O que somos
O budismo tem uma perspectiva acerca das pessoas que me impressiona deveras, pela sua capacidade de perdão, extremamente superior ao catolicismo. O budismo não vê as pessoas como boas ou más, vê as pessoas como lições, com tudo aquilo que sabem e que representam. E talvez, mais do que nunca, seja necessário pensar assim. Sou franca: continuo a acreditar no bem e no mal, nos bons e nos maus carácteres. Mas também acho que todos elas são lições, são sim senhora, para aprendermos a não fazer os mesmos erros e a não perdermos tempo com inutilidades. Porque perdermos tempo com a galinha do vizinho é realmente de uma inutilidade sem par, mesmo quando o vizinho é o pai, a mãe, o irmão ou o cunhado.
Não interessa. Interessa estarmos bem com a nossa consciência, vivermos uma vida sã, rodeados de amigos e de pessoas que nos dizem alguma coisa. Interessa – mais que nunca – termos saúde, num país no qual em cada doze mulheres uma tem cancro da mama, e dos 2.400 casos novos que aparecem, todos os anos, mais de 1000 mulheres sucumbem à doença. Este é só um exemplo, porque Portugal sofre de outros males, como os ataques cardíacos, as doenças degenerativas, os acidentes de automóvel, que mutilam e matam adultos e crianças. Embora ninguém se chateie muito com isto, na verdade, todos os dias venho a pensar que é muito chato sermos bombardeados, diariamente, com questões menores, do diz-que-disseste, das ofensas mesquinhas, das pessoas que convidamos ou não para um casamento (que, afinal, é uma questão muito importante e eu nem sabia disso, que as pessoas podiam perder o respeito pelo outro só porque não foram convidadas para alguma coisa).
Um dia, temos mesmo de decidir se queremos ser como as pessoas das revistas, glamourosos e parvos, ou se queremos ser pessoas verdadeiramente inteligentes e viver com consciência. Viver com e em consciência é viver no presente (embora tendo projectos de futuro), percebermos que somos uma parte ínfima do universo do conhecimento, mas provavelmente uma parte gigante do coração dos nossos amigos e familiares que realmente gostam de nós. Viver assim parece tão fácil. E é tão difícil. Simplesmente porque nos perdemos. E porque nos perdemos? Primeiro, porque desde há muito nos esquecemos da simplicidade que é existir. Só existir. E ficar a olhar o sol, a sentir o frio da água, a sentir a areia nos pés, a sentir o açúcar do chupa-chupa, a lamber o resto do bolo na forma, a ficar à espera do Pai Natal na noite de Natal. A Patrícia tem razão. É melhor continuar a acreditar no Pai Natal. Ao menos acreditando continuamos a ser infantis e genuínos.
A segunda razão para nos perdermos é acreditarmos no pior de nós, que normalmente vem espelhado nos outros. Agarrarmo-nos à parte mais suja do nosso ego, que é o egoísmo, a mesquinhez, a torpeza, o atirar bocas, a falsidade, a hipocrisia e até a má criação. O melhor de nós também vem espelhado nos outros, mas temos de ir à procura, dá muito mais trabalho. Se ficarmos sentados onde estamos, não vem ter connosco. Ao perdermo-nos de nós, perdemos a verdade do que somos e ficamos presos a uma ideia de perfeição inexistente. Ficamos na caverna de Platão a olhar sombras. A maior parte de nós vive neste estado semi-consciente a vida toda, até acontecer um susto, uma desgraça, uma catástrofe de proporções avassaladoras. A mim aconteceu-me isso. A morte da minha mãe foi para mim a realidade a chamar-me da minha caverna, obrigou-me a abrir os olhos para uma coisa importante: não era só eu que estava na caverna, mas comigo estava (e está) a grande maioria das pessoas, cujos desafios passam por pouco mais do que ter uma casa maior, um carro maior e uma vida invejável. A isso chamam sucesso. A isso eu chamo viver na merda. Porque sem uma consciência, quem somos nós? E tenho descoberto que o que menos falta no mundo são pessoas inconscientes: da sua personalidade, do seu carácter, do seu efeito nos outros, dos seus valores, do seu modo de vida. Vejo coisas gritantes que as pessoas conseguem classificar como «honestas» porque lhes assentam como uma luva. E as coisas que nos assentam como uma luva nem sempre são honestas. Na realidade, é um defeito educacional as pessoas não terem aprendido isto em casa. Um namorado que nos assenta como uma luva pode não ser quem realmente amamos, mas sim a pessoa que nos traz mais benefícios na vida, e nesse caso estamos a dar ao ego o que ele nos pede, mas não estamos a ser conscientes nem verdadeiros connosco próprios. Vivendo uma vida assim, seremos sempre inconscientes, excepto se o universo conspirar contra nós e nos der a nossa lição de uma forma mais brusca e aterrorizante do que estávamos à espera. Foi o meu caso. Ver a minha mãe a morrer revelou-me essa verdade: por muito que custe a verdade, não podemos ser inconscientes. A inconsciência também se paga, e o preço não são móveis caros. O preço somos nós enquanto pessoas. É que se quisermos viver rodeados do bem, ninguém nem nada nos impede. Mas se quisermos viver rodeados do mal também não. A questão é: será que distinguimos o bem do mal? Será que sabemos o quanto prejudicamos ou beneficiamos as outras pessoas à nossa volta? Convém saber, porque essa é a definição do nosso papel no mundo.
Agora chegamos à velha história incomodativa para muitos dos seres conscientes, como eu, do seu papel no mundo: cheio de boas intenções está o inferno cheio. Ah pois é…esta frase quer dizer que, por muitas e boas intenções que tenhamos, por vezes falhamos. E falhar consiste em cair em saco roto uma atitude que considerámos, do nosso ponto de vista, certa, correcta, consciente e digna. Tenho muitas vezes atitudes que classifico deste modo e sou, permitam-me a palavra, crucificada por elas. Só que temos sempre de pensar como Jesus Cristo: crucificado hoje, um profeta amanhã. Das duas uma: ou ele era mesmo filho de Deus ou tinha uma grande capacidade de argumentação. Uma coisa é certa: influenciou, com a sua palavra, povos de todo o mundo. E falamos de Jesus Cristo, mas podia ser o Gandhi. Ou até o Padre Manuel Antunes, cuja filosofia e ideias políticas perduram até aos nossos dias. Decerto não sou tão importante como eles, sou uma pensadora de estirpe bem diferente, mais quotidiana, mas não tão light como a Margarida Rebelo Pinto. Simplesmente desempenho o papel que me cabe, com a minha asa de Arcanjo São Miguel. Do outro lado não é lido assim: pelos vistos sou uma megera, fiz pacto com o diabo, destilo veneno. Talvez durante uns tempos seja melhor o mundo inteiro achar que somos loucos: porque ou somos mesmo, ou temos aquilo a que os especialistas em espiritualidade chamam de supra-consciência. E ter uma supra-consciência é estar num patamar maduro de leitura da realidade circundante. Há quem lá chegue com a idade, há quem chegue cedo, há quem nunca lá chegue. A Elisabete chama-lhes «almas velhas». Mas eu chamo só percurso mais rápido do que aquilo que é comum. Talvez seja um estádio de desenvolvimento que outrora tivemos na infância, quando ainda não andávamos às compras nos centros comerciais e não tínhamos a ganga de significados estereotipados que hoje temos em cima. É intuição. E embora todos a tenhamos, muitos folgam em escondê-la. Da intuição passa-se para a formulação de um esclarecimento prévio (talvez seja a moral provisória de que Descartes falava) e depois o definitivo. E daí ninguém nos tira: nem a voz mais melíflua, nem a argumentação mais poderosa, nem a violência mais arreigada, nem a raiva, nem a humilhação, nem a frustração, nem o mau carácter. Porque quando chegamos aí, nós finalmente somos nós. E isso ninguém nos pode impedir.
4 Comments:
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
É o que eu sou. E um dia serei muito(s) dos meus sonhos*
Estás a ser muito auto-destrutiva (ou o eu poético está a ser muito auto-destrutivo). Há quem ache que é tudo, e com isso nunca aprenda nada, há quem se ache nada e essa é a condição socrática para sermos tudo. Talvez destruir tudo para reordenar as peças seja essencial, mas é só para esclarecidos como tu. Não se pode nunca esperar isso do mundo.
Eu sou uma esclarecida, uma iluminada.. Eu vi a luz! lol Mas deve ter sido um efeito secundário das muitas drogas que me receitaram no hospital. (Vá, ainda não é desta que volto ao rio do esquecimento) :p
Ai, amiga, não é nada das drogas do hospital, é dos cogumelos que andas a comer, esses é que dão alucinações de tal forma fortes que tu tens o condão de adivinhar os livros que eu gosto de receber no Natal...
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