Thursday, January 18, 2007

A diferença

Muitas vezes ficamos confusos com coisas que, sendo aparentemente simples, nos metem medo. Algumas diferenças metem-me um medo terrível. Mas normalmente o que me mete mais medo é a nossa propensão a sermos/ficarmos todos iguais uns aos outros. Irmos às compras nos mesmos sítios, comermos as mesmas coisas, lermos as mesmas coisas, vermos os mesmos filmes, fazermos as mesmas coisas que os outros, e etc., etc. Gosto tanto de ir no metro ou no comboio e deparar com a diferença mais rebelde possível: alguém que se engalanou de tal modo nesse dia que dá vontade de rir, alguém muito perfumado ou tatuado, com roupa ou cabelo excêntrico. Alguém muito original, mesmo que seja em mau gosto, por assim dizer, com riscas e quadrados na blusa, uma saia à Floribella que mostra umas pernocas gordas, umas botas estupidamente enfeitadas e uma maquilhagem de meter medo a qualquer recém-nascido. Às vezes apetecia-me um arrojo, mesmo pequenino, um sopro desse tipo de atitude perante a vida. É verdade que pode não revelar nada, mas estou tão farta das pessoas como elas são, mesmo sem as conhecer…E adoro conhecer pessoas, conversar com quem dá gosto conversar.
Estou farta de vizinhos mal encarados que nem bom dia dizem e fecham o elevador na cara, estou farta de pessoas que levam o cãozinho a mijar e a cagar nos nossos carros, estou farta de funcionários mal encarados e irónicos sem razão, como uma vez, num hotel, em que eu perguntei se podia fumar, e tipo me respondeu «está a ver essa coisinha aí? É um cinzeiro!». Apeteceu-me mandá-lo à merda, palavra, mas educadamente expliquei-lhe que tinham sido promulgadas novas leis sobre o tabaco e respeitantes a fumar em espaços fechados e ele até concordou. Pode não ter sido «por mal», mas dever-lhe-ia ter dito que usar a ironia com um desconhecido faz com que se arrisque uma resposta em palavrão sonoro, ou a uma não-resposta, já que nem toda a gente conhece e sabe o que é a ironia. Este é um tipo de pessoas que, mesmo não sendo estúpida, é sempre estúpida.
Também há os inconscientes, que realmente não dizem «por mal», sai-lhes disparada uma piada parva. E há os parvos conscientes, de quem ninguém gosta, mas também ninguém se atreve a dizer «está calado, palerma!». É uma pena…porque é que perdemos tanto tempo com conversas insensaboronas, com pessoas sem aura, sem gosto, sem vida própria, que vivem na sombra do resto do mundo a tentar explicar o mundo através de olhinhos parvos?
Há uns tempos atrás, no Gato Fedorento havia um sketch cujo tema era um concurso de estupidez entre os empregados de café. Então as piadinhas mais votadas eram «quer um copo de água ou com água?» e «queria um bolo ou quer?». Mas porque é que pessoas que mandam piadas assim não são fulminadas pelos castigadores da parvoíce, como diziam noutro episódio do Gato Fedorento? Para além disso, há que ter em conta uma coisa muito importante: são empregados de café. Não têm mais do que o 9º ano, que hoje em dia equivale a uma 4ª classe antiga das menos exigentes. Agora pessoas formadas, trabalhadores da função pública, gente que tira mestrados e doutoramentos, ó meus amigos…qualquer dia também dizem na rua «minha jóia, deixa-me ser o teu ourives!».
Pelo contrário, há pessoas aparentemente simples, que sobressaiem por qualidades ditas normais, mas já muito raras na nossa sociedade: são genuinamente simpáticas. A senhora da limpeza aqui da universidade é um amor com toda a gente, desde empregados a alunos, as casas de banho estão sempre limpas e diz bom-dia a toda a gente. Não é uma pessoa negativa. Sente-se muito esforço, muita simplicidade, mas boas energias, ou como diria a Lisa, good vibes. Não pode ser interesseira, ninguém aqui lhe paga ou lhe dá mais ou menos pelo seu trabalho (não vó, não posso pôr qualquer coisinha no bolso da senhora para ela me limpar as janelas do gabinete), todavia ela é simplesmente simpática. Porque é que as pessoas não podem ser todas assim, um peixinho fresco em vez de um ultra-congelado? Olha, boa analogia. O peixinho fresco é genuíno, o outro era genuíno antes da camada de gelo. Onde raio arranjaram as pessoas tantas camadas de gelo?
Outra senhora que aqui trabalha é o pagode das colegas mais novas. Hoje estava a assistir a uma cena em que gozavam com a senhora porque encheu o prato de couves. Ó meus amigos, não têm mais que fazer? Calculo que estejam todas à espera que ela morra para lhe ficarem com o lugar. Mas a senhora é simpática, disponível, conversadora. É velha, sim, toda torta, mas sincera, porque quando lhe pedi os Diários da República de 1920 disse-me logo: “ Não tenho força para os trazer, mas já peço ao meu colega “, e mesmo a mim, que trabalho aqui, ela telefonou e deixou a mensagem que eu podia vir consultá-los quando quisesse. Porque raio há-de ser importante ela comer um prato cheio de couves? Parece-me tão mesquinho…
Todavia, a pessoa que manda aqui, que é «dr.», como muitos outros e outras que cá trabalham, é o cúmulo da arrogância e da má disposição. É uma dessas pessoas que me arrepia a espinha, porque acha que tem direitos mas não deveres. Entra aqui tarde todos os dias, segundo ele porque «vai ao ginásio», mas quando alguém sai mais cedo ou se atrasa reclama que nada anda para a frente (comportamento típico de manipulador autoritário e arrogante).
Muitas pessoas se situam na área dos direitos mas nunca nas dos deveres. Acham que querem, que podem, mas que os outros não podem nada, nem têm de querer coisa nenhuma. Ou então, simplesmente nem lhes ocorre que os outros existem. Por exemplo, mesmo aqui perto há um infantário. Em que pensam as pessoas que estacionam o carro em cima do passeio, à porta do infantário, para irem buscar os filhos? Meus amigos, há mais pais e crianças que precisam do passeio, certo? E o passeio é para andar, não é?
Mais uma vez é educacional. Sempre que oiço uma pessoa a dizer «nunca me conseguiram obrigar a nada, desde miúdo», penso em que raio de ser se terá tornado. Porque sermos contrariados, envergonhados, chateados pelos pais e restantes adultos parece-me saudável. Na verdade, terrível em algumas circunstâncias, mas se nos derem um docinho em vez de uma estaladinha ou empurrão, onde raio vamos parar? Ao mundo não dos direitos mas das exigências, ou do ficar «paradinho» à espera que nos apareça quem faça tudo, a ver se substitui os papás. Parece-me que somos alguém, na verdade, quando lutamos contra isto. Eu podia ter ficado assim. Seria até provável que ficasse. Mas não. Contrariei a tendência de me protegerem através da ignorância em relação ao mundo lá de fora. Às vezes gostava de dizer que fiquei a ganhar alguma coisa, mas parece-me que só ganhei mais consciência e lucidez. Já não é mau…

Os contra-valores

Já não me lembro qual foi o autor que inventou ou proclamou a autoria da expressão «relativismo axiológico», mas considero a expressão fantástica. Significa ver cinzento onde dantes se via a preto e branco. Significa perder valores cruciais e fundamentais para valores «mais ou menos». Significa que os Morangos com Açúcar tomaram conta da vida de todos os dias, de todas as pessoas, mesmo as que não vêem os Morangos com Açúcar ou não têm uma agenda dessas 2007. Eu tenho. O meu pai ofereceu-me uma, e decerto não foi por eu ver o programa, mas porque a maior parte das agendas onde ele comprou aquela deveria ser relativa à série da TVI.
Há muitas coisas de que as novas gerações são acusadas, às vezes injustamente. No tempo em que fui adolescente também fui assim, e já me sinto suficientemente satisfeita de não ser mais um jovem adulto a viver à custa dos pais, mas infelizmente já fui, por motivos de desemprego. Eu tinha uma amiga cuja filosofia era mesmo essa: se podes viver com os pais, é quente e confortável, porquê mudar? É coisa na qual não acredito. Quanto mais tempo em casa dos pais, menos percebemos o nosso sentido de responsabilidade, na vida. E sobretudo, de identidade.
No tempo em que eu andava na faculdade, lembro-me bem de ter tido colegas e mais colegas que trabalhavam para pagar o curso. Eu não tinha de o fazer, nunca fiz, pouco ou nada fazia em casa, e todavia, sentia que trabalhava horrores para conseguir boas notas. Como seria a vida dos meus colegas e amigos? Da Diana, do Paulo, da Rita, da Teresa, e de muitos mais? Muito mais difícil do que a minha, eu sabia disso, mas hoje tenho a certeza e admiro-os ainda mais, quando às vezes oiço conversas de adolescentes, ou mesmo pessoas da minha idade, a gabarem-se de coisas perfeitamente vulgares, como nunca ter chumbado um ano, por exemplo. Pois é. Mas também não tinham de trabalhar fora das horas de estudo, não tiveram divórcios e doenças pelo meio, não viram desaparecer as pessoas de quem mais gostavam durante esses anos. É o meu caso. Era uma miúda que achava sempre que estava a ser injustiçada, que era frágil, muito frágil, até triste, que achava sempre que ia chumbar o ano por causa de algum professor tramado que apanhasse. Vivia num contexto de valores invertidos, no sentido em que desconhecia a realidade circundante.
Muitas pessoas vivem nesse contexto de vida o resto dos seus dias. Chegam a uma idade em que lhes interessa mais um namorado que lhes providencie essas mesmas condições em casa em vez de irem à luta. Se fomos ensinados a ir à luta, nem pomos essa hipótese. As coisas ou acontecem ou não. Mas isso não se prende com favores, com dinheiro, com dar jeito ou não dar jeito. Prende-se com o coração e com a cabeça, mas de uma forma madura e determinada. Infelizmente temos de passar as passas do Algarve, como se diz em bom português, para lá chegar, a esse ponto exacto em que percebemos que sem os dois, a cabeça e o coração, somos desprovidos ou de razão, ou de sentimento, ou de ambos.
Ir à luta não compreende só um desenvolvimento orientado para a sobrevivência, embora basicamente essa seja a luta principal, pela qual todos os animais se batem. Ir à luta também compreende um desenvolvimento interior capaz e responsável. Esse sim é complicado. Exige reflexão permanente, reajustamento de objectivos e de prioridades, e à medida que o tempo avança menos queremos dar-nos ao luxo de gastar tempo com aquilo que é desnecessário. Um filho, tido com vontade e consciência plena, parece-me que leva a isso mesmo, por aquilo que me explicam todas as mães que eu conheço. Só por isso gostava de ter um filho…mas seria uma egoísta se o tivesse só por isso, até porque quando queremos imbicar com uma coisa é um desastre, imbicamos com filhos, sem filhos, com muito ou pouco trabalho. Por isso, temos de fazer um esforço para sermos melhores pessoas todos os dias, sem tirar nem pôr.
Outra coisa que leva a uma reflexão de prioridades é a doença, nossa ou de quem nos rodeia. A doença, segundo as concepções orientais, é um aviso do corpo que vem do fundo da alma. Vem de do-in (dentro de mim mesmo). E há quem estude que mesmo as doenças que vêm do exterior, como uma simples constipação, pode ser reflexo de um sistema imunitário deficiente graças a um problema que deixámos que nos afectasse muito. Isto é o que mais me assusta, porque às vezes levo anos a suavizar algumas ideias dentro da minha cabeça, algumas tão pungentes e fortes.
Uma das ideias cujo valor mais declinei foi a minha própria força pessoal, a minha determinação, as minhas capacidades. Sempre me achei pouco capaz de me defender, ali, no momento. E, por muito que me tente afastar de lugares e pessoas conflituosas, isso parece nunca ter resultado bem para o meu lado. Ou entro em conflito, seja lá como for, ou fico pior. E todas as vezes que as circunstâncias ou eu própria não me deixaram entrar em conflito, eu fiquei a pensar «mas porque é que não sou capaz?». Na realidade, de todos os livros que tenho lido, e a minha biblioteca é grande e as viagens de transportes permitem-me diversas leituras, tenho concluído que até a pessoa mais assertiva e com boa auto estima pode ser chateada e provocada, porque há pessoas que tiram qualquer um do sério. Eu vou dizer-vos o que mais me tira do sério.
Os contra-valores. Os contra-valores são no fundo o grande fruto sumarento desta época fragmentária e louca do século XXI, muito à frente do que qualquer Fernando Pessoa poderia prever. É atacarmos com o contrário daquilo que é bom e correcto, mesmo às vezes sabendo o que é bom e correcto. Fazêmo-lo, essencialmente, por não sabermos quem somos. Então defendemos aquilo que o momento dita. Todos nós já passámos por isto. Mas se fizermos isto sempre, acabaremos por não saber muito bem o que defendemos e quem somos, afinal.
Actualmente vivo na minha vida uma situação gravíssima de contra-valores. Dantes sentia isso nas aulas, quando era professora. Por exemplo, se um dia os alunos entrassem com muito barulho na aula, e eu nada dissesse, eles iriam assumir que isso era correcto, mesmo que não acontecesse noutras disciplinas (e mesmo que soubessem que não era correcto). No fundo, comigo podiam, então faziam. Acho mesmo que essa é a grande lição a aprender com os alunos: vão até onde podem, seja culpa dos professores ou não.
Na vida é assim com toda a gente: as pessoas só vão até onde podem ir. Se lhes dão poder para serem estúpidas, arrogantes, sacanas, malcriadas, elas fazem-no de toda a má fé, mesmo que não leve a nada. Parece estar no ADN codificado que quanto mais massacramos os outros mais ganhamos pontos. Será que as pessoas arrogantes medem consequências? Será que chegam a casa e dizem, «vamos lá marcar no caderninho quantas pessoas consegui hoje oprimir no emprego e aqui em minha casa». Acho que se eu me comportasse assim, na vida que levo, não tinha marido, nem amigos, nem emprego. Não entendo por isso até onde leva a arrogância e quem se predispõe a aturar isso uma vida inteira. Só que, entendendo ou não, não faltam casos desses aos pontapés.
Há duas partes: a do arrogante, que oprime aqueles que considera mais fracos, disfarçando-se numa capa de «eu é que estou certo, assim é que se fala com as pessoas», ou mesmo sob valores comummente aceites como bons, como a sinceridade e a frontalidade; e há a parte de quem sofre a ofensa, a quem cabe pôr um ponto final, sempre difícil, porque um arrogante raramente ataca outro. Um arrogante é um cobarde bem disfarçado: ataca quem não lhe responde. Lembro-me de uma colega na faculdade cujo desporto era dirigir-se a alguém nos seguintes termos «hoje estás miserável». Raramente a vi a fazer um elogio. As pessoas afastavam-se dela, excepto as que eram como ela.
Os contra-valores são no fundo as coisas más que temos cá dentro, mas que vêm disfarçadas no politicamente correcto, que muitas vezes nem é assim tão correcto. Nunca na vida classifiquei como frontalidade a má criação e as más atitudes para com os outros. Uma atitude impensada pode ser desculpada, mas uma atitude sistematicamente negativa não. Não podemos ignorar tudo todos os dias para manter estável a harmonia do mundo, quando o nosso mundo interior fica a ruminar e mais tarde ou mais cedo se vai ressentir dessa falha de assertividade e dar origem à doença. Há, no entanto, muitas pessoas que devemos ignorar e desprezar, sob pena de termos de usar as mesmas armas que elas, o que pode ser fatal para nós. No fundo, se não somos assim, porque temos de responder assim?
Vai parecer que nada tem a ver com o que digo, mas tem muito. Como retaliar ao assassinato? Com assassínio? O Saddam Hussein deveria morrer ou todos deveríamos pagar impostos para que ele se mantivesse vivo, numa cadeia de alta segurança? Que fazer a um genocida? E que fazer a quem entregou armas a este psicopata declarado? Por isso, devemos ignorar, retaliar ou deixar as pessoas apodrecerem de frustração? Acho que devemos sobretudo não nos deixar influenciar pela negatividade das pessoas, às vezes latente não nas palavras, não nos sorrisos, não nos choradinhos, mas no interior delas, visível na sua agressividade exterior, nem sempre coerente com a imagem. Às vezes provarmos que alguém aparentemente pacífico com toda a gente é uma besta connosco é o cabo dos trabalhos. Pergunto-me muitas vezes porque é que uma besta comigo não é uma besta com os outros, e acho sempre que a resposta é a mesma: eu identifico as bestas em cinco minutos, elas nunca me enganam nem ludibriam, e nunca adquiri capacidades suficientes para me defender delas, para as ignorar. Raramente uma besta me convence ou me manipula, o que deve ser um grave problema para esse tipo de pessoas, pelo menos em alguns contextos. Noutros contextos até é bom, fazem-me passar por louca. Parece-me que tenho sempre praticado uma loucura muito saudável, então.

Monday, January 15, 2007

“ Saúdo a vida com uma enorme e pungente tristeza que oiço cá dentro cada vez mais alto, numa voz dissonante e profíqua de dor. Oiço-te à distância, sei-te cruelmente longe, e nesses dias menos bons, apetece-me ir ter contigo por uma via fácil, que é inexistente, bem sei, e cujo fio à meada felizmente perdi. Cedo aos últimos impulsos do crime que foi perder-Te e oiço bem no fundo da minha alma: anda ter comigo. O impulso da morte que permanece e dói é o impulso da vida. Chateio-me duramente comigo por não ter aprendido nada desde que Te foste, fujo para o cinema num dia de sol e procrastino todas as coisas de hoje para depois de hoje, noutro dia qualquer. Por isso, meu amor, digo mais uma vez bem alto para eu própria me ouvir bem: tudo o que fiz na vida foi só aprender.
E o mundo não muda por isso, nem avança nem recua nem tropeça. É uma pena. “

O futuro


Falo com muitos amigos que são entusiastas do futuro. Outros nem por isso. Mas a grande maioria deles é, e por isso gosto deles. Nem mesmo depois de uma boa dose de psicoterapia eu me consegui reconciliar com a ideia de haver futuro. Naturalmente que Eckart Tolle tem razão, no seu livro «O Poder do Agora», quando diz que o que existe é o hoje e nada mais. Mas na nossa cabeça preconceituosa não é bem assim. Além disso, há sempre coisas no futuro que nos dizem respeito, por uma questão de responsabilização. Se assim não fosse, para quê uma conta poupança ou uma reforma, ou descontos para a segurança social?
Em que ou em quem acreditamos nós? Sabemos que, se vivermos só por objectivos estamos a cair na armadilha mor da vida: não chega passar anos a lutar por uma coisa só porque sim. Interessa lutar com sentimento. Se este não existir, alcançamos, queremos mais, vamos à procura das coisas pelos piores meios. É interessante como algumas pessoas só concebem o futuro de uma maneira: chegar ao que querem.
Não consigo muito conceber o futuro. Acho até um conceito estranho e desconexo. Dantes nem via o presente. Agora tenho um presente, ao menos isso. Passado parece-me que sempre tive. Gosto de reviravoltas, na verdade acho que é essa a forma de o mundo avançar. Não conheço caminho que seja trilhado sem meter a pata na poça. No fundo, estou sempre à espera de reviravoltas e sou muitas vezes co-autora delas. A pergunta é: mas porquê?
É evidente que sei que não quero, não posso, não devo ficar sempre no mesmo sítio, mas porque é que me cabe sempre um papel de narradora/autora de histórias, na maior parte delas narradora participante e por vezes até omnisciente? Não sei, mas deve ser um papel que eu própria assumi, porque não me lembro de Deus, ou quem quer se seja, se tenha dirigido a mim a pedir se fazia o favor de ser um agente da mudança do mundo, mas um desses agentes participativos e chatos, mal vistos, que quando abrem a boca são odiosos, mas quando não abrem são hipócritas? Garanto-vos que é um papel filho-da-puta. Preferia outro. Preferia um papel reconciliador, transmissor, simpático. Mas não somos todos assim, não nascemos todos para isso. Preferia o papel de psiquiatra, de ouvir o doente e diagnosticá-lo e o doente confiar em mim. Não queria ser o doente, o amigo ou inimigo do doente. Queria contar histórias que oiço, não aquelas em que participo. Mas em boa verdade vos digo: este blogue são as minhas histórias. Para além do primeiro post, acerca da famigerada Paris Hilton, tudo o resto é a minha vida escarrapachada. Não é triste? Caramba que me podia ter calhado um papel melhor nesta merda deste filme. Pareço o actor secundário de terceira categoria cuja função é ladear o protagonista e chateá-lo até à medula. Era mesmo o papel que eu não queria, porra…O de palerma que se arma cada vez mais em palerma e só atura palermas, em vez de andar com a vida para a frente. A sua vida, diga-se. Não a dos outros.
A mim parece-me sempre que dou uma certa imagem de fraqueza. Deve ser. Sou um alvo terrível, porque pareço um alvo quieto, mas não, estou sempre a observar, sou mesmo um alvo em movimento que engana bem. No meu estaticismo é que está a minha dinâmica. Chamem-me o que vos apetecer: falsa, hipócrita, cobarde, manipulativa. Uma coisa eu sei com certeza: deveria ser ainda mais dissimulada. E com o tempo vou conseguindo a camuflagem ideal para passar despercebida. Porque é que isso é assim tão importante para mim? Não será fugir ao meu propósito primacial e que tanto defendo, do ideal de justiça, de verdade e sabedoria? É que esse pode até ser o meu ideal, mas se eu não o camuflar fico exposta e apanho na cara, directamente, com a antítese de tudo isso. Sinto de repente que a maturidade se infiltrou nas minhas veias.

Thursday, January 11, 2007


A manipulação

Sempre considerei estranho haver pessoas no mundo cuja sorte consiste no pior delas mesmas. Quer dizer, pessoas cujo sucesso depende inteiramente da uma só coisa: manipular os outros. Independentemente de as pessoas serem bonitas, inteligentes, espertas, parvas, cultas ou não. Um manipulador pode ser isto tudo, mas também pode não ser nada disto. Pode estar simplesmente misturado entre todos nós e aparentar ser a pessoa com quem mais nos irritamos neste universo. Parece que essa irritação, esse confronto, essa chama acesa, essa energia contrária tem uma explicação possível: alguém nos está a tentar manipular, ou, alguém está a manipular os nossos colegas, amigos, irmãos, pais, e por isso afecta-nos também.
Há manipulações que nos afectam a todos e não damos conta delas se não forem denunciadas. A manipulação política. A manipulação dos media. A manipulação dos superiores hierárquicos. Se calhar sabemos e não podemos mudar isso. Então o que é preciso para manipularmos os outros? A resposta é simples. Poder. Mesmo que não sejamos bonitos, nem charmosos, nem tenhamos um chavo no bolso. É o que faz a personagem masculina principal do filme do Woody Allen «Match Point». Não tem cheta, mas casa com uma bela rapariga rica, mantém uma amante pobre, e leva essa vida dupla até chegar à conclusão que tem de anular uma das partes, não vou dizer qual para não vos estragar a surpresa, mas como devem calcular, anula o que já não lhe serve nem tem utilidade. No caso deste filme, a personagem é um psicopata. Mas muitas pessoas não são e até tiveram uma educação generosa, rodeadas de calor humano, por isso nem se entende bem porque é que só sobrevivem manipulando os outros.
Segundo o livro «Os manipuladores estão entre nós», um manipulador só sobrevive a longo prazo por uma única e simples razão: os outros. Qual ser parasitário, sem a atenção necessária faz por tê-la o mais possível à sua volta. É uma espécie de filho único criado como um reizinho mas que agora se defronta com a célebre questão: “ O que é que eu faço quando a atenção dos meus pais não chega? “. E quando é que isso deixa de chegar? Quando chegamos à vida adulta e entendemos finalmente que, por muito que os pais nos amem, não são tudo na vida. Se queremos percorrer uma estrada dita «normal» arranjamos conhecidos, amigos, namorados. Se queremos percorrer uma estrada doentia, quer seja por escolha própria, quer seja porque não sabemos quais são as alternativas, então escolhemos manipular as pessoas, e criamos falsos conhecidos, falsos amigos, falsos namorados. Isto digo eu, não o livro, mas o livro dá exemplos precisos e preciosos do que é manipular e do que é um manipulador, e eu chego sempre à mesma conclusão: há quem nunca veja isso, nem a bem, nem a mal, nem com a verdade debaixo dos olhos.
Isto faz-me recordar uma amiga minha que trabalhou numa empresa e detestou profundamente: o trabalho, a empresa, as pessoas. Mas de tudo, o que mais detestou foi uma pessoa em particular, de quem ela se queixava frequentemente de a «perseguir», de ser arrogante com ela, de lhe mostrar desprezo, mas todavia ser relativamente simpática com o resto das pessoas. Se formos pessoas pouco problemáticas, como esta minha amiga, não há qualquer razão para isto acontecer, uma vez que, de uma maneira ou de outra, basta um esforço de ambas as partes para as coisas se comporem. O que aqui acontecia é que a minha amiga se apercebia do carácter da outra pessoa com clareza. E quando damos isso a conhecer, por vezes até inadvertidamente, somos atacados. Por outro lado, o carácter da outra pessoa parece encaixar no domínio da manipulação pela simpatia. E quem topa isso leva agressivamente com o contrário, pois representa um empecilho no caminho.
Infelizmente, estas coisas são muito comuns. O livro diz que os manipuladores conscientes são raros, normalmente as pessoas não se apercebem que são manipuladoras, mas eu nego muito essa teoria. A menos que estejamos a falar de um contexto de descompensação afectiva, por vezes de difícil identificação, não podemos saber se as pessoas estão ou não conscientes de serem umas manipuladoras. Mas por vezes temos provas surpreendentes, quando as pessoas perdem as estribeiras connosco. Um manipulador descoberto e visto à lupa é muito perigoso, mas por outro lado, se não for experiente, vai revelar-nos o seu jogo, a sua fúria e os seus piores defeitos. Segundo o mesmo livro, um manipulador é sempre mesquinho, vaidoso, egocêntrico, narcisista e muito invejoso. Todavia, aos olhos dos outros, passa por ser uma pessoa com altas qualificações e normalmente é uma pessoa de sucesso considerável. Estranho, não é? Mas as universidades estão cheias «disto». Por isso sei tão bem do que falo. Sou mestre, caramba!
Raramente consigo uma relação de sucesso com um manipulador. Com este tipo de pessoas, as minhas relações ou falham redondamente, ou são habilmente geridas para terem algum sucesso. Para isso, tenho de saber jogar e, embora eu não seja grande manipuladora, tem de me interessar jogar, tem de haver uma parte que eu diga «sim senhora, dou-te isto, mas vou ter de lucrar alguma coisa». Evidentemente que não falo de relações de amizade ou de amor. Mal de mim se assim fosse. Mas confesso que um manipulador não deve ter essa barreira, esse escrúpulo que eu estou a ter. A frase chave deve ser «se é útil para mim, então vamos em frente», e isso aplica-se a qualquer pessoa. Um manipulador joga fora quem não lhe interessa e trata mal quem o pode desmascarar. O resto faz com facilidade: espalha simpatia por quem lhe é útil, diz-se sincero e franco, fala de si como se fosse o centro do mundo, mas um centro modesto, ok? Está sempre pronto para destruir a auto-estima dos outros por se achar cheio de força, no fundo uma força superficialmente construída sobre os ombros dos outros, à sombra dos outros, à custa dos outros. Da próxima vez que ouvir alguém que mal conhece dizer que é fantástico, questione-se «porque estará a dizer isto? A quem está a dizer isto? Onde o/a leva esta afirmação de si mesmo/a?».
Evidentemente, não se pode ignorar um manipulador. Às vezes levo cinco minutos a descobrir um, mas se for um manipulador hábil e experiente levo muito mais tempo. Alguns dos piores manipuladores que conheci trabalharam comigo, ou melhor, trabalhei para eles (um manipulador serve-se muita vez da sua superioridade hierárquica). Um deles era mentiroso compulsivo. Nessa altura, quando o conheci, parecia-me ser um professor respeitável, mas talvez nunca tenha trabalhado para uma pessoa de tão baixa estirpe e valor humano. Confesso que, apesar disso, achava-o perdido, emocionalmente desequilibrado, mas numa época em que eu também estava assim, aquela pessoa parecia encurralar-me na desonestidade dela. Costumamos dizer «ai se fosse hoje!». Mas eu não digo, porque sei que não vale a pena.
O segundo caso é muito mais grave, do meu ponto de vista. Outra pessoa para quem trabalhei, cuja opacidade enquanto mãe me fez tremer de medo. Enquanto dei explicações ao filho, disléxico, a senhora na sua altivez (estupidez) achou sempre que estava tudo mal, que ela é que conseguia ensiná-lo (embora tivesse provas vivas de que não). Embora reconhecesse a baixa auto-estima do miúdo, tratava de a baixar ainda mais, e a minha também. Foi uma pessoa da qual eu me poderia ter livrado facilmente, mas não consegui, fui ficando até rebentar sobre a minha cabeça um chorrilho de ofensas.
O terceiro caso é recente. Está próximo de mim e só posso ignorar, não posso fugir da pessoa. Se o manipulador pertence ou pode vir a pertencer à família, o caso é complicado, porque temos de nos sentar à mesa com ele, mesmo vendo o que está a fazer, mesmo reconhecendo o jogo dele como «déjà vu». Provoca primeiro uma grande irritação, mas depois, quando cortamos com as palavras dele e lhe retiramos o poder que tinha sobre nós, fica uma grande tristeza: como dizer ao enganado que está a ser enganado? Aqui, o jogo é mais cruel e duro, porque se se joga com sentimentos profundos de alguém, mexe-se em areias movediças que não são da nossa jurisdição. Todavia, se nada se diz, pactuamos com uma hipocrisia que nos custa suportar. E um dia não aguentamos.
Há mais casos. Eu sou uma pessoa de casos, podia ser detective, ou psicóloga criminal. Tenho tendência para puxar para junto de mim loucos e psicopatas, gente descompensada. A Lisa tem razão: deve haver qualquer lição que eu ainda não aprendi e a vida vai-me dando os dados para eu jogar. Mas confesso ser difícil. Todo o jogo que envolva sentimentos é arriscado, para nós e para os outros. Mas também é preciso ver uma coisa: esse é o jogo do manipulador, consegue tudo com arrogância e choraminguice torpe e deslavada. Diz o tal livro que citei que a vida guarda para estas pessoas um percurso de sucesso (à custa do sofrimento dos outros) mas um fim terrível: a solidão. Será mesmo?

Um dia bom – 5 de Janeiro de 2007

Hoje o dia correu-me bem. Nesta altura já oiço o regozijo da Lisa, da Paula, com quem tomo maravilhosos cafés (boa hipálage, a companhia é que é boa…), da Patrícia, da Célia. Porque todas sabem que, nos últimos tempos, nos últimos dias, a minha cabeça não tem descansado com tantas atribulações. Mas só tem atribulações quem tem dúvidas, ou quem nunca se cansa de viver e questionar as coisas.
Só temos verdadeira noção de algumas coisas quando saímos delas, ou quando, depois de algum tempo reflexivo, nos apercebemos do que fizemos mal e porquê. Só nos apercebemos também da pequenez de alguns assuntos e de algumas pessoas quando nos divorciamos da raiz do problema. Alguns assuntos e algumas pessoas são como os calos: ou tratamos a fundo e extirpamos, ou voltam a aparecer.
De todo o trajecto que fiz na vida, posso bem dizer que recuperei de coisas trágicas, negativas, más, que se arrastaram anos e anos. Quando digo recuperei, digo a todos os níveis: físico, psicológico, emocional. Foi um percurso lento e nunca estará acabado, porque sempre exigi de mim muita investigação e muito investimento naquilo que sou, enquanto pessoa, por considerar que esse é o melhor investimento que posso fazer: descobrir quem sou, porque sou assim, o que posso mudar, melhorar, aperfeiçoar, em que erros tenho caído e como sair deles numa próxima vez. Essa é a única maneira de vermos a vida como uma coisa boa: através de olhos lúcidos. Tudo o que esconda a lucidez, não deixa a vida fluir. E normalmente somos acometidos sempre do medo da mudança. Queremos comemorar tudo como sempre comemorámos, fazer tudo como sempre fizemos, ir sempre aos mesmos sítios da mesma maneira, com as mesmas pessoas. Mas o mundo é composto de mudança. E nem sempre gostamos dela da forma como aparece, porque o que gera mudança pode ser alguma coisa positiva ou negativa. E as consequências podem ser desastrosas, tipo filme de ficção.
Na minha vida, tenho aprendido que lidar com as pessoas e a cabeça das pessoas é das coisas mais estranhas do mundo, mas também mais compensadoras, a todos os níveis. Mesmo no pior, há alguém que nos acalma, nos socorre, nos amortiza as quedas piores, alguém que nos deposita nem que seja um olhar de compaixão e solicitude. Às vezes são pessoas estranhas, mas que devem ser sensíveis ao nosso estado de espírito e nos vêem a alma, ou sentem a energia com que estamos nesse dia. Ontem atravessei o dia com a noção de que estava a ser sugada pelas circunstâncias, mas hoje acordei com a sensação contrária, não que domine circunstância alguma, mas que estou a aprender, e que o caminho que trilho está certo, correcto e confere com tudo o que sou, como pessoa. Ontem estava em transe, não sabia bem quem era, nem porque era, estava suspensa no universo do «e agora?». Agora eu sou eu, independentemente dos meus erros piores, que normalmente se devem a uma clara falha de assertividade da minha parte (e tantas vezes das pessoas com quem lido).
Quando não sabemos bem quem somos, isso transparece e há só dois tipos de público: o que nos compreende e o que não. Aqueles que não nos compreendem, certamente, mais tarde ou mais cedo, se aproveitarão da nossa inocência ou falta de segurança. Se forem pessoas com sede de poder, a coisa piora. Se forem pessoas maldosas ou mal formadas temos de estar preparados para um certo cinismo aprendido com a vida. Com essas pessoas, nunca devemos ser sinceros acerca de quem somos, simplesmente porque isso não lhes diz respeito. Isto eu aprendi à minha conta e da pior forma possível. Quando mais expus a estas pessoas sobre mim, mais riscos corri de ser humilhada e destratada. Por isso o silêncio é de ouro e pode realmente ser muito agressivo. Mas a palavra também.
Feliz ou infelizmente, o meu poder está muito cá dentro e está na palavra escrita, não dita. O mais provável é que o mais importante de mim nunca fique exposto a olho nu, mas sim o que tenho à flor da pele, e com a maior parte das pessoas também é assim. Há é diferenças estruturais no recheio do bolo. Porque o bom carácter ou se tem ou se não tem, como diz a Lisa, e não há muito a fazer, porque por muito boa ou má que a educação em casa tenha sido, o carácter vem ao de cimo, mais tarde ou mais cedo.