Wednesday, November 15, 2006

A arte de saber respirar

Aprendi, desde que comecei a fazer ginástica, sobretudo Pilates, que respirar é uma arte que desaprendemos na correria do dia-a-dia. Achamos que respirar é algo inato, que não vale a pena estudar, mas não. Custa imenso, em todos os sentidos. Respirar custa, quando fazemos o que não gostamos. Respirar custa quando somos infelizes. Respirar custa quando temos dores. Respirar custa quando olhamos o passado, e às vezes quando olhamos o futuro. Respirar custa quando temos um ataque de pânico. Respirar custa quando somos comprazidos numa angústia inominável.
A mim respirar custa. Tive de reaprender a respirar, para meu bem. Fisicamente falando. E há bem pouco tempo apercebi-me de que, psicologicamente, há muito tempo que não sei respirar, porque me deixo ir em cantigas, como dizem os portugueses. Como é que, mais uma vez, as pessoas tentam fazer o que querem de mim? Como é que, mais uma vez, me deixei cair no mesmo buraco onde tenho vivido nos últimos anos? A resposta é esta: nunca aprendi a respirar correctamente. A inspirar pelo nariz, a expirar pela boca, a fazer isto vezes sem conta sem me comprazir nas palavras dos outros, mais do que isso, nas suas atitudes egoístas e egocêntricas, de domínio. Adoramos dominar a vida dos outros, mesmo quando não temos domínio sobre a nossa. Porquê? Porque gostamos tanto de ser uns incapazes connosco próprios, mas de achar que podemos ter poder sobre os outros? É assim que somos.
Até uma certa idade, é normal os pais terem poder sobre nós, os professores, mais tarde os patrões. A forma de exercício de poder nem sempre é a melhor ou a mais correcta. Há o poder que ajuda, o poder que humilha, o poder que compraz. Nunca há um poder simples, desinteressado, não está na natureza humana. Que poder escolhemos nós exercer sobre o outro? O poder que está em nós, que é no fundo aquilo que somos de essência. Pode ser um poder langoroso e solitário, esmagador, dependente, chantagista. Pode ser um poder autoritário e raivoso, humilhante.
O poder chantagista irrita-me muito. É quando queremos dominar as circunstâncias da vida dos outros exercendo uma pressão emocional, de dependência. Achamos que, se a pessoa se afasta uns milímetros, não temos controlo sobre ela, e isso deixa-nos desprovidos de qualquer poder. Achamos que comparando, dizendo «eu fui melhor do que tu» ou alguém é melhor do que tu conseguimos convencer a pessoa da sua fraqueza, fazê-la hesitar, entrar em conluío com a nossa opinião, uma vez que a estamos a colocar publicamente em questão. Na realidade, isso dá origem a uma só coisa, a menos que sejamos uns sortudos: solidão. Não queremos aceitar que a vida das outras pessoas não é um campo da nossa jurisdição. Achamos que temos poder sobre elas, um poder quase jurídico, sobretudo se formos pais. Mas que raio de poder podem os pais ter sobre os filhos quando eles vão à vida deles? Nenhum. Mas o certo é que têm. O certo é que querem definir estratégias de vida que muitas vezes não resultaram nem com eles.
Porque será que eu tenho sempre a ideia, mesmo sem ser mãe, de que se pode amar incondicionalmente um filho de uma forma saudável, sem estarmos sempre a rebaixá-lo, humilhá-lo, persegui-lo, querer saber o que faz, com quem faz, para onde vai e a que horas? Claro que achamos sempre que temos capacidades para sermos pais diferentes, e na realidade nem sempre temos. Quando criticava a minha mãe ela respondia-me sempre «um dia tens os teus filhos e logo vês». Mas porque será que vigiar os outros me parece uma tarefa tão obsessiva e desprovida de senso? Pais hiper-vigilantes nunca têm filhos que necessitem de vigilância. É uma das injustiças da vida. Devíamos ter esses pais para filhos drogados, mal comportados, mal educados, e nunca para seres «normais». Mas é sempre o contrário. Quanto menos precisamos de pais vigilantes, mais eles parecem querer ir dormir connosco, viver connosco, comer connosco, sugar o nosso tempo, os nossos filhos, a nossa alma, a nossa paciência.
Porquê essa paranóica do poder? De esmagar o outro, de anulá-lo, de moldá-lo ao nosso modo? É verdade que muitas vezes apetece. Apetece agarrar em atrasados mentais e desfazer-lhes os miolos. Apetece agarrar em meninos mal comportados e tirar-lhes tudo o que têm, melhor, dar-lhes consciência para perceberem quem são. Apetece mandar abaixo pessoas convencidas, de barriga cheia, que sempre tiveram alguém a resolver-lhes os problemas todos. Mas isso não é um exercício de poder, necessariamente, mas sim de justiça, de sentido da vida. Claro que muitos de nós sabemos o que é a justiça, mas outros não. Muitos temos consciência, mas muitos não temos. E vivemos todos no mesmo mundo, por isso é natural que as pessoas não gostem todas umas das outras. Em quem o disser, como a minha avó diz, é parvo, porque obviamente podemos não detestar ninguém, mas há sempre alguém que nos diz menos e por quem não nutrimos especial afecto. Eu sou uma mulher de muitos afectos e de muitos ódios. Mas quando odeio estou certa de que não odeio uma pessoa por ser feia, bonita, bem ou mal vestida, de boas ou más famílias. Odeio pessoas estúpidas, fúteis, manipuladoras, convencidas sem razão para isso e com falta de valores morais. E há a categoria das pessoas que me irritam, mas que eu não odeio, por lhes reconhecer mérito e bom fundo. Que são as pessoas que espartilham os outros, que querem evitar que os outros respirem sem a sua autorização, que, sem se aperceberem, deitam abaixo as pessoas de uma forma dura, porque lhes aniquilam capacidades não as reconhecendo nunca. Nestas pessoas a expressão de comportamento mais comum é «faz porque eu acho que está bem, independentemente da tua opinião».
Nestes dois tipos de pessoas, a resolução tem de ser a mesma: distância. Não há hipótese de destronarmos uma pessoa odiosa, mas esperta, com maus fígados e sem consciência. Assim como não há hipótese de explicar a uma pessoa intrometida e chata que ela é intrometida e chata. Podemos sempre tentar. Mas mesmo que se comprove o óbvio, que estas pessoas ficam sozinhas porque ninguém as atura, há sempre um ou outro palerma que lhes permite a segurança de existirem como são. Mas a vida e o mundo são selvas autênticas: todos têm a sua missão. O leão de caçar, a gazela de ser comida. Se a gazela não quiser ser comida não enfrenta o leão, esconde-se ou foge, ou faz trabalho de grupo e anda com outras gazelas para confundir o leão.
Eu não gostaria de saber que o meu amor sufocava alguém. Sentir-me-ia má pessoa se algum dia me apercebesse disso. Um amor sufocante é um amor virado para nós, egocêntrico. A única mensagem que transmite é «preciso de ti, sem ti não vivo». E amor é amor, oxigénio é oxigénio. Confundimos os dois. Como diria o Deepak Chopra, o amor verdadeiro é desinteressado, desvinculado do ego, não diz «eu», acima de tudo, zela pelo outro sem o fazer igual a nós. Um amante competente sabe disso. Sabe que um amor que sufoca é um amor patológico, doentio, irreversível, que não se olha num espelho de verdade, esconde-se atrás de uma mentira, que é a de pensar que nós somos mais do que os outros, que nós é que precisamos dos outros e que sem os outros somos uns desgraçados. Uma pessoa que se espartilha neste tipo de sentimentos não é uma pessoa adulta, é uma criança assustada, parada no tempo e no espaço da mágoa, que evita que os outros vivam fora da sua esfera territorial de posse. É uma pessoa que não é, que não está bem, que não existe muito nem muitas vezes em si mesma. Existe nos outros, para os outros, pelos outros, a partir dos outros. E se os outros não quiserem?

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