Friday, June 15, 2007



O momento

Já há uns dia para cá que reflicto sobre a vida mais do que é costume. Nunca sei se isso acontece porque estou mais em baixo, porque preciso, porque sou coerente, porque me assumo ou simplesmente porque pressinto coisas com muita velocidade e muita rapidez. Muitas vezes não durmo a pensar no momento. «E se…?». E há milhares de respostas que se abrem à minha frente.
Em 2004 fui assaltada. Uma coisa parva mesmo. Às vezes não temos a culpa, vamos distraídos na rua a alguém aparece com uma faca, saca-nos o dinheiro. Ficamos a pensar: “ Porquê? “. Não sabemos. Muitas pessoas são assaltadas e têm pior sorte. Acabamos com um certo regozijo por não ter acontecido nada de grave. Gosto pouco de falar da vez em que fui assaltada, mas foi o carro roubado. Com tanto banditismo e eu tinha de me pôr, irresponsavelmente, à beira da estrada no carro com o meu namorado. Muitas vezes penso «Porque é que fui tão estúpida?», muito mais do que «Porque é que fui assaltada?», já que dei como óbvio que ali, àquela hora, só não seria assaltada por uma grande sorte. É curioso que nos momentos seguintes é que fiquei em pânico, porque, no próprio momento, eu ouvi uma voz dentro de mim que me descreveu rapidamente a vida: “ Não te vai acontecer nada hoje, mas aprende, tudo tem consequências. Agora descansa. “ Na verdade, aprendi a ser muito mais prudente do que fora até esse momento, a temer um pouco mais andar de noite, mas acima de tudo, aprendi a ouvir a minha voz interior que distingue o certo do errado.
Por vezes um momento é decisivo na vida e não volta mais. Às vezes o momento é a casa que decidimos ter, a vida que decidimos levar ou, como diz o BossAC, em cinco minutos faz-se um filho. Não precisamos de mais de cinco minutos para ver a vida desgraçada: há acidentes que duram segundos e mudam a vida para sempre, seja deixar uma torneira aberta, não usar contraceptivo, parar o carro à beira da estrada ou brincar com fogo. No mais recente caso da Madeleine, quantas vezes acham que os pais já devem ter pensado «Porque raio deixámos os miúdos sozinhos em casa naquele dia?». Se a minha mãe tivesse decidido fazer uma mamografia há muitos anos atrás talvez não tivesse morrido, assim como muitas outras pessoas que fogem do médico a sete pés. Somos desafiados muitas vezes num momento só: uma arma apontada à cabeça, uma pessoa que nos provoca, uma decisão qualquer que temos de tomar em cima da hora. Chama-se impermanência a esta característica da vida, que é mutante, volátil, que se perde e se ganha em minutos, segundos, fracções de segundo. E só acompanhando esse ritmo podemos aprender a viver. Nada fica para sempre no mesmo sítio.

Tuesday, June 12, 2007


A data

Detesto muitas datas instituídas e quase toda a gente que me conhece sabe isso de cor. O Natal e a Páscoa, a passagem do ano e por aí fora. Das poucas datas que aprecio são as dos meus anos e as dos meus amigos. Todavia, das piores datas que recordo são sem dúvida as das mortes das pessoas próximas: a minha mãe e o meu avô. Tristemente sei que não há nada a fazer, não há a hipótese de ignorá-las. Com os anos dilui-se a vontade de «encomendar» missas ou ir pôr flores às campas. Mas com os anos aprende-se a moderar o sofrimento, a fazer o luto da existência que tivemos, a saber gerir quem somos, aceitando-nos, sem arrependimentos pelo meio. Isso significa uma visão libertadora da vida. A culpa, o arrependimento, a frustração de não recuperar momentos perdidos de nada servem se não para aprendermos a continuar.
Dia 11 de Junho de 2001, às 16h20 ou muito próximo disso, estava eu na Clínica de Santo António a observar a minha mãe em agonia. Encontrei-me comigo mesma, completamente sozinha, frente a frente com a morte, e curiosamente, não fugi. Colada ao chão, nem pensava «porquê?», ouvia uma voz dentro de mim que soprava isto «Aprende, amanhã podes ser tu». É estranho, mas a grande maioria das pessoas não dá importância a esta voz. Ouve tudo menos aquilo que deve. E limita-se a continuar, que é afinal o que toda a gente faz. Tornamo-nos autómatos. Foi a época em que mais precisei de ajuda e não consegui ajudar. E tenho pena, alguns mereceriam mais a minha ajuda, mas eu não estava bem ali, andava a pairar, e muitas das coisas desses primeiros tempos eu já esqueci. Outras não e são muito curiosas: por exemplo, estranhar que se gastasse tanto dinheiro com a comida, que a casa andasse sempre suja mesmo quando eu a limpava, ou mesmo chegar à cozinha para contar alguma coisa à minha mãe, como fazia todos os dias, e ela não estar lá. Também pensava como se sentiria o meu pai, igualmente abandonado em mil afazeres. E pensava «e agora? Se o meu pai morre?». É estúpido porque eu não era nenhuma menina quando isto aconteceu. Tinha 24 anos. Mesmo assim saiu-me o tapete debaixo dos pés. Que burrice não saber sobreviver aos 24 anos!...
Cheguei aos 30 anos com uma expectativa muito menos elevada das pessoas e muito mais realista (acho) do mundo. Ainda confio nas pessoas e tenho fé na vida, ainda sou positiva e optimista em muitas aspectos (pelo menos quando me comparo com alguns pessimistas de estirpe), mas sei sempre que a principal mensagem me acompanha todos os dias: acima de tudo defender-me, defender aquilo em que acredito, ter consciência. A consciência é a base da iluminação. Leiam «O Livro Tibetano da Vida e da Morte», de Sogyal Rinpoche, é dos melhores livros que já vi, porque explica a morte e a vida e mesmo para mim, que não acredito na reencarnação, muitas das coisas que ali estão parecem fazer sentido. A acreditar nos meus estados de semi-consciência (os célebres bardos) eu beneficiaria em fazer meditação, conseguiria uma iluminação superior. Por enquanto, só observo e escrevo, só penso e sinto, como todos os outros seres humanos, e os sítios onde chego já não me parecem nenúfares que flutuam, mas estacas seguras.
A iluminação de espírito não vem com o tempo nem com a experiência de vida: vem com a consciência. Muitas pessoas atingem estados de iluminação bem cedo, o que segundo os budistas quererá dizer que reencarnaram muitas veze e estão muito mais preparadas para encarar a vida do que a grande maioria das pessoas.
No livro de Sogyal Rinpoche, ele descreve a história curiosa de um dos seus mestres, que chora copiosamente cada vez que há uma passagem de ano. Interrogado do porquê de tal facto ele responde: “ Lembro-me que as pessoas envelhecem e cada vez estão menos preparadas para a morte “. Esta frase indicia um facto curioso: quanto mais nos aproximamos da morte mais a tememos, por isso odiamos tanto envelhecer. Depois há o discurso célebre de que a idade traz não só memórias mas muita maturidade, e não é bem assim. Há muita gente que fica simplesmente onde está a vida toda, tornando-se obtusa e à medida que envelhece o esclarecimento parece fugir das mãos. Portanto, se não é a idade, a passagem do tempo que traz iluminação, o que nos traz iluminação senão a vontade de percorrer o caminho de forma justa e honesta?
Sou daquelas pessoas que acha que nunca é tarde para aprender. Muitas vezes, tarde e a más horas, quando nos apetecia descansar da vida, somos confrontados com um problema que nunca demos conta, uma falha nossa, por vezes grave e temerosa. Se não podemos corrigi-la, podemos alcançá-la, percebê-la, transformá-la. Basta querer. Se me disserem que às vezes é tarde, eu vou concordar. Se me disserem que às vezes as falhas são muitas e já não vamos a tempo de consertar todas, eu vou concordar também. Todavia, nada disso é desculpa para não tentarmos.
Porque escrevo, ou porque observo, ou mesmo pela influência que sempre a literatura teve na minha vida, sempre achei que tudo é uma lição, uma metáfora, uma alegoria. A minha mãe é uma alegoria magnífica: a morte dela ensinou-me que temos de saber fracassar, aceitar o sofrimento como parte integrante da vida, mas também me ensinou a nunca desistir. Lembro-me que depois de a minha mãe ser operada, impedida de mexer o braço direito, começou a aprender todas as tarefas com o braços esquerdo. Portanto, muitas pessoas deveriam aprender, como fez a minha mãe, a mexer o braço esquerdo, ou aquele a que damos menos uso, menos valor, o que está mais quieto, mas que está ali, é importante, precisa de ginástica e o qual esquecemos ao longo da vida que é parte integrante do corpo. Assim são muitas coisas na vida: esquecemo-nos delas mas temos a oportunidade de utilizá-las anos mais tarde, quando já estamos ferrugentos.
Tal como as nossas casas, tornamo-nos muitas vezes empilhadores de lixo: o lixo emocional, o nosso e o dos outros. Acumulamos palavras, actos, ansiedades do que vai acontecer, do que nos disseram ontem, o que nos vão dizer amanhã. Eu vivo assim e reconheço que não ajuda, não é certo e que tenho muito a mudar dentro de mim até chegar ao ponto em que entenderei que eu sou eu e ninguém destrona isso. Não é uma visão egocêntrica, porque eu posso ser eu e continuar a perceber que no universo sou um ponto muito pequeno, que faço parte de um puzzle universal muito grande. A humildade é a base de qualquer caminhada. O resto é como sempre ouvi: o caminho faz-se caminhando.

Sunday, June 03, 2007

Palavra de homem

Às vezes os homens têm razão. Por exemplo o meu pai. O meu pai é dono de quase toda a razão do mundo e tem um sentido de humor fantástico. Dizem que os pais são para as meninas o seu modelo de homem para o futuro. O meu não é bem. Gosto de sentido de humor e de razão, mas também gosto que um homem esteja do meu lado, me defenda e apoie e que saiba fazer qualquer coisa em casa. Será pedir muito? Não, acho que hoje em dia os homens já têm de vir com esse pacote, ou então molda-se.
Os homens são muito filhos de mãe. Não filhos da mãe. Um filho de mãe é um bebé grande e mimado, que joga playstation e vê pornografia no computador em vez de ir pôr a mesa, mesmo depois de seis berros da mulher (lembra-vos alguma coisa?), aos trinta, quarenta anos. O bicho homem é muito engraçado, mas ficar sozinho tá quieto, precisa sempre da sua Eva ao pé para lhe dizer «é desta árvore que deves comer maçãs». Um homem precisa muito de uma mulher. Uma mulher também precisa de um homem, naturalmente, até porque não se reproduz sozinha e os bancos de esperma não têm piada nenhuma. Mas uma mulher, mesmo quando é dependente, sabe ser independente. É o que eu acho. A minha avó toda a vida dependeu financeiramente do meu avô e nunca fez nada do que ele lhe disse. Digamos que uma mulher saber manipular um homem com uma habilidade inigualável.
Então vamos começar pelo meu pai. Não posso dizer que a minha mãe não se queixasse das suas ausências. O meu pai nunca soube fazer grande coisa na cozinha e na casa. Hoje em dia, quando o visito, as panelas têm teias de aranha. Quando a minha mãe lhe dizia para aspirar a casa, ele fazia isso, mas pelo meio via televisão e contava anedotas. Eu devo ter saído a ele, porque a lida da casa, hoje em dia, diverte-me. A minha mãe não achava piada nenhuma à lentidão do meu pai e aspirava a casa novamente, melhor e mais rápido. Mas isso era a minha mãe. E isso eram outros tempos. A minha mãe trabalhava aos Sábados de graça para a Segurança Social da Amadora funcionar decentemente, vinha para casa fazer o almoço, a lida da casa e muitas outras coisas. Quando um dia a vi em casa aos Sábados soube que era mau sinal. Estava doente.
Quando a minha mãe morreu, o meu pai reuniu a família, mãe, filhos e ele próprio (só quatro) e disse uma frase que me marcaria para sempre: “ Ninguém comete o erro de ir atrás da mãe. Cada um tem a sua função no mundo. Ninguém comete disparates “ Quer dizer, a minha mãe ia morrer e nós estávamos proibidos de segui-la. Palavra de pai, sempre disponível, porque quando eu era miúda e chamava pela mãe vinha ele e dizia “ Pode ser o pai? É que estou disponível “. Claro que o vi chorar. Imagino (ou não imagino) o que é perder a companheira de uma vida inteira. Mas nunca o vi vacilar muito, manteve-se firme, quer-me parecer que sempre acreditou no amor, na paixão, no enamoramento (do mais ingénuo que há), e acima de tudo na vida que ainda tinha para levar. O meu pai é daquelas pessoas a quem ocorre a piada mais estúpida no momento mais solene. Passados dias da morte da minha mãe passou por nós uma carreta funerária. Em vez de ficar triste, ele virou-se para mim e comentou com um sorriso: “ São confortáveis lá dentro, não são? “. E desatámos a rir.
Tenho poucos amigos homens. Gostava de vos dar uma razão para isso. Mas não tenho. Só se for qualquer coisa subconsciente: uma educação repressiva por parte da minha avó, por exemplo. Mas todo o meu percurso foi com mulheres, amigas, professoras, avó, mãe, que tiveram muito mais influência sobre mim do que pai, avô, amigos, irmão. Mas eles têm um segundo plano simpático, na minha vida, talvez pela relação ingénua que tenho com eles. Parece que com as mulheres sou uma pessoa mais séria, mais confidente, mais exigente, até. Sim, é isso. É porque sou uma mulher. Exijo delas o que exijo de mim: fidelidade, sinceridade, armas limpas. Talvez não fique tão surpreendida com a traição masculina, mas fique horrorizada com a traição feminina (na amizade). Talvez eu ainda seja um subproduto da minha educação machista. Que mau ter descoberto isto…
Para além do meu pai (e do meu avô) há o meu irmão. Mas é uma relação séria com superfície de brinquedo, porque geralmente encontramo-nos para dizer e fazer asneiras, contar piadas com séculos sobre pessoas já mortas, lançar à cara ofensas antigas. O que há por baixo disso ninguém sabe e nós também não exploramos muito, porque a vida é tão séria que mais vale brincar…
Mas amigos, tenho poucos. Anda pelos três, quatro homens, que posso considerar amigos e confidentes, com marido incluído. Ao contrário do que possamos pensar, sobretudo por estereótipo e imposição social, um homem pode ser um confidente sábio, sensato e muito importante para uma mulher. A sua palavra pode representar ouro, não só pela preocupação que manifesta, mas também pela perspectiva do «outro». Sim, porque a maior parte das mulheres tem problemas nas suas relações com homens e gosta de tagarelar sobre isso vezes sem conta. Gostamos de perceber se somos ou não somos a regra, se as outras pessoas têm problemas semelhantes e se há uma fórmula resolvente para cada assunto, que evidentemente nunca há, porque vemos casamentos desmoronar a toda a hora em relações fortes mas casamentos durarem em relações assentes em estacas de papel. Viver com o inimigo também é comum, o que há mais são pessoas doentes, controladoras, possessivas, que vêem nos outros um meio para chegarem a algum lado. Mulheres que se tornam objectos nas mãos de homens ou vice-versa é chapa quatro, como costumamos dizer. Tem a ver sempre com o mesmo problema universal: o problema da identidade. Se não soubermos quem somos e assentarmos a identidade no «outro», o mais provável é tornarmo-nos no outro, esquecendo que tínhamos uma identidade para procurar, melhor, enterrando a verdadeira identidade, que nunca mais fica ao alcance a menos que levemos de frente com «aquela liçãozinha de vida». Por isso é que eu acho que nem sempre uma ruptura é negativa. Dói, mas serve para um reencontro interior, e só se conseguirmos isso é que passamos à fase de um «novo» amor, porque se assim não for, o mais provável é cairmos nos mesmos erros vezes sem conta.
Gosto muito de falar com mulheres: dizem o que pensam, mas são sensíveis, ajudam, disponibilizam-se para estarem ali se alguma coisa correr mal. Mas com um homem é diferente. Talvez ele não atenda o telefone às três da manhã ou não esteja sempre disponível no messenger ou não responda durante semanas a telefonemas, mas quando fala, está certo no que diz, é exacto, objectivo, pragmático, a vida é quase matemática nas mãos dos homens, sem perderem a sensibilidade. A mulher é boa organizadora, tem sentido prático, mas tem sempre coração mole. Por vezes mostra um coração tão mole que é incapaz de dizer a uma amiga «ai que disparate! Esse tipo dá cabo de ti!». Mas um homem, mesmo que lhe custe, diz isso, até porque é homem, saberá decerto o que um parceiro do mesmo sexo anda a fazer a uma amiga.
Não acho nenhum dos homens que conheço parecido com o meu pai: nem o meu irmão, nem o meu companheiro. O meu pai é de uma outra geração, em que um homem cuidar de bebés era «uma vergonha», em que o usual era não saber cozinhar – nada supera o pai da minha amiga Estela, que torrou uma posta de bacalhau na torradeira - e claro, estar do lado da «mãezinha» que mói a nora até ao tutano. Hoje, um homem tem um mínimo de obrigações, viver com uma mulher pode não implicar tomar o seu partido, mas pelo menos perceber em que parte fica ela sem a magoar. Casar ou viver junto implica estar preparado para saber o que é uma casa, como limpá-la e organizá-la, porque muitas das vezes a mulher é que trabalha até tarde. Implica, no caso de quererem filhos, a percepção da maternidade por parte do homem, física e psicologicamente. Implica partilhar a educação da criança, não permitir que a mãe seja sempre a castigadora, a má da fita. Portanto, há papéis que se exigem de um homem, há papéis que um homem só pode exigir de uma mulher se ele também os souber desempenhar. Há uma relação o mais paritária possível. Ou assim deveria ser.

Dar ou não dar opinião

Há muitas coisas na vida sobre as quais não temos opinião porque simplesmente não sabemos do que tratam. Muitas pessoas abstêm-se de comentar seja o que for quando não sabem. Todavia, há muitas pessoas que não sabem e comentam. É do pior possível ouvirmos «devias fazer assim», e contra-argumentarmos «mas eu faço assado» e não adianta. Há coisas, nas outras pessoas, que nos deixam estupefactos e quase doentes. «Porra, mas não entendes?». De nada vale.
Acontece muitas vezes olharmos e não gostarmos do que vemos. A questão é: mas temos de gostar? Racionalmente não. Só que vemos centenas de vezes amigos nossos fazerem asneiras que já fizemos e queremos dizer-lhes «não vás por aí». Às vezes, pouco tempo depois de tomarmos uma decisão, achamos que devíamos ter ponderado muito mais sobre ela porque acarretou inúmeros aspectos negativos e pesados para nós. Mas a vida é mesmo assim…
A partir de certa idade, e se fizermos parte do grupo de pessoas azaradas (como eu) que só muito tarde arranjam sustento próprio, escoceamos para arranjar o «nosso» canto, a «nossa» casa. Porque não queremos pais atrás de nós a vida inteira a perguntar «onde vais? A que horas voltas? Vais com quem?». E mesmo depois de respondermos a tudo isso, eles ficam com dúvidas. Até aos vinte ainda vá. Mas depois disso, ó meus amigos, não dá… Todavia, como dizia a minha amiga Diana, não há outro sítio como a nossa casa, e muitas vezes descobrimos isso da pior forma possível, porque fugimos de um problema e vamos dar com outro muito semelhante. Ou é karma ou é simplesmente um problema mal resolvido dentro de nós. Estou convencida que é o meu caso. Tenho um problema dentro de mim de excesso de independência, mas ao mesmo tempo uma vontade enorme de que alguém tome conta de mim. E isso nunca acontece. Sinto-me sempre por minha conta e risco, pelo menos nas situações que implicam resposta. Pior do que isso, tento educar as pessoas à minha volta para não dependerem de mim, e elas dependem imenso, o que é estranho. Em suma, vou sempre no sentido contrário àquilo que pretendo.
Muitas pessoas vivem assim mesmo a vida delas: sem saberem quem são. Os problemas de identidade são os maiores causadores de tristeza, cansaço, abatimento e até catástrofes. Vazios por dentro, vamos à procura do que nos preencha. Uma vezes é um carro, uma casa, uma pessoa, ou então há um acumular de experiências negativas que vão ter a um sítio péssimo: a raiva. Ter raiva é como andar atrás do próprio rabo, sem um espelho não o conseguimos ver na totalidade. Andamos pateticamente atrás do que não podemos ter, basicamente porque não o encontramos dentro de nós próprios. Pode ser amor, realização, decisões certas, que são as pensadas, sentidas e experienciadas. Temos de saber para agir. Mas muitas vezes nada sabemos e temos de agir na mesma, certo? Quando somos pais, o que sabemos sobre ser pais? O que os outros dizem. E nunca chega. Há muito da vida que somos nós que temos de encontrar sozinhos. Não há, muitas das vezes, hipótese de dizermos a um amigo «olha melhor para essa decisão, vais cometer um erro», porque um erro é subjectivo, tem muitas faces, muitas interpretações e nem sempre os outros vêem um erro como nós.
Este tem sido um ano de desmoronamento e reconstrução. Tive de abandonar para viver, viver para experienciar, partilhar para compreender e finalmente acho que subi um degrau, se bem que muito pequenino, no entendimento do ser humano. Já não é só o cepticismo que me domina, o que é capaz de ser positivo. Agora também me domina a ambição de ser optimista e não permitir que a derrota dos outros e as suas opções me derrubem. Mas também aprendi outra coisa muito importante: nem sempre a nossa experiência pessoal é «comunicável», no sentido em que nem todos vão entender, nem perceber e alguns nunca chegarão a dizer-nos «afinal tinhas razão». O caminho individual de cada um é isso mesmo: individual. Sinto que acompanho os meus amigos até à beira da porta, mas não passo a porta com eles.
Quando a minha mãe morreu, eu visualizei isso: os meus amigos suspensos, à porta, à espera que eu aprendesse a lição na minha nova viagem, na minha descida ao interior profundo, ao que eu sou. Ainda estou em busca e em reconstrução, mas volto muitas vezes à beira da porta para lhes pedir ajuda. Do mesmo modo, sinto que acompanho os meus amigos até esse ponto: o ponto em que não devo mais dar opinião e fico só à espera das consequências. Elas existem, nisso eu acredito. Só que nem todos as vêem como tal. Muitos acham que são só obstáculos que aparecem para serem contornados (os mais obstinados), outros percebem que deveriam ter feito de um outro modo, mais responsável e adulto e crescem.
Não experienciamos a subida no degrau de forma palpável. Não dizemos «ah, exacto, foi agora!». Nos anos subsequentes à morte da minha mãe, acordar era infernal e impossível, porque tinha stress, ansiedade, ou porque me lembrava dela. Ficava doente, tinha taquicardias, chegava quase a desmaiar. Ia sempre trabalhar esgotada, cansada, desiludida, à espera que algo mudasse a minha vida, à espera de conseguir sair de casa sem me perguntarem onde ia e se podiam ir comigo, e me acompanharem à porta só para verem onde eu ia. Parecia que me movia com sombras fora e dentro de mim. Nesses anos raros foram os momentos que não acarretassem alguma espécie de dor, psicológica ou física. Quando consegui o trabalho que queria isso mudou um pouco, e mais tarde, quando saí de casa, mudou ainda mais. Progressivamente fui tendo vontade de acordar, levantar-me e até voltar a dormir no comboio, apesar das dores nas costas. Para mim foi uma subida no degrau ninguém me perguntar nada, poder dar uma volta sozinha, ir tomar um café comigo, sem ouvir «olha, ali está ela!» (eu nunca poderia ser uma estrela de novelas ou cinema!). Odeio vigilâncias apertadas, odeio o «estou de olho em ti!», lutei fervorosamente para mudar isso. Se mudei? Não, há sempre alguém à espreita, vai melhorando com o tempo, vamos arranjando armas para lutar contra isso, mas nunca muda tudo, muito fica suspenso, é assunto por resolver dentro de nós.
Na maior parte das vezes, pensamos que os problemas são extrínsecos, que convivemos muitas vezes com atrasados mentais prontos a rebentar connosco em cinco segundos e ficarem direitinhos, no seu lugar, sem uma nesga só que seja de arrependimento. Pior. Somos «obrigados» a viver a vida inteira com pessoas assim, quer dizer até termos independência, que hoje em dia quer dizer, vinte e cinco, trinta anos. Podemos ter sorte e só descobrir a lama humana fora de casa, ou podemos ter a infelicidade de sermos, também nós, tratados como lama, e por isso obrigados a «virar o jogo» muito cedo. Eu sou daquelas pessoas «entaladas», quer dizer, não vale a pena fugir para lado nenhum. Ou assumo e luto com força ou não consigo, porque mesmo que eu fugisse daqui para fora, iria encontrar pessoas iguais às que encontro, igualmente palermas, igualmente derrotistas e prontinhas a dizer-me que não sou capaz. Portanto, o problema sou eu.
Também nem sempre gosto de ouvir a opinião das outras pessoas (sobretudo se não pedir). Ao contrário daquilo que achava, a opinião dos outros tem peso e às vezes nem tem medida, dentro de mim. Outras vezes peço opinião e gosto de ouvi-la, mesmo quando sou confrontada com as minhas fraquezas. No fundo, preciso disso. Preciso de frieza e racionalidade para resolver disputas com o mundo exterior. Preciso que me digam «desiste», para que eu não persiga cegamente objectivos impossíveis, como por exemplo querer mudar um milímetro a cabeça das pessoas sem me chamarem nomes feios. Preciso que me digam que me esteja a cagar para situações que me parecem insolúveis, mas que me atingem como balas. Preciso sempre dos meus amigos. Da opinião deles, de lhes dar a minha opinião ou simplesmente ficar calada quando é preciso.