente investigar, a troco de uns tostões (que me deixam profundamente feliz, mesmo assim, e que, segundo os italianos, fazem de mim uma sortuda, porque eles nunca são pagos…), não são o orgulho do país nem nada disso. Não permitem as empresas crescerem, nem o PIB do país engrossar, mas porra, são palermas como eu que permitem que Portugal tenha uma história para contar ao mundo sem ser alvo de chacota. E todos os dias tenho de lutar, não fico à espera que lutem por mim, que escrevam por mim, que construam por mim. Faço eu. Não tenho medo.
Acho sempre que é difícil fazermos uma destrinça da nossa vida profissional e pessoal. Ou melhor, é possível fazer uma destrinça, mas em muitos pontos tocam-se profundamente. Quando vejo pessoas cuja ambição galga por cima dos outros, percebo que, pessoalmente, essas pessoas não podem ser boas esposas ou boas mães. Quando vejo pessoas incompetentes, percebo que essa é também a postura delas na vida, o desinteresse pelos outros. Quando vejo pessoas muito convencidas e egocêntricas no trabalho, percebo que as pessoas estabelecem com os outros uma relação interesseira e egocêntrica, cujo único interesse é a garantia de que o seu umbigo será bem tratado. Pessoas assim há aos pontapés, mas aos pontapés mesmo. Assim como há pessoas tão rígidas e espartilhadas no trabalho, que só sabem ser assim na sua relação com os outros: rígidas e espartilhadas. Seja como for, e bem sei que quase ninguém percebe o que ando a fazer aqui no arquivo, Binos há poucos, e muito menos ainda Binos estudiosos dos documentos antigos (atados com fios desfeitos), que passam o dia enfiados num arquivo a cheirar a mofo, com janelas abertas nas costas, num país muito diferente do seu, com uma língua diferente da sua (apesar de isso ser comum e perfeitamente usual para os franceses, espanhóis, ingleses, alemães e polacos). Qual é a importância disso? Pois um mercantilista, um oportunista, não irá ver. Mas qualquer pessoa sensível perceberá algo muito importante: sou responsável, numa ínfima parte, pelo meu país, e é isso que anima todas as minhas manhãs, de sol e de chuva, aqui em Roma. Não é só Roma que é bonita, nem os passeios que dou (que são muito poucos), nem as pessoas que conheço (poucas também) que animam a minha estadia. É o meu sentido de responsabilidade, de defesa de uma causa que é uma ínfima parte do mundo, e que, ao menos isso, é parte do meu mundo. Talvez a minha honradez não destrone gente interesseira, mas prova que o bem, às vezes, tantas vezes, também compensa…




1 Comments:

At 7:06 AM, Blogger Brisa said...

Tu coças os tomates??? Não sabia...

 

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