Saturday, April 29, 2006


Os casais

Não sei o que dá prosperidade a uma relação. Não sou uma estudiosa do assunto, mas, se me basear em todas as relações que conheço, posso dizer que 50% se deve ao amor e ao empenho dos próprios casais para que as coisas dêem certo, e os outros 50% se devem a saber mentir. E isso é uma arte, porque em relações duradouras mentir coerentemente durante um grande período de tempo é difícil. Não falo só de casamentos. As relações que chegam a casamento tendo como base a mentira geralmente falham. Mas de igual modo falham as que têm como base a sinceridade e o amor. Por isso, em todas as relações, dá-me ideia que depende dos participantes, que podem ser dois ou mais, conforme o número de amantes de cada um dos intervenientes.
Uma das coisas que me pareceu sempre certo é jogar com as mesmas armas. Nunca me pareceu correcto termos objectivos numa relação que o outro interveniente não tenha. Se A ama B, não me parece correcto que B ande com A pelas viagens, pelo dinheiro ou pela companhia. É melhor que esclareça, ou meio caminho andando para o sofrimento. Na realidade, o sofrimento é inevitável, dentro de um contexto de amor, recíproco ou coxo. Um amor recíproco é de A para B e B para A. Um amor coxo só funciona num sentido. A ama B, mas B gosta de ir viajar à conta de A. É provável que se sofra muito mais numa relação de amor. O amor implica riscos que o desamor, o desinteresse não implicam. Quem nunca ama, não parece ser feliz, mas na realidade não vive em sobressalto. Por uma única razão: não se preocupa com o sofrimento do outro. O outro é-lhe indiferente. Mas numa relação de amor, o outro nunca nos é indiferente. Até mesmo numa relação só de afecto o outro existe sempre.
Sou romântica com conta, peso e medida. Acho piada a pequenos gestos que surpreendem e fazem o parceiro ou parceira felizes. Mas não acho piada que morramos de amor, que façamos tudo tudo tudo pelo outro, tendo como resposta a indiferença ou uma bofetada. Não acho. Não posso achar. E considero uma ofensa à auto-estima. Também não acho piadinha nenhuma ao conceito de «sermos um só». Há limites. Duas pessoas são sempre duas pessoas. Antes de se juntarem tinham hábitos, amigos, gostos. Entendo que se conceda tempo e espaço ao amor. Mas não todo o tempo e todo o espaço. O parceiro ou a parceira não somos nós. É outro/outra. E esquecemo-nos sempre (mas sempre!) que há uma miríade de hipóteses de o amor falhar, mas os amigos ficam se os soubermos estimar e conciliar com a relação.
Nunca entendi cortes com amigos, distanciamento de tudo e de todos, fechamentos, isolacionismos nas relações. Se uma relação não é para melhorar a convivência, mas sim fechá-la, não me parece saudável. Mas é só a minha opinião. A opinião da grande maioria dos namorados é que quanto mais se fecha mais se ama, mais forte é o amor. Como o vinho do Porto: fica na cave a apurar. E se o processo falha? Será que há alguém à espera fora das caves??
Mesmo assim, atordoa-me mais relações de interesse, de utilitarismo. O que se diz às pessoas que exploram e saem incólumes, na vida? A mim lembra-me o apocalipse. Parece o fim do mundo, que se ande por aí a esmifrar um gajo ou uma gaja porque tem dinheiro, porque dá conforto, porque ajuda, etc. Mas desde há muito que a indecência tomou conta do mundo. E de facto, estas são as pessoas que menos saem punidas, na vida, que não pagam pelo que fazem.
Dantes eu não era uma pessoa tão rígida. Se calhar porque pensava que este tipo de relações «por dinheiro» (há que saber classificar as coisas) tinham caído em desuso. Pensava que já ninguém fazia isso. Mas hoje voltou-se à carga. Estamos num mundo complexo, com muita falta de emprego, de dinheiro, de oportunidades. As pessoas apostam na facilidade, no facilitismo ao virar da esquina. Acham que uma relação assim cobre os maiores problemas da vida delas. E abre um maravilhoso mundo novo. À maneira delas (em todo o caso é sempre assim) são felizes, pois claro.
Fico triste de não haver dilúvios na vida destas pessoas que lhes prove, inequivocamente, que estão erradas, que a vida sem amor nem merece ser vivida. E tenho pena da complacência de todos nós que, de boca calada, nos achamos impotentes para dizer o que achamos sobre isso.
Será que um dia o tédio assola a vida destas pessoas? Será que se chateiam da futilidade de uma vida sustentada por outrem, sem bases, sem maturidade, sem conteúdo? Ou será que vivem a vida a copiar os outros? Quem são estas pessoas? Se é certo que no amor todos podemos falhar, no que diz respeito à mentira e à falsidade, estas pessoas são mestres e acertam na muche. Há muito que fui vencida por possíveis pensamentos positivos em relação a isto. O amor só vence quando é de ambas as partes. Se não for, o amor é vencido, nós somos vencidos, a vida é um fracasso. No que diz respeito a estas pessoas, que são «empata-tempo» dos outros, parece-me bem que todos saímos dolorosamente vencidos. Neste ponto sou muito romântica. O amor é só para os vencedores. E eu sou uma delas.

Tuesday, April 25, 2006


A postura e o perfil

As palavras dependem do contexto em que são utilizadas. Todas elas. Mas postura e perfil são duas palavras cheias de carisma (outra palavra cujo significado depende, em grande parte, do contexto), que, utilizadas no mundo profissional, adquirem vida própria, pernas para andar.
Dentro dos significados que fui aferindo, compreendi que ter perfil significa ter vocação para uma coisa, ter jeito, ter características que nos permitem executar competentemente uma tarefa. Enquanto postura é a atitude perante as coisas, a forma como nos posicionamos no mundo do trabalho, o nosso cariz pessoal emprestado às coisas.
Há profissões em que o perfil é essencial. Um médico, por exemplo. Não é para todos. Em primeiro lugar, tem de ter saber aguentar-se nas canetas quando vê sangue, cortes, pernas partidas, pessoas esventradas, etc. Isso exclui logo metade dos candidatos a medicina. Claro que tem de ter a parte científica completa. O saber é essencial. Mas ter perfil compõe-se de todas as partes: a científica, a técnica, e emocional. A maior parte delas adquire-se, mas o perfil tem a ver com algo invisível. Há mais qualquer coisa não avaliável pelas universidades. Depois a postura é uma outra parte. É aquilo que se decide ser ou parecer.
Não se pode confundir as duas coisas. Quantas vezes aparecem pessoas com imenso perfil para uma tarefa, mas sem postura? E quantas vezes aparecem pessoas cheias de postura (e por causa disso aceites numa entrevista de emprego) que não têm perfil algum? Estou-me a lembrar do professor, sobretudo do professor universitário. Só tem de ter postura e lamber os cus certos (para não dizer piores). É isso que explica que a maior parte dos meus colegas mais inteligentes e competentes não dêem aulas na universidade, mas outros, verdadeiras nódoas científicas e pedagógicas, estão lá de pedra e cal. Isto acontece em todas as profissões.
No outro dia o Baptista Bastos disse no programa do Herman que quem escrevia sem paixão não merecia crédito. E é isso mesmo. Há um perfil para se escrever, mesmo que a postura seja desacreditada por todos. E muitos não têm, nem de longe nem de perto, esse perfil, mas vendem livros como pãezinhos quentes, copiando de uns livros para outros parágrafos inteiros. Quando só há postura, o que resta? O vazio.
Há muitas pessoas a trabalhar sem paixão. Eu própria já o fiz por necessidade. De vez em quando perdia a postura, mas na maior parte das vezes tinha de tê-la, caso contrário era despedida. Mas confesso que é difícil manter a postura em situações cujo objectivo é só ganhar dinheiro, e onde o perfil para executar a tarefa é zero. Profissões de ajuda e de contacto com o próximo exigem perfil e postura. O que faz um psicólogo ou um médico cuja sensibilidade é a mesma de um calhau? Ganha dinheiro a tratar mal as pessoas?
O mundo apela muito ao socialmente correcto, por isso a tendência é aprendermos posturas que nos sejam favoráveis, na vida. A postura dá-nos acesso a um emprego, a um namoro ou casamento, a amigos…mas sem perfil para sermos trabalhadores, para namorarmos ou casarmos ou para termos e mantermos amigos, quem somos, afinal? Sabemos que a postura é importante e aprendêmo-la. Mas fora isso, qual é a nossa graça, enquanto pessoas?
O perfil é essencial, até nas coisas mais simples. Tem a ver com o carácter. Tem a ver com a consciência que temos das coisas. Tem a ver com a forma como fazemos somas e subtracções e divisões na nossa vida, e se o fazemos em função do nosso umbigo, ou contando também com a presença inestimável de quem gostamos e dos que nos envolvem. Tudo conta quando se trata de perfil. Sem isso a postura pouco conta.


As excursões

A maior parte de nós gosta de viajar, dar passeios. Quando somos crianças adoramos, mais não seja pela novidade. Quando somos adolescentes, temos as visitas de estudo, que servem para faltar às aulas, basicamente. Quando namoramos e casamos, as viagens servem para fomentar a relação (ou explorar o parceiro/parceira, no caso das relações de interesse). Quando temos filhos, as viagens são para agradar aos filhos, porque com filhos ninguém descansa nas férias. Quando chegamos à meia e à terceira idade, as viagens já têm uma outra utilidade, servindo para conviver com grupos de amigos, e, numa idade em que finalmente estamos sós, falar dos filhos, dos netos e da nossa vida toda (no caso das mulheres).
As excursões são um mundo à parte, divertido e instantâneo. São como os pudins instantâneos. Basta juntar água, o açúcar já vem no pacote. Como ninguém tem nada a temer – nem a perder – as pessoas são mais naturais, menos afectadas. Ninguém vai bem vestido, em primeiro lugar, o que é óptimo, porque não há a pressão dos casamentos dos nossos amigos, em que temos de ir impecáveis, a combinar, e magros, para ninguém dizer: " Ai tãooo gorda!! ". Nas excursões dos cotas, todos vão de fato de treino, camisolas rotas, casacos roçados, meias horrorosas de padrões detestáveis, e isso não preocupa ninguém. As mulheres são quase todas gordas e flácidas e vivem bem com isso. Os velhos são tão velhos que usam bengalas, muletas, amparando-se em todo o lado. E ninguém se compara porque todos são feios. Os reformados não falam tanto de trabalho como os jovens, por uma razão simples e aceitável: estão fartos. Trabalhar a vida inteira custa muito. Por isso, só falam do trabalho como uma peça histórica das suas vidas.
É evidente que também há tristeza. Todos os anos morre alguém destas associações que promovem excursões ao fim do mundo. As pessoas não duram sempre. Mas as associações continuam, porque umas pessoas chamam outras, levam companheiros ou companheiras, que também se filiam. As pessoas conhecem-se, nem que seja só de cara. Nestas viagens come-se e bebe-se bem.
Outra das desvantagens é que toda a gente tem um rol de doenças invejável, que conta pormenorizadamente aos companheiros de viagem. Toda a gente leva a sua caixa de comprimidos, sabiamente dividida pelas refeições.
Mas como eu disse, as vantagens são muitas. Como eu disse, ninguém tem nada a perder. As pessoas dançam música pimba sem vergonha, engatam sem vergonha, se forem divorciadas ou viúvas, vestem-se sem vergonha, comem e bebem sem medo de engordar (apesar de toda a gente ter o colesterol alto), e sabem coisas que não lembram aos mais novos, como o tango, o passe double, o cha-cha-cha. Só nas aldeias é que há festas assim, com grupo de animação como nomes como «Centauros» ou «Gafanhotos», que cantam em brasileiro "O Bacalhau quer alho, é o melhor tempero", ou que dedicam ao noivo a música do Quim Barreiros "Esta noite vou dar uma, vou dar uma, sim senhor". Só nestas excursões é que existe um guia com ar de doido que grita: " Fotografem! Fotografem que o padre não está a olhar agora! ", numa igreja do século XVIII com quadros destruídos. Só nestas excursões é que existem escritores reformados completamente chanfrados, que vendem ao quilo as suas edições de autor, todas «baseadas em casos verídicos».
No entanto, é disto que eu gosto. As relações já não se baseiam na superficialidade, as pessoas falam umas às outras porque querem, não para conseguir/manter um emprego/uma promoção. As pessoas relacionam-se de forma genuína e jovial, sem preconceitos, deixando os filhos entregues às suas vidas, fora do ninho. Não se julgam pela aparência com tanta facilidade, nem dizem umas às outras "És muito jovem para conseguir isto!". Todos ultrapassaram já a barreira do que comummente se chama «ser muito jovem». Todos menos eu, que os observava. Quanto a mim, também já ultrapassei essa barreira, pelo menos mentalmente. Fisicamente estou a caminho. Não estou longe das excursões da meia idade. Espero que lá chegando as faça. É meio caminho andado para aferir que fui e ainda sou (serei) uma pessoa feliz e realizada.

Wednesday, April 19, 2006

" A meta do homem é ser inimigo de si próprio – o homem e a sua sombra são uma só coisa. " (Friedrich Dürrenmatt, Labyrinth, stoffe I-III: Der Winterkrieg in Tibet)

A coisa mais certa na vida de todos nós e a morte. Sabemos que não vale muito a pena pensar nisso, nem stressar. Vamos morrer e acabou-se tudo. Pelo menos para mim, a quem a simples ideia de vida para além da morte, paraíso e inferno fazem comichão só de pensar. Explico mais uma vez. A ideia de todas essas coisas, quanto a mim, deve-se à nossa própria cobardia para aceitarmos que não somos eternos e que, muitas vezes, não temos recompensa nenhuma no bem que fazemos e também não somos punidos pelo mal.
Muitas vezes a minha mãe me dizia, mesmo em criança, que eu iria pagar por todas as minhas faltas. Ideia católica ou laica, a minha mãe tinha toda a razão, como todas as mães. Na verdade, paguei bem caro as vezes que lhe critiquei a comida que fazia, a decoração da casa, a falta de esforço para mudar a vida que tinha. Na realidade, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. O preço foi alto demais e eu nem o suportei. Por vezes, sinto tanta insustentabilidade na minha vida, que acho estranho andar por aqui, ainda. Hoje sou eu que faço a comida em casa, nunca apreciada que também nunca fui grande cozinheira, não tenho casa para decorar nem espaço para as minhas coisas, e se calhar não me esforço o suficiente. Tudo o que criticava na minha mãe é aquilo que hoje sou. Se eu confessasse isto a um padre, certamente ele me diria que eu estava isenta de pecado, visto ter assumido e confessado a minha culpa, e até expiado os meus pecados, ao fazer, anos a fio, serviço doméstico detestável e a ter uma vida em casa que pouco ou nada tem a ver com aquilo que considero ser a minha identidade, enquanto pessoa. Mas não é assim tão simples, sobretudo porque fico a pensar que se eu tive retorno em tudo de mau que disse e fiz, porque é que algumas pessoas nunca tiveram retorno negativo em coisas que, aos meus olhos, são muito piores?
No outro dia, finalmente esclareci isto com a afirmação de uma amiga minha acerca das minhas 29 primaveras: ela disse-me que o mal e o bem não existem um sem o outro. O que é verdade. Mas verdade é também que tudo depende de uma coisa chamada perspectiva, que por sua vez depende de diversos factores: da nossa educação, dos nossos valores morais, de como queremos levar a nossa vida, e finalmente de quem somos, na nossa essência. Porque há muitas coisas que somos e ninguém nos ensinou a ser. Podemos ser honestos numa família de ladrões, só porque essa «é a nossa natureza», e uns perfeitos sacanas no meio de gente honesta. Creio que em parte as coisas são redutíveis ao cérebro, aos químicos, e noutra parte, bem mais subjectiva, ao que somos, no seu conjunto. Por este motivo eu não me admiro nada que muitas pessoas com a minha vida nunca vissem nada como punição ou simples consequência, e apenas como coincidência. É talvez a minha maneira de interpretar a realidade. Em todo o caso, é sempre a minha maneira de interpretar a realidade.
Por exemplo, não habito muito em zonas cinzentas. Sou uma pessoa que age correcta ou incorrectamente. Não fico tempos infindáveis a pensar, a desculpar-me (ou melhor, fico mas sei que não adianta). Se tenho desculpa tenho. Se não, não tenho. Comigo sou implacável. Com as outras pessoas não, porque definitivamente não sei por que valores se regem. E às vezes não consigo perceber. Simplesmente não percebo e dou-me por vencida. Tenho sempre imensas questões: como conseguem as pessoas dormir à noite com tanta sacanice, com tanta falta de amor ao próximo? Por que raio de princípios se regem as pessoas que namoram/casam por interesse? Como é possível que, num mundo tão complexo e indefinido, uns trabalhem tanto para encontrar o amor, e outros simplesmente dispensem essa busca, baseando-se em coisas mais fáceis e simples, como o dinheiro, as viagens, as ajudas de custo, sem a mínima preocupação com o que é correcto, com o que pode ou não magoar o outro?
Decididamente estou perdida. O caminho certo é saber que as coisas existem, podem fazer mal à saúde e ignorá-las. E eu não consigo fazer isso. Não sou de ignorar, de me resignar. «Foram as circunstâncias que me levaram…», «foi a possibilidade que…». Não foram nada. Mentira da grossa. Então todos fazíamos asneira. Não temos todos as mesmas circunstâncias, nem as mesmas possibilidades. Isso é verdade. Não é verdade que sejamos obrigados a errar. Ninguém é obrigado a andar com ninguém, que eu saiba.
O que define o tempo que passamos aqui, vivos, de pés assentes no chão? Não sei. Mas deveria basear-se num argumento objectivo. Deus olhava cá para baixo e dizia: "Fizeste 350 maldades, dessas 300 foram conscientes e 50 dependeram das circunstâncias. Vives 50 anos." Seria objectivo e concreto, este argumento. Mas vêem porque é que eu não acredito em Deus? Que sabe Deus sobre nós, para se dar ao luxo de levar tanta gente boa, até mesmo na Páscoa, quando devia estar ocupado a ressuscitar o filho pregado na cruz, pelos nossos pecados? Deus devia ser engenheiro informático ou matemático, ou mesmo médico. Devia saber fazer médias aritméticas. Contar os cigarros que fumámos e os copos que bebemos. Mas não. Morre gente de cirrose hepática todos os dias que nunca tocou em álcool. Morre gente de cancro do pulmão que nunca fumou. Os outros andam por aí, ocupados, metidos no vinho e nos cigarros. Morre tanta gente jovem que só fez o bem. Deus leva tantos jovens. E anda por aí tanta gente amarga e farta de cá andar, a empestar a vida aos outros com sacanices de primor e distinção. E dormem à noite tranquilos. Respiram sem dores, dormem sem dores, acordam bem dispostos, não sofrem cansaço, enxaquecas, depressões, esgotamentos, psicoses, dores de dentes, hérnias discais, dores lombares, mononucleoses, dermatites, conjuntivites, pacreatites e afecções na vesícula.
Se Deus fez esta criação foi cru nas ideias. Criou homens e mulheres recheados de sacanice. Houve pouca doçura no trato da espécie e nas relações dentro da própria espécie. Estamos sempre empenhados em aniquilarmo-nos uns aos outros, sem dó nem piedade. Como os komodos. São os animais mais parecidos com o homem: perigosos, silenciosos, rastejantes, cruéis, prontos a destruir todas as outras espécies. Que me pareça, Deus não foi nada perfeito.


Os nossos inimigos

Há uns tempos atrás, o Herman José, que sendo uma pessoa de inteligência superior está reservado, por sua opção, à mediocridade, dizia que não confiava em ninguém que não tivesse, pelo menos, um inimigo. E eu realmente concordo com ele, com total inteireza. Tenho um espírito desabrido. Com quase 29 anos, estou a cagar-me para o politicamente correcto. Quero que isso vá à merda, com todas as asneiras que há no dicionário de calão. Por isso, aprovo, cada vez mais, a existência de inimigos. Quem não os tem, ou acha que não os tem, não pode ser de confiança.
Como podemos nós atravessar a vida sem nos deixarmos intimidar por alguém? O medo faz parte de nós, da vida, dos sentimentos. Não é insuperável nem incontornável. Faz parte. Nesse processo criamos «ódios de estimação». Uns coerentes, outros incoerentes. Uns justificados, outros injustificados. Devíamos ignorar mais as pessoas. Mas as pessoas têm efeitos negativos sobre nós que são indescritíveis. É melhor falar a nível pessoal. As pessoas têm efeitos sobre mim indescritíveis e lamentáveis. Não falo só do bestiário que se passeia no metro e no comboio, das pessoas que se atropelam violentamente, ou que não me deixam passar na passadeira. Falo das pessoas que se cruzam no meu caminho e das quais não posso fugir a sete pés. Que fazem parte do meu quotidiano familiar, social, de trabalho, pessoal. Há um grupo de pessoas que me deprime sobejamente pela capacidade de ferir o próximo e ficar-se a rir como se nada fosse. Há pessoas estúpidas que, com o tempo, se tornam inimigos.
Ao longo da minha vida tenho tido inimigos. E não são poucos. Cada qual mais malcriado e perverso do que o outro. Trabalhei com gente mentirosa, inescrupulosa, mal-educada, rude e invejosa, de línguas afiadas e viperinas. Convivi com pessoas com maus fígados, preparadas para lixar o próximo. Sem falar na capacidade que algumas pessoas têm de massacrar, que é uma coisa que não exige curso superior, mas há quem o tenha. Toda a minha vida me irritei muito. Sou dada à raiva. Não sou resignada nem passiva. Se fosse, dificilmente escreveria como escrevo. A raiva impulsiona e dá o toque, se não for em excesso. Às vezes também adoeço de raiva e desacelero. Penso para comigo «mas que raio de efeito é este que as pessoas têm sobre mim?». Com o tempo, com a idade, pensei que suavizasse, que fazer inimigos fosse dado adquirido e não custasse tanto. Mas não. À medida que o tempo passa, mais inimigos faço, com mais ardor e raiva. Vivo nessa espiral. De facto, não fui talhada para o budismo, que procura sempre encontrar uma parte boa em todas as pessoas. Estou-me a lixar para isso. «Isso» é o politicamente correcto que as pessoas gostam de invocar. Ou então são genuinamente budistas.
O que é preciso para se ser meu inimigo? Fácil. Todas as características referidas nos outros postes servem: egocêntricos vaidosos, arrogantes inescrupulosos, mentirosos, gente convencida e trapaceira, gente fingida, gente corrupta, gente fútil e banal, gente má, gente incompetente. Tudo serve para ser meu inimigo. Se houver um destes defeitos, convém que se compense com outras qualidades de interesse. Agora ser burro e mentiroso. Ou ser arrogante e convencido. Ou ser fingido e fútil. Ou ser medíocre e mau. Não dá. Ou simplesmente ignoro, ou são inimigos. A diferença está no quanto me prejudicam e na intenção que têm ao prejudicar.
Muitos inimigos são criados por mal-entendidos, ou por situações adversas. Não são assim tantas as pessoas que nos tentam prejudicar de livre e espontânea vontade. Muito do que se faz, faz-se por inconsciência ou até perturbação mental. Não se faz por maldade pura e dura. Isto tem um toque naif, é verdade, mas que eu tenho de manter a fim de compensar o meu lado mais pessimista. Não quero acreditar que todos façaos as coisas premeditadamente, para lixar a vida aos outros. Quero acreditar que isso decorre de uma deficiência qualquer de julgamento que nos tolheu a razão naquele preciso momento. Porque se eu não acreditar nisso desse modo, então perdi a esperança no ser humano…

Friday, April 14, 2006


O meu aniversário

Gostaria muito de ter exactamente o que eu queria para comemorar o dia dos meus anos. Os motivos que mais me interessam, digamos assim. Mas a realidade é outra. A realidade é que nunca temos o que queremos quando somos pessoas infelizes e desorientadas. Quando vivemos no caos e não descobrimos o cosmos, a ordem, a coerência, dentro de nós. Até podemos saber, racionalmente, que possuímos tudo para sermos felizes. Mas a realidade é que não somos. E isso não nos permite comemorar o aniversário com a alegria de uma criança de cinco anos. O que é uma pena.
No dia do nosso aniversário, nunca deveríamos ter más recordações no bolso, nem motivos para chorar ou estarmos tristes e desanimados. Devia ser um dia especial. Ou então um dia igual aos outros. Sem comemorações. Porque se queremos comemorá-lo – não sejamos hipócritas – tem de haver razão para isso. Tem de haver uma calma interior, uma sabedoria qualquer que nos diga que melhorámos, de um ano para outro, como pessoas. E eu não senti melhoria nenhuma em mim. Não avancei. Espiritualmente sou a mesma do ano passado, até mais desanimada. Por esse motivo, este ano não vou comemorar o meu aniversário. Apresento-vos as minhas 29 primaveras, o mesmo é dizer, as 29 coisas que aprendi com o tempo, aquilo a que chamamos «experiência de vida». São coisas animadas e desanimadas. Como a minha vida. Como eu. Não estão por ordem de importância, fui simplesmente lembrando-me delas, ao longo deste dia.
Não subestimar as pessoas. Aprendi que fui demasiadas vezes subestimada, por isso não faço o mesmo aos outros, a menos que não lhes reconheça capacidades para coisa nenhuma, e nesse caso o melhor é ignorar;
Ser justo. Estabeleci, na minha vida, que não faço distinções baseadas na cor, beleza, forma do nariz, sexo, indumentárias, etc. de outras pessoas. Nada disso está relacionado com o talento ou o carácter. Podemos ser formais e uma merda por dentro ou vice-versa:
Comemorar as coisas boas. Esta não sei se aprendi vezes suficientes. Mas sei que as coisas boas, pequenas, médias ou grandes são sempre boas;
Lutar. Lutar sempre pelo que desejamos, independentemente de nos acharem loucos ou atrasados mentais;
Sensibilidade e bom senso em tudo, na vida. Saber gerir as palavras, os actos, o impacto das palavras e dos actos nas outras pessoas, respeitando-lhes o espaço;
Consequências. Saber que tudo tem consequências. As boas acções geram boas consequências, mas aviso já que demoram muito. As más acções geram consequências nefastas, pelo menos para aqueles que sabem o que é uma consequência;
Valor espiritual. Saber que a vida não é feita de «coisas», objectos. Do pó viemos ao pó voltamos. Somos sentidos e sentimentos;
Valorizar a nossa mãe. O pai é fixe, mas a mãe esforçou-se mais porque nos pariu. Nascemos de alguém que sofreu nove meses a carregar-nos. Quando a mãe morre, nós somos parte dela e vamos também. Nunca nos separamos da mãe.
Valorizar os amigos. Os namorados e namoradas são amorosos, mas nem sempre são eternos. Devemos ter amigos e mais amigos na manga. Ajudam, são prestáveis, porreiros e são sempre verdadeiros mesmo que doa;
Apostar na verdade do amor. Nunca namorar/casar com alguém sem amar profundamente essa pessoa. É uma perda de tempo, de dinheiro, de paciência e de sentimentos. Nesse campo, a vida é para ser levada a sério;
Observar. Nunca basta olhar. É preciso ver para entender. Ver tudo sem espiolhar ou coscuvilhar. É bom e saudável sabermos que existem pessoas mais pobres e mais desgraçadas do que nós. É um balde de água fria merecido;
Acreditar. Não sou uma optimista, como sabem, mas confesso que acreditar é a base de tudo. Acreditar ou ter fé é a base para conseguir, é a estrutura que permite um projecto ficar de pé. Acreditar em Deus, reencarnações, Nossa Senhora de Fátima, karma, tarot, não interessa. Eu acredito nos meus amigos;
Ser fiel. A princípios, estruturas, sentimentos, pessoas, animais, tudo.
Saber que só o presente existe. O passado está morto, embora nos recordemos dele como se fosse hoje, mas é o presente que nos diz quem somos. O futuro não existe. Constrói-se no presente;
Ter o optimismo (ou a ingenuidade) de percebermos que por cada pessoa estúpida que se cruza no nosso caminho aparece uma muito muito porreira que nos ajuda;
Retribuir sempre uma ajuda, mesmo que seja muitos anos depois.
Aprender a identificar mentirosos. São perigosos, insolentes e cínicos;
Aprender que há situações, na vida, que não podemos mudar, só contornar. O melhor é aceitá-las. A resignação faz parte da vida;
Não perder tempo com a mesquinhez, a nossa ou a do próximo;
Informarmo-nos. O saber é a base de uma conversa;
Sentido de humor. Rir de tudo o que nos pareça risível. Conseguir isso é um feito, para muitas pessoas;
Utilizar o sarcasmo e a ironia só com pessoas que compreendam ambos os recursos, se não é inútil «mandar piadas»;
Ter capacidade de encaixe. Há imensas pessoas cuja única função parece ser chamar-nos de estúpidos e infernizar-nos a vida. A muitas não podemos dar resposta pronta porque delas depende o bem-estar dos outros ou simplesmente o nosso emprego. É preciso saber compreender a corrente de ar que existe na cabeça de algumas pessoas;
Descansar. Dormir, não fazer nada, namorar, dizer imbecilidades, sem nos sentirmos culpados por isso;
Não fazermos as coisas só porque os outros acham que nos encaixam como uma luva. Os outros são para serem ouvidos, mas nem sempre têm razão. Falham, como nós, e nem sempre podem saber o que vai no nosso coração,
Confiar em nós próprios. É coisa que não faço muito, mas aconselho a todos, vivamente;
Defendermo-nos. Nunca cedermos às pessoas e às situações no primeiro round. Não darmos mão à palmatória;
Sabermos ganhar e sabermos perder. Não vale a pena vangloriarmo-nos muito com uma vitória nem choramingarmos muito uma derrota. É assim mesmo. Se a derrota for muito grande, é darmo-nos como vencidos. Não tem mal nenhum ser mariquinhas;
Apostarmos na liberdade. Liberdade para amar quem queremos, fazer o que queremos, andar por onde querermos. Se não for assim, de que vale a vida?

Saturday, April 08, 2006


O oportunismo e o dom da oportunidade

Sem dúvida que este blogue é dedicado às antíteses, aos opostos. A verdade é esta, eu estou sempre a julgar as pessoas. É impossível fugir a isso, não me venham com tretas de que «julgo muito». Constato o que vejo com o que tenho na minha cabeça. Mais vale isso do que nada, eu acho. Além disso, não fujo à minha natureza, estou sempre a julgar, a observar. Mesmo que não tenha nada a ver com isso. Mas, regra geral, tenho alguma coisa a ver com isso. As pessoas atravessam-se no nosso caminho. Aleatório, coincidência ou predestinação, não quero saber. Atravessam-se, eu vejo o que fazem, avalio as consequências, mesmo que elas não estejam a ver nada nem a avaliar nada. Eu acho isto normal. Só que ninguém assume. Toda a gente diz «não tenho nada a ver com isso», «não é da minha conta». E realmente muita coisa não é da nossa conta nem da conta dos nossos vizinhos. Ninguém tem nada a ver com quem andamos, com quem dormimos, o que vestimos, o que comemos, qual é o carro que usamos. Essencialmente porque nada disto influencia a vida do próximo. São escolhas nossas, pessoais, sociais e até educacionais. Agora no cômputo geral, muita coisa influencia outras pessoas. Se eu deitar lixo para o chão estou a prejudicar o próximo.
No dia em que eu não julgar, ou entrei em estado zen ou enlouqueci de vez. Esclareço que, para além de apreciações comuns, não me interessa nada o que os outros fazem que não tenha qualquer influência prejudicial de terceiros. Mas a maior parte das pessoas nem entende o quanto prejudica terceiros e quartos e quintos. Deve ser uma tristeza sairmos incólumes desta vida com imensos actos prejudiciais ao próximo. Uma tristeza vista de fora. Quem lesa, acha-se sempre do melhor. O oportunismo é um destes aspectos que mais considero prejudiciais à sociedade e lesadores do próximo.
Se de facto formos pessoas empenhadas em qualquer coisa, mais que não seja ser feliz, ou mesmo arranjar emprego, procuramos oportunidades para isso. É normal. Às vezes surgem oportunidades que são verdadeiras armadilhas, mas isso faz parte da intensa aprendizagem que é viver. É mesmo assim. Por vezes esperamos a vida inteira por uma oportunidade. E isso também tem o seu valor. Mas uma oportunidade não implica nunca mandar abaixo os outros. O oportunismo sim. É o que eu chamo «ter olho», «ser esperto», em suma, saber a quem convém lamber o cu, saber quem tem de gostar de nós para conseguirmos o que queremos. Tudo o resto é paisagem. Todas as pessoas que estão em redor são meros espectadores deste triste espectáculo, porque não contam, a menos que se metam no caminho. Vemos isto no trabalho inúmeras vezes, pessoas que nos falam «só quando convém». Até na faculdade tínhamos colegas que só vinham ter connosco e só sabiam o nosso nome quando queriam os apontamentos. Lembro-me de uma colega que me dizia «ó coisinha, desculpa que não me lembro do teu nome…» quando queria alguma coisa. A estas pessoas a vingança era servida num prato frio: simplesmente não entendiam a minha letra nem nada do que eu escrevia. É curioso, mas se eu fizer as contas, só os meus amigos conseguem ler o que escrevo. Deus escreve direito por linhas tortas.
Há também um grande oportunismo na vida social, por exemplo a promoção social por via de falsas amizades, falsos contactos que facilmente se deitam no lixo quando se atinge a «fogueira das vaidades», o flache dos fotógrafos. Numa situação mais quotidiana, é também assim. Os adolescentes aprendem isso andando nos grupos mais «cool» para serem populares. Essa é uma aprendizagem para a vida. Eu por exemplo nunca fiz essa aprendizagem. Não me lembro de alguma vez ter tido uma amizade por interesse – e não me estou a exibir, porque o que estou a dizer é sinónimo de ingenuidade, ser parva mesma. Recordo-me que os meus amigos eram as pessoas que não pertenciam ao «grupo», portanto os piores alunos, os inadaptados, os que mais se isolavam. Portanto, nunca fiz parte da mole de adolescentes sedentos de popularidade. Na vida, percorri um caminho semelhante. Não tenho interesses exploratórios em relação aos meus amigos, e não vou ter com eles só quando preciso.
A vida pessoal é que mais se ressente com o oportunismo. E a mim parece-me incrível que as pessoas o pratiquem sem despudor. As relações amorosas ditas interesseiras são muito comuns. Namoramos, ou casamos mesmo, com pessoas que nos oferecem as condições que pretendemos, como se se tratasse de um automóvel, de um seguro mais barato, de um bem material ao qual aspiramos. Essas relações têm um prazo, como todos os bens materiais. Expirado no prazo, sai-se dessa relação e constrói-se outra com a mesma base de hipocrisia. Ao menos nunca se morre à fome. Normalmente são relações pensadas, demoram a começar. Há um dos intervenientes, o mais esperto, que engendra um plano elaborado «como é que hei-de conseguir isto? O que é que ele/ela tem para me dar que me interesse? Tem dinheiro? Carro? Faz tudo o que eu quero?». Respondido este questionário, começa-se a arte de sedução. Havendo sexo, está conseguido. Depois é só manter o plano até ao objectivo. E esperar que não falhe. A regra é acabar em divórcio. Rapidamente as coisas perdem interesse. Como pode continuar a ter interesse uma pessoa que pensa que gostamos dela, mas nos está só a «prestar um serviço»? Como pode resultar uma relação fingida, sem sentimentos envolvidos? Aí, houve alguém que confundiu oportunidade com oportunismo.
Nem sempre a gravidade dos nossos actos é punida. Muitas pessoas oportunistas acham-se só oportunas, boas pessoas mesmo. Não se tocam nem se vêem com um olhar crítico distanciado. Não ouvem uma voz dentro da sua cabeça a dizer «que ando eu a fazer a este tipo/a esta tipa?». Afastado este tipo de consciência, que rege todo o nosso comportamento pessoal e social, a vida reduz-se à bestialidade, à força bruta das nossas acções que tanto achamos «oportunas» e que têm como fim a exploração do próximo. Sem questionação interior, que o mesmo é dizer, sem inteligência emocional, somos os tais «cadáveres adiados que procriam» (Fernando Pessoa).


A educação

Hoje em dia são poucos os pais rígidos, que tínhamos antigamente. Mais facilmente encontramos uns pais como os da Paris Hilton, pouco interessados em educar, no verdadeiro sentido da palavra, que são raros apenas porque têm rios de dinheiro, do que uns pais como os do tempo do Salazar, que não deixavam ninguém sair de casa, e queriam as filhas casadas com um «bom rapaz». Vê-se menos essa rigidez, apesar de os pais quererem ainda fazer dos filhos posses, quererem mandar neles e comandar as suas vidas. Somos a geração do «entalados»: licenciados sem emprego, mas com vida sexual, e sem autonomia nenhuma na vida. Somos uma geração triste. A geração da Heidi, da Abelha Maia cantada pela Ágata, da pastilha Gorila com açúcar que dava camisolas quando havia cromos repetidos. Essa geração transformou-se num bando de gente atrasada (eu queria mesmo era dizer uma asneira, mas não digo, por respeito aos leitores), que quer colo todos os dias, que não lhe apetece fazer o trabalho doméstico aos fins-de-semana para ir fazer o mestrado, mas que tem a regalia de comer e dormir em casa de graça. E já não falo de casos como o meu, que só tenho emprego quando o rei faz anos. Falo de muitos casos patéticos de pessoas que escolhem viver em casa, com os pais, sem chatices, enquanto a vida lhes passa ao lado.
Para além do defeito geracional, dos defeitos de fabricação nesta geração e mesmo das dificuldades profissionais e sociais de integração na vida activa (o centro de emprego nem sabe o que fazer a tantos licenciados desempregados), os pais da geração de 70 são os que viveram o 25 de Abril ainda muito jovens. Ficaram sem pontos de apoio: incapazes de dar uma educação tão rígida quanto aquela que eles próprios tiveram, não sabiam mais como educar. Fizeram de nós hóspedes na casa deles ad aeternum, com gosto e satisfação, visto que a expectativa que sobre nós recaiu foi só a de sermos «doutores» e nada mais. Trabalhando ou não trabalhando, em casa está-se bem. Isso basta-nos. Sempre nos bastou. Fomos preguiçosos quanto bastasse ao ponto de passarmos a escrever o português com erros e sem vírgulas. Poucos de nós sabem sequer o que é «escrever». Somos também uma geração criativa, talvez porque, muito dados à depressão, tivemos de arranjar escapatórias. Somos a geração do «humor inteligente», deixando de lado a brejeirice e o teatro Revista, que não faz sentido nenhum nos dias que correm, visto que há a Contra-Informação no canal público.
Como muitos valores se foram perdendo, e hoje em dia quem se safa é o mais esperto, ficámos também sem pontos de apoio concretos para educar os nossos filhos. Começámos, de há uns anos para cá, a achar que punir uma criança é uma desgraça, que vamos arder no Inferno por isso. Há mais de vinte anos a minha tia foi severamente admoestada num supermercado por dar uma palmada na mão à minha prima, que tinha derrubado qualquer coisa de uma prateleira, após avisos vários para não o fazer. Então como será agora? Alguém tem coragem de dar uma palmada a uma criança? Não me parece. Estou farta de ver crianças a fazerem birras do caixão à cova, de se esparramarem no chão aos gritos porque querem um chocolate e nem vejo onde estão os pais delas. Há uns anos atrás, aquilo durava cinco segundos. Aparecia o pai, levantava a criança, batia-lhe e acabava-se. Estava feito. Hoje em dia os pais entram demasiado em «negociações», e nem sempre as crianças entendem isso de negociar, não têm grande capacidade de abstracção.
Depois vem aquela ideia de que, como pais, somos maus e incompetentes, que estamos a punir demasiadamente as crianças ditas «índigo», mais ligadas a um mundo espiritual e orientado para o futuro. Que raio de espiritualidade é essa, que as faz quererem tudo e mais alguma coisa? Orientamo-las mesmo é para a futilidade das marcas, das roupas, do ser mais fixe do que o colega. Eu não era uma miúda nada fixe, nada bem vestida, nada fútil, e estava-me perfeitamente a cagar para isso tudo. Não me parece que isso me tenha feito mal.
A falta de tempo, de espaço, de lugar para as crianças é fulgurante, nos dias que correm. As nossas carreiras, se tivermos emprego, são totalmente incompatíveis por causa de horários terríveis, de colegas terríveis, da falta de dinheiro. As grávidas trabalham até ao último mês, até ao último dia antes do parto, e as crianças nascem nervosas por causa do consumo de carne vermelha em excesso. As crianças não fazem parte da nossa vida, não são verdadeiramente educadas, com valores como o trabalho, a honestidade, a solidariedade. Por isso ficam confusas, desaustinadas. Pensam que a regra é trapacear, ludibriar, ignorar o próximo. E ser rápido, para não perder oportunidades, não perder tempo.
É duro, hoje em dia, tomar a opção de ser mãe ou de ser pai. Há um mínimo de condições que, se não temos, levam ao desespero. A facilidade na perda de um emprego, a dificuldade de sustento consequente, a dificuldade de educar, e os divórcios constantes. Tudo desanima. Ter filhos, que dantes era uma opção óbvia, tornou-se uma opção tortuosa. E educá-los de forma coerente ainda mais. Acho que hoje em dia preferimos ser só filhos e não arriscar muito para não sair borrada – de preferência queremos ser filhos sob alçada dos pais. Somos uma geração que corre poucos riscos.


O Bestiário

Tornámo-nos mais desumanos com o consumismo. À medida que produzimos mais, fabricamos mais, vendemos mais, fazemos mais lixo, desperdiçamos mais, atiramos fora o que não queremos. Dantes, os animais viviam à solta e comíamos carne saudável. Era uma cadeia alimentar explicada na escola. A vaca pasta, come a erva, comemos a vaca, e a erva que a vaca comeu, etc. Hoje já nem se sabe como é. A vaca aparece aos bocadinhos no supermercado, embalada. O que come? Como foi o seu pasto? Provavelmente não foi. Não comeu pasto. Comeu gordura, porcarias baratuchas para a engordar e matar, enquanto lhe tiravam o leite das tetas. Nós comemos isso. Ficámos, ao longo dos tempos, mais gordos, mais sedentários, mais violentos. Vivemos sentados e enraivecidos. Depois tudo o resto se vê nas atitudes: empurrões e asneiras nos metros e comboios, faltas de respeito, indiferença, ignorância total. Quantas pessoas saberão, verdadeiramente, que nos transportes primeiro devem sair as pessoas lá de dentro e só depois se deve entrar? É uma questão de educação, mas é também uma questão prática. Acho eu.
Quantas pessoas saberão que grávidas e crianças têm prioridade? Não é por mais nada, mas são mais frágeis. Experimentem ir com mais uns quantos quilos na barriga, de pé, o caminho todo? Não vão sentir as vossas pernas e pés no final do dia.
A forma como as vacas são hoje alimentadas parece nada ter a ver com isto, mas tem. A forma como as vacas (e outros animais) vivem, é a forma como nós vivemos. Em quadradinhos chamados de casa, comendo pastos inquinados por químicos. Chegamos ao fim-de-semana e parecemos doidos: é o futebol, que provoca bichas tremendas na 2ª circular, são os «passeios de domingo» com aqueles condutores fabulosos que só guiam uma vez por ano e não sabem o que é uma faixa de rodagem, é a praia, que faz uma fila tão grande na ponte que ainda me faz odiar mais a ponte e o «outro lado», são os supermercados e hipermercados, que ficam a abarrotar de gente. Em suma, não há nada para fazer ao fim-de-semana. Ou se faz trabalho doméstico ou se vai fazer um destes passeios turísticos sem rumo.
Também vivemos como animais do ponto de vista dos sentimentos. Não temos pena nem dó de ninguém. A compaixão caiu em desuso, ficou confinada ao catolicismo e sabe Deus como e de que modo, porque há católicos e católicos. É natural desconfiarmos de todos aqueles que nos pedem esmola por causa de uma deficiência, ou simplesmente por pobreza. Mas não é muito natural essa atitude com toda a gente, e muito menos com quem nos é próximo. Como os burros, colocámos palas, e não vemos para os lados. Como os cães, só cheiramos o cu a quem nos interessa. Vivemos assim, na vida pessoal e profissional. Namoramos com quem interessa, relacionamo-nos com quem interessa, e é com esses que mantemos os nossos «contactos», porque o resto do mundo é um saco de lixo que não serve para nada, é um depósito de nós próprios.
Ter, hoje em dia, uma personalidade implica riscos tremendos. Implica, antes de mais, que haja vontade e determinação. E depois implica levar isso a bom porto, a bom caminho, com bom senso. O bom senso tem falhado. Achamos que querer e ter uma personalidade implica não olharmos para o lado, mas é o contrário. O mais saudável é olhar e ver. Saber que terreno pisamos e porque o fazemos. Os propósitos não são tudo. Nem os objectivos. Há percursos e percursos. Mas como vivemos num bestiário, os percursos mais privilegiados são os ínvios, e quanto mais bestas formos, mais prémios ganhamos.


A estranheza

Alguns pais são estranhos. Correspondem a um conjunto de pessoas que tratam os filhos como se de objectos ou lixo se tratasse. Não fazem a mínima ideia do que é educar, ou amar uma criança. Regra geral, a criança é confundida com um boneco. Os casos da «Joana» e da «Vanessa», que tanto chocaram a opinião pública, são casos paradigmáticos disto que digo. Uma foi cortada em fatias e atirada aos porcos, antes disso espancada, tudo porque encontrou a mãe na cama com o tio (agora me lembrei, havia antigamente um prédio em frente ao da minha avó ao qual eu e o meu irmão apelidávamos de «Os Fedores», com histórias muito semelhantes a esta, recheadas de droga e incesto). Vanessa não teve melhor sorte, foi metida numa banheira de água a ferver e atirada ao rio. São duas meninas, cada uma com a sua história triste, com finais infelizes e dolorosos. Mais do que ficar chocada, fico impressionada com as contradições a que somos, moralmente, sujeitos. Tanta coisa contra o aborto, porque o embrião tem vida, o feto tem vida, defendemos todos a vida, mas estas mães e estes pais, que apelidei de «corja» fariam muito bem em abortar. Gente que vive em buracos, que tem relações com os irmãos, tios, primos, indiscriminadamente, à frente dos filhos, com sete ou oito filhos que não têm o que comer, tem mais filhos para quê? Para matá-los, queimá-los, fazer deles seres tristes e depressivos, como eram estas duas meninas?
Evidentemente que entendo o argumento a favor da vida e contra o aborto. Também acho que fetos e embriões são vidas, células são vida e conjuntos de células também. Mas há um grave problema social, porque imensos pais de boa vontade, bom coração e com posses, impedidos de ter filhos por razões físicas, biológicas, não conseguem adoptar, nem ficam com meninas destas; mas outros pais, incomensuravelmente destinados a um fim triste atrás das grades têm filhos a dar com um pau, que a Segurança Social teima em não lhes tirar, às vezes depois de os vizinhos se queixarem dos maus tratos às crianças. Numa época em que se defende a vinda de uma nova era, espiritualizante, a era das crianças índigo (ideia utópica quanto baste), que têm os olhos postos no futuro, matamos essas crianças. Que futuro será o nosso?
Pouco tempo depois de ser presa, Leonor Cipriano, a mãe de Joana, vinha para a imprensa dizer que nunca faria nada disso «a um filho seu», mas a menos que haja muitas voltas na investigação em curso, ela é a presumível culpada, e só isso já é preocupante. Uns tempos depois, a senhora vinha para o 24Horas dizer que a PJ lhe tinha dado pancada, o que parece verosímil e aceitável. Somos um país patético. Estamos a falar de uma mãe drogada, que sempre bateu e espancou brutalmente uma menina, fora o que deve ter feito aos outros filhos, e depois de presa, ela ainda se queixa? No Texas já teria sido executada. Faço parte da opinião pública que não tem pena dela, mesmo que seja inocente. Mesmo que não tenho morto a Joana com as suas próprias mãos, abriu caminho a que alguém da casa o fizesse a sangue frio. Temos aqui um claro exemplo de uma menina que não teve escolhas, na vida. Acho de muito maior consciência uma mãe dar um filho para adopção. Se defendemos a vida e jamais o aborto, ao menos a adopção. Pelo menos é um mundo de possibilidades que se abre, no caminho da criança, não fica confinada a uma vida triste e desonesta.
O caso da Vanessa ainda me choca mais, porque nem a família sabe o que fez, porque toda a gente estava «sob o efeito de heroína». Portanto deram um banho a escaldar a uma menina de três anos e atiraram-na ao rio, sem dó nem piedade. Coisa de drogados, só pode. A menina foi queimada e arremessada como um objecto, talvez pela mãe, talvez pelo pai, talvez pela avó. Ainda por cima, como estava queimada, foram comprar compressas à farmácia local. Compressas é algo que adianta muito para queimaduras de segundo e terceiro grau em 70% do corpo. Toda a gente sabe que sim. Portanto, enquanto os pais tentavam salvá-la, a menina morria nos braços deles.
O que mais me choca é a falta de consciência que anda por aí. A falta de bom senso, mas sobretudo de consciência. Tão depressa há pessoas a quem qualquer coisa sensibiliza e toca, como temos outras que ignoram tudo, que nem sequer se importam de serem verdadeiros atrasados mentais. É o que está a dar. Supostamente seria a consciência que nos separava dos animais irracionais. No mundo animal, os casos raros de animais que matam os filhos significam que os filhos nasceram com uma deficiência que não lhes permitirão adaptar-se à exigente vida na natureza. Também matam os filhos por nascerem em cativeiro, por vezes (os piriquitos fazem isso). Há muito poucos casos em que se mate por prazer ou negligência. Só me lembro dos komodos (que são indonésios, é que só podia), que comem os ovos que põem, ou os ovos da mesma espécie que vão encontrando. Não é um animal simpático, nem sequer se consegue reproduzir porque injecta veneno no seu semelhante, mas parece que a língua possui um elemento precioso no fabrico de antibióticos. Já é qualquer coisa. Há quem possua bem menos do que isso.


A Morte

Se há coisa pela qual sempre tive inclinação para estudar, investigar, perceber, foi a morte. Não porque ache muita graça, nem por nenhuma doença mental (pelo menos que eu saiba). É uma obstinação saudável. Durante muitos anos acreditei que todos temêssemos a morte e o sofrimento. Mas hoje em dia eu não temo a morte, no entanto temo muito o sofrimento. Se me doer a barriga, fico logo a pensar na fragilidade do ser humano e no que hei-de tomar para me passar. Portanto, não sou grande espingarda em resistência. Detesto sofrer, física ou psicologicamente. Morrer não sei se detesto. Que me lembre nunca morri, a não ser em sentido figurado. Como eu costumo dizer, nascemos e morremos e não há nada para contar. O que é certo é que tenho obstinação em contar.
A morte fascina-me. Não me fascina nada a morte figurada, a morte diária, de todos os dias, à socapa, nos transportes, na falta de amor-próprio, na falta de solidariedade. A essa morte chama-se solidão. Uma forma lenta e absurda de morrer. Agora a morte física tem o seu mistério, e a forma como a lamentamos e a celebramos e a tememos tem ainda mais mistério.
A minha ideia é simplista: morremos e acabou. Tudo aquilo que, quanto a mim, se inventa em torno da morte é chachada para nosso próprio conforto e aceitação. Se as pessoas achassem que havia vida para além da morte, não a temiam tanto. As pessoas têm medo de desaparecer. Não fazer mais parte de nada. E o sentimento de não-pertença é terrível. De certa forma, o budismo encaixa: ao promover a integração do ser humano num cosmos, vê tudo como eterno-retorno, por isso a morte continua a vida e vice-versa.
A minha perspectiva, no entanto, é a de que os homens são egocêntricos e gostam de acreditar que são únicos e inexcedíveis nos seus actos. Por isso são eternos. Mas na realidade, na totalidade do mundo, acho que somos quase inúteis. Se morrermos, há uns biliões de pessoas que nem vão saber. À excepção do Elvis Presley, ninguém é conhecido no mundo inteiro. Há-de haver gente no Amazonas que nem sabe que existem brancos, quanto mais saberem e lamentarem a sua morte.
Aquilo que acho mais injusto é a imprevisibilidade. Não sabermos a hora, o dia e como vamos morrer. Não podermos escolher absolutamente nada. Deve ser uma injustiça uma pessoa passar a vida inteira com uma doença qualquer e morrer de outra coisa. Então um gajo esfalfa-se a tentar curar uma coisa e morre de outra? Pelo menos não foi vencido à primeira. Como diz aquele sektche dos Gatos Fedorentos: "Ainda acabas como o teu avô, que tinha diabetes e morreu atropelado por uma mota". Como no livro «O Velho que lia Romances de Amor», do Sepúlveda, um tipo devia pode escolher a hora da sua morte, besuntando-se com uma porcaria qualquer para as formigas comerem. Dantes, quando o Herman José ainda tinha réstias de graça, perguntava aos concorrentes: "Gostavas mais de morrer queimado, trucidado ou chicoteado?". A pergunta faz todo o sentido. Nem todos devemos gostar de morrer da mesma maneira. Evidentemente que escolhemos sempre morrer «sem sofrimento», «numa praia», «a fazer o amor», «a cantar», «num palco», etc. consoante os nossos gostos. Mas eu não gostaria nada de morrer a escrever. Só se tivesse chegado ao fim de um texto.
Assim como há pessoas que parecem passar pela vida com tanta doçura que não parecem merecer a morte – e fazem sempre falta a toda a gente – depois temos uma corja de idiotas, francamente empenhados em fazer a vida negra aos outros seres humanos, que não só não morrem, como nunca estão doentes com a porra de uma dor de dentes, ou de cabeça, ou de estômago, ou cansaço doentio, ou costas tortas. A medicina alternativa diz que a maior parte das nossas doenças são provocadas pela forma como experienciamos as emoções, por isso aí está a resposta: são pessoas sem emoções. Até choram nos filmes, mas o cérebro límbico, que regista a memória das nossas emoções (e, consequentemente, traumas), não está conectado a um nível que lhes permita aprender ou gerir essa informação. O que significa, quanto a mim, que essas pessoas podem chorar baba e ranho nos casamentos ou a ver novelas, mas nunca, jamais, sentirem alguma coisa que lhe permita evitar fazer os outros sofrer. É uma espécie de carapaça que nunca cai. Muitos são egocêntricos sem vergonha na cara. Uns filhos-da-mãe, com as devidas desculpas para a mãe que os pariu, se calhar com muito sofrimento e esforço.
Não defini ainda como gostaria de morrer. Também não gostaria de sofrer. Confesso a minha fraqueza. Morrer a dormir talvez fosse bom. Mas gostaria de enviar um cd-rom a explicar a todas as pessoas que considero filhas-da-puta porque é que o são, aplicando-lhes um castigo, como no filme «S.A.W.». É um sonho meu.


A arte de não ver

Caros leitores do meu blogue, que o mesmo é dizer, caros amigos. A autora deste blogue assume-se, a partir de hoje, a pessoa mais miope de Portugal. O padre Feytor Pinto já foi operado e tem muito menos diopterias do que eu, com toda a certeza. Por isso, óculos fundo de garrafa são os meus. Se entendem alguma coisa de doenças oculares, ou, como dizem os leigos, miopia é só excesso de visão e desfoca tudo, na vista esquerda tenho 17,5 diopterias e na direita 18. Graças a Deus não vêem a minha cara de desgosto!
Se a teoria das reencarnações estiver correcta, na outra vida eu devo ter sido um pérfido homem ou uma pérfida mulher, ou então era voyeur. É que só pode. Devia ser um tarado sexual, espião de mulheres, daí ter nascido nesta vida com miopia (pobre padre Feytor Pinto!, o que terá sido na outra vida?).
Já no outro blogue eu discursei acerca da miopia e dos miopes. Normalmente são pessoas tímidas, escondidas na tristeza de uns óculos grossos. Só há pouco tempo se começou a olhar para a questão estética. Dantes, não havia nem um apresentador com óculos, excepto o Carlos Cruz e o Fialho Gouveia. Mas no Telejornal não. Há bem pouco tempo tínhamos a Alexandra Abreu Loureiro, que eu adorava, com as suas quatro diopterias (sim, um miope sabe sempre a miopia dos outros miopes) expostas ao público, num belíssimo par de óculos de massa. Agora já vemos na rua muita gente que expõe a sua «doença». As lentes de contacto foram uma bênção, mas também só foram feitas para alguns sortudos: as pessoas sem alergias, as que podem usar lentes, os miopes fraquinhos. Pessoas como eu só podem usar lentes incomodativas, e claro, importadas. E lentes de contacto têm grandes inconvenientes: utilizadas durante muito tempo provocam queratites, conjuntivites, problemas diversos.
A miopia está associada a uma inteligência elevada. A miopia alta, claro. A partir das cinco diopterias as pessoas seriam génios. Infelizmente, não é assim. Há muita gente cegueta e estúpida. Isso é mesmo não ser bafejado pela sorte. Mas esse é um dos mitos dos miopes, de que são miopes porque estudam muito. Mas eu tenho miopia desde os cinco anos, e na altura do meu primeiro par de óculos nem sabia ler.
Também há o mito contrário, de que os miopes são retardados, atrasadinhos mentais. De facto, com os pares de óculos que usávamos há uns anos, o aspecto não diferenciava muito do de um atrasado mental. Eu tenho fotografias em que estou tão mal que ninguém dava nada por mim. E sofria-se muito mais. Parecia que todos os óculos faziam dor de cabeça, havia erros crassos, e as armações não facilitavam. Havia também o problema da incompreensão alheia. Ninguém percebia que um míope tinha uns óculos feios, mas tinha de os usar ou ficava ceguinho. Toda a gente gozava. Na escola era do pior, eu ouvi de tudo: "És ceguinha? Vês-me?", isto quando não me roubavam os óculos e andavam a brincar com eles. Com o tempo eu defendia-me: "Partas pagas, e olha que os meus óculos não foram baratos!" Acabava-se logo a brincadeira.
Raramente um míope aprecia o mesmo tipos de saídas que as outras pessoas. Sempre odiei discotecas porque não conseguia usar as lentes de contacto com o fumo. E sempre odiei praia. Não era igual às outras pessoas, quando saía da água não via ninguém, e geralmente ia parar a chapéus-de-sol que não eram os meus, com pessoas que não eram os meus pais e me olhavam de lado: "De onde raio veio esta míope? Não quero um filho assim." Lembro-me com grande precisão da primeira ida ao oftalmologista, a minha mãe teve o desgosto da vida dela quando soube que eu era míope. Nunca entendi se era por ir passar pelo mesmo que ela, se era pelo dinheiro que ia gastar, ao longo da vida, comigo. Mas acho que eram os dois. E com razão. Um míope gasta como ninguém. Então se usar lentes e óculos é sempre a gastar. E se for um doente «progressivo/hereditário», como eu, é todos os anos a deixar dinheiro na óptica. Uma óptica nunca vai à falência com miopes «progressivo/hereditários». Ter uma óptica ou uma funerária parecem óptimas ideias.
A vida quotidiana não ajuda a miopia. Passamos horas a ler, a escrever, a ver televisão, a fixar o computador, muitas vezes com pouca luz. E passamos horas mal sentados e sem tempo para ginásticas (isso fica para outro capítulo, mas a minha escoliose não é melhor do que a minha miopia). Cada vez temos de ler mais e preencher mais e mais papéis, com cruzinhas, bolinhas, números e letras pequenas. As pessoas deviam ter mais compaixão por pessoas como eu e como o padre Feytor Pinto. Afinal, somos pessoas de inteligência superior confinados a esta dura deficiência.