Friday, March 31, 2006


O Segredo

Estreado há pouco tempo, «O Segredo» é um filme que conta a história de uma jovem, Eve, cuja mãe andou num colégio de freiras em Barcelona. Até aqui tudo bem. Mas a mãe, tal como outras colegas, frequentaram uma turma cuja professora – freira, pois claro – não era propriamente uma simpatia de pessoa, e castigava as garotas só porque elas fumavam charros à janela, o que, na adolescência, é o mais normal (os meus aluno apreciavam mais os linguados à porta da sala dos professores). Mas a freira, estúpida e nada ligada a afectos, classifica tudo como «SIN» (pecado), palavra que grotescamente escreve no quadro, a giz. Um desses dias faz uma das meninas engolir um bilhete de amor, quando a menina gostaria muito mais de engolir outras coisas (a grotesca agora fui eu, perdão). Deixem-me só dizer uma coisa acerca de colégios de freiras. Ninguém sai de lá completamente são. As freiras e os padres, regra geral, são pessoas frustradas, cujo único sorriso é dirigido a uma entidade desconhecida: Deus. Não podem regular bem. Como é que pessoas assim ensinam os alunos? Por isso, das duas uma: ou há freiras e padres competentes, que saibam, de facto, o que é o mundo real dos afectos, ou não vale a pena ensinarem. Não podemos pregar sem saber o que dizemos. E muito menos reprimir adolescentes. A sexualidade reprimida gera falhas graves de comportamento. Isto sem contar com os padres e freiras que soltam os seus instintos sexuais nos alunos, caso do filme «Má Educação», de Almodôvar. Nesse filme, os abusos sexuais geraram homossexuais travestis.
Continuemos o périplo pelo Segredo. A freira volta dezoito anos mais tarde para se vingar das ditas alunas, matando uma por uma. A primeira é a mãe de Eve, e depois seguem-se as outras, com mortes cruéis, à semelhança de cada uma das mártires às quais corresponde o nome (há uma chamada Zoe…há uma mártire com esse nome? Só em Espanha, mesmo, ou nos EUA).
A freira é o ser sobrenatural mais engraçado que já vi. Deve ser algo pertencente ao imaginário do realizador: aparece na água, provocando enchentes e inundações nas casas, vem vestida de freira (tantos anos depois da sua morte e não larga o hábito, isso é que é amor a Deus), ataca por detrás (quase sempre, pois quem vê aquilo de frente morre de susto), e tem uma carinha de múmia nojenta, branca, com dentes feios. Mas quando é que deixamos este imaginário de sermos perseguidos pelos mortos? Quando é que as pessoas se convencem que almas penadas não vêm nos canos, nem nos esgotos, estão sim nas nossas cabeças, bem poluídas e desgraçadas com tantos mitos sobre a morte? Gosto da ideia de ser uma freira a andar neste disparate. Mas raios partam, uma freira não deveria estar na companhia de Deus, depois de morta? Não somos aquilo em que acreditamos? Em que é que acredita uma freira? Achará que, depois de morta, vai voltar para assassinar alunas? Não conto os motivos dela para que vocês, leitores, vejam o filme com o entusiasmo da primeira vez, no entanto, sou honesta: que ideia tão estúpida. Mais valia ser Deus a vir pelos canos assassinar pessoas. O pior é ninguém saber se Ele é brasileiro ou preto. Se Ele é ele ou ela. Enfim…
Tanta coisa que a Madonna fazia espectáculos com dançarinos vestidos de padres e bailarinas vestidas de freiras (como ela própria), tanta coisa que ela simulava a estigmatização com as chagas de Cristo no teledisco do «Like a Prayer», e afinal aparece um filme destes, que não é do Almodôvar, a contar a história de uma freira com problemas afectivos, vingativa e má pessoa, que se move nos canos da água depois de morta. Eve ainda conclui, com a ajuda de um seminarista que se apaixona perdidamente por ela, que a freira se «materializa» debaixo de água. Expliquem lá isso outra vez…Porquê? Porque é que um espírito se materializa debaixo de água? Depois de morto o povo anda a materializar-se debaixo de água…mas a que propósito? Então ninguém praticava mergulho com medo de encontrar a minha tia Olímpia, essa múmia já morta, gananciosa e pouco amiga do seu amigo. Ou, se quiséssemos encontrar as pessoas que já perdemos, mergulhávamos todos, pertinho do cemitério, à procura de mortos.
Não vos conto o fim do filme, que é original. A freira tem uma explicação, meio lógica, meio ilógica, que não lembra a ninguém, nem ao Menino Jesus. Vocês vejam e depois digam-me o que é que acham.


Match Point e a teoria do engano

Quando vi o filme do Woody Allen, Match Point, fiquei surpreendida. Não pelo filme, não pelas personagens, não pela história. Mas por ser um filme do Woody Allen assim, daquela maneira. Primeiro pareceu-me um filme barato, vulgar. Depois pareceu-me um filme maduro, mas pouco versátil. E por fim pareceu-me um filme de terror, a encenação dos cruéis defeitos da humanidade, levados ao extremo: a morte, tirar a vida ao próximo, anular um problema por via do assassinato.
Desculpem não me lembrar do nome das personagens (e muito menos dos actores). Conta a história de um rapaz pobre, mas muito ambicioso, que, a fim de levar a cabo o seu objectivo número um na vida, ficar rico, utiliza a célebre artimanha de conquistar uma rapariga de boas famílias, ou seja, podre de rica, mas ingénua e muito apaixonada.
Se fosse eu a realizar o filme, que sinceramente me entristeceu, eu punha tudo ao contrário. Uma rapariga pobre conquista um rapaz rico. Mas essa personagem também lá está, só que num plano secundário, passando depois para um plano primário. O que lhe acontece é que sofre as consequências disso. Estroina e pouco hábil nas relações, separa-se do rico e apaixona-se pelo pobre, que entretanto casara com a menina rica. Vejam, se fosse ao contrário, o impacto que não teria: menina pobre casa com menino rico por dinheiro e apaixona-se por rapaz pobre. Bonito, mas o fim teria de ser modificado. Porque o mataria ela? Certamente seria capaz, enquanto mulher, de se escapar ao maridos quantas vezes quisesse para cair nos braços da sua paixão fogosa, escondendo-a de tudo e de todos. As mulheres são o máximo.
Mas Allen não encena as coisas desse modo. É o rapaz pobre casado com a menina rica que se vê enredado no meio de duas mulheres: a legítima, que ele não ama, e que desesperadamente tenta engravidar para o «segurar» (desconfiada da verdade dos factos, ou seja, que ele tem uma amante); e a amante, ex-namorada do irmão rico da menina rica, actriz sem emprego e sem auto-estima, desesperada pela solidão e grávida do rapaz pobre. A teia de relações parece complexa mas reduz-se ao mínimo em poucas palavras: há os ricos, confortavelmente instalados na vida e sem preocupações, e há os pobres, preocupados, desesperados, ansiosos de subir na vida ou mesmo conseguir um emprego. O rapaz pobre encena aquilo a que os gregos chamavam de «hybris», ou seja, ousadia, tentativa de ultrapassar os limites do bom senso. Cai na teia do amor e da paixão, mas não com quem queria. Fica enredado nas próprias mentiras, tornando-se um incompetente no trabalho, no amor, na vida. Colocado perante a hipótese de mudar tudo isso, mas permanecer pobre, a opção dele é matar a amante e o filho que esta esperava dele, simulando um assalto. A forma fria, calculista e amoral com que o faz define-lhe o carácter: é um crápula que leva tudo ao extremo para conseguir o que quer.
Eu acho que o mundo está dividido em três partes, uma preta, outra branca, e outra cinzenta. A preta é constituída por este tipo de pessoas sem escrúpulos, que tudo fazem para chegarem aos seus objectivos: andam com quem não ama mas lhes dá benefícios, mentem, trapaceiam, são hipócritas, mas aparentam sempre a calma da amoralidade. Chamam a tudo «luta pelos interesses», mesmo que se refiram a algo tão abstracto como os sentimentos. A parte branca são as pessoas que, não tendo este tipo de comportamento e regendo-se por valores sóbrios, só conseguem as coisas por esse tipo de valores. O que significa que, muitas das vezes, simplesmente não conseguem. São incapazes de estar com alguém sem ser por amor e sentimentos sinceros. E a zona cinzenta, onde se situa a maoria de nós, é constituída por pessoas que oscilam entre estes dois comportamentos, bastante confusos, sem perceberem bem quais são os seus valores morais e que vantagens lhes dão.
No prática, um valor moral rege um comportamento. Não dá vantagens ou benefícios materiais. Permite às pessoas com consciência dormir à noite. As que não têm consciência não precisam de valores morais. Dormem bem à mesma.
O rapaz pobre não é apanhado pelo assassinato da rapariga, depois de muitas peripécias em que, pelo menos eu, torci para que ele fosse apanhado e preso, punido e saqueado daquela vida vazia. Mas essa é a grande lição do Woody Allen, a que mais triste me deixou, mas é uma lição verídica, coerente com a vida real: os maus dormem bem à noite e não são punidos pelos seus actos, não sofrem consequências. A amoralidade deles protege-os de se tocarem, de se acharem fragilizados, de pensarem «estará isto correcto?». O rapaz pobre segue a sua vida, tem um herdeiro da rapariga rica e vive a sua vida de mentiras. Cheio de dinheiro e de sucesso, apesar de ter morto uma mulher que carregava o seu filho. Chamem-lhe sorte, como diz o filme, acaso do destino, um pormenor que muda tudo a favor de um crápula. É assim a vida. E Woody Allen sabe disso.


O dia em que a Paris tomou conta de mim

Hoje a Paris tomou conta de mim, dos meus pensamentos. Mais um bocadinho e eu encarnava nela ou ela em mim. Era ver a Paris a (tentar) dizer coisas inteligentes, e eu a ficar loura e burra. Há dias que quem dera…
É isso. A vida é muito complicada, não sabemos o que esperar dela. Teremos sempre emprego? Marido? Filhos? Amigos? Casa? Saúde? Tudo é incerteza. Para Paris não. Tudo é certeza. Ela sabe de onde vem e para onde vai, seja em que lugar do mundo for. Era bom, era…
A maior parte das pessoas que eu conheço, do meu mundo próximo, do meu contexto (e friso bem isso, agora sem encarnar a Paris) são pessoas com muitos problemas para resolver. Têm falta de dinheiro, ou falta de emprego, ou falta de afectos, ou falta de sossego, ou falta de paz de espírito, ou falta de saúde, física ou psicológica. Eu sei que toda a gente tem problemas, não discuto isso. Mas há uns quantos de nós muito mais azarados do que outros, que tudo tentam, para tudo se viram, em tudo se esforçam, e parece que não saem da cepa torta. Há coisas que demoram a estabilizar e nem o apoio das outras pessoas temos. Parece que é nessa altura que mais pessoas amargas se aproximam de nós com lições de vida bacocas: " Então porque é que?... " e lá vem um rol de coisas que deveríamos fazer. Todos sabem as melhores soluções para nós. Menos nós.
Enquanto uns têm o ego tão cheio que quase estoira, outros egos ficam do tamanho de um feijão. Há dias em que nos sentimos as pessoas mais azaradas do mundo, e outros em que nos sentimos sortudos com as possibilidades que nos foram dadas.
Não sejamos ingénuos. A Paris é a perdição em pessoa. Não tem roupa, corpo, valores morais. Mas tem dinheiro e, parecendo que não, isso facilita imensas coisas. Tem poder. Tem ousadia. Tem liberdade para dizer e fazer o que quer, sem sofrer consequências. Quantos de nós vivemos assim?...Viva a Paris. Hoje é o dia dela.


Cor-de-rosa & cinzento

Adorava ser uma pessoa mais ingénua, mais cor-de-rosa. Não olhar tão desconfiada para a vida e para as pessoas. Mas também somos o que a experiência de vida e a educação fazem de nós. E, para além de nunca ter sido rodeada de perspectivas cor-de-rosa, nunca vi nada que me fizesse supor sequer que as pessoas têm boas intenções. Boas intenções parecem-me raras, escassas e quase mal-vindas, nos dias que correm. Fico um bocado triste, mas, com sinceridade o digo, não sou capaz de escrever coisas cor-de-rosa, escasseia-me a vontade para isso, até. Não tenho perspectivas luminosas e vejo sempre o copo meio vazio.
De toda a minha vida, a época que mais gostei foi a da minha infância mais recuada, quando ainda percebia pouco ou nada do que eram as pessoas. Quando comecei a perceber que os meus pais trabalhavam o dia todo, faziam serão, deixavam-me com os meus avós para não terem de pagar um infantário (para o qual não tinham posses), desmoronou-se um bocado a minha perspectiva rosa de que a vida é dar banho a bonecas e fazer desenhos. Eu gostava muito de fazer isso, mas constantemente os meus pais e avós diziam: " Quem dera ter a tua idade, não tinha responsabilidades. Quem dera ter tido a tua infância " Isso fez-me ver que nem a infância deles tinha sido muito boa nem o meu futuro ia ser cor-de-rosa. E, como se veio a verificar, o futuro que hoje é presente não é cor-de-rosa, e o futuro-futuro também não se avizinha cor-de-rosa. Mas ninguém nasce com livros de instruções especiais sobre a vida. Tudo se aprende. E há dois tipos de pessoas com vidas cor-de-rosa: as felizes e as imbecis. Há pessoas simplesmente sem qualquer dose normal de consciência. São pessoas felizes, mas arruinam o próximo. Parece-me sempre triste e injusto sermos felizes com um custo tão elevado como esse: a anulação do outro. Por isso, só me resta apostar na felicidade que considero verdadeira, aquilo a que os especialistas definem como «equilíbrio homeostático». São pessoas que mantêm o estado de coerência cerebral, independentemente das circunstâncias. Sabem que são capazes. Isso não significa que sejam sempre capazes, nem são necessariamente as pessoas que dizem «ser capazes». Voltamos à carga com os egocêntricos, que pertencem ao grupo dos que dizem sempre que «são capazes». Errar, ser fraco, reconhecer fraquezas é humano.
Com o tempo, ao crescermos, verificamos que a adolescência, por exemplo, é um período de transição complicado. A forma como lidamos com o mundo, nessa altura, define em muito como vamos ser. Os colegas trapaceiros continuam geralmente a sê-lo, durante a vida. Os colegas mais fracos terão sempre problemas de adaptação ao mundo. Regra geral tornamo-nos pessoas mais competentes, enquanto seres humanos, se o tentarmos, mas não fazemos milagres nem apagamos vivências. O cérebro regista. Como eu já disse, é a diferença entre a criança ou o adolescente que sempre teve criados para tudo e a que nunca teve. São vivências influenciadoras, embora nem sempre determinantes, de como vamos actuar na vida. Na adolescência eu tive uma noção bastante aproximada de como era a vida e quem eram as pessoas. Relacionava-me muito pouco. As pessoas não me pareciam interessantes, e tinham quase todas uma inteligência (ou esperteza) virada para o «desenrasca», ideia pré-concebida pelos pais. Lembro-me de ter uma intelectualidade quase única, que me punha de parte. Naturalmente, isso não fez de mim um génio, o que é pena. Era apenas uma inadaptada por motivos diferentes dos de alguns colegas, que se metiam na droga, ou eram instáveis de cabeça, ou tinham complicações em casa. Eu, aparentemente, tinha uma vida dita «normal» (que hoje não tenho) do ponto de vista familiar e até emocional. Mas nada disso me bastava. Lembro-me de ter essa conciência, de nada me bastar, de não querer ficar por aí, de nunca me ter sequer apetecido a «normalidade».
A chegada à faculdade ajudou muito, ensinou-me a interagir mais e fez-me cair num mundo mais frio, mas muito mais real, em que de facto eu era um número. Por outro lado, todos (ou quase todos) os meus amigos são dessa altura.
Aquilo que mais me doeu, na chegada à vida adulta – que para mim foi repentina e abrupta – foi a realidade social, a interacção falsa e descabida entre as pessoas, o ser obrigada a proteger as minhas costas em todo o lado. A gestão da vida afectiva com golpes de auto-defesa. Acho que por essa altura, já o cor-de-rosa tinha desaparecido para sempre. Acalentei, durante muito tempo, em idade adolescente e na minha fase posterior, a ideia de recompensa. Achava que, se tinha sido sempre boa aluna, ia ter um emprego estável. Achava que, se tinha sempre sido uma pessoa correcta, ia encontrar no caminho pessoas correctas. Achava que o amor ia aparecer rápido e seria definitivo, porque até aí já tinha tido desgostos de amor quanto bastasse. Mas nada foi assim. Tenho ideia que, se fizesse uma estatística, fui das pessoas mais mal sucedidas das turmas onde andei, no entanto, fui sempre a melhor aluna. Fui, muito provavelmente, a que mais demorou a arranjar trabalho (todos os meus colegas tinham boas «cunhas»). Fui a que mais demorou a arranjar um namorado decente. E, ao contrário de todos os meus colegas, não estou casada, não tenho filhos e vivo em casa dos meus pais, a contragosto, muito contrariada, porque sempre achei a emancipação não só saudável como desejável, sob todos os pontos de vista. Que se passou com a minha vida? Continuo uma intelectual com boa cabeça, mas tudo o resto sofreu um colapso, um desmoronamento, que me ensinou a manter consciente, mas desconfiada.
Não sou uma pessoa muito cinzenta, ao contrário do que possa parecer, já desiludida acho que sou um pouco, mas também não tanto como a minha escrita reflecte. Para escrever vou muito ao fundo, busco uma resposta. Acho que sempre tive o dom de ironizar a tristeza, fazer sarcasmos, para isso também é necessária inteligência e crescimento espiritual. Mas, pelo menos para mim, vida e escrita cruzam-se, interagem, e não são cor-de-rosa.


Os egocêntricos

Tenho convivido, ao longo da minha vida, com muitas pessoas egocêntricas. Algumas são profundamente irritantes, mas também são profundamente interessantes: os artistas. São todos egocêntricos, vivem dentro de si mesmos o dia todos, enrolados, espiritualmente, em diversas teias. Mais curioso foi um dia uma amiga minha, era eu adolescente, que me classificou como «autocêntrica», uma pessoa que não precisava dos outros para alimentar o ego. É uma palavra bonita, mas hoje em dia creio não ser verdade, creio precisar das outras pessoas e da sua opinião para alimentar o meu ego. Mas, dentro do processo criativo, sou com certeza uma egocêntrica.
Só que nem todos somos egocêntricos da mesma maneira, com o mesmo feitio. Os piores egocêntricos são os vaidosos. Geralmente são pessoas pouco capazes, que compensam a sua incapacidade com a capacidade de se auto-recriarem numa pessoa que, na realidade, não existe. Têm sempre o melhor carro, são os melhores condutores do mundo, são brilhantes, boas pessoas, bem vestidos, nunca se calam, e…são insuportáveis. Já tive amigos assim. Nunca com grandes relações, íntimas ou duradoras, mas já passaram pessoas assim na minha vida. E não é agradável haver pessoas que nos mandem calar ou interrompam a conversa para dizer: " Não te esqueças do que vais dizer, tenho uma coisa para contar ", ou " Estava aqui a pensar na minha vida…" e começa o discurso do brilhantismo. São sempre as pessoas mais esforçadas do mundo, mesmo que não façam mais do que a sua obrigação. São sempre inteligentes, mesmo que sejam medíocres. Têm sempre uma casa melhor do que a das outras pessoas. Têm sempre filhos mais bonitos e mais inteligentes. Têm supra-capacidades. São ultra-sensíveis. Têm jeito para tudo. Gerem tudo com uma perna às costas. Nunca têm depressões, só achaques. Não têm esgotamentos, as suas capacidades estão acima do normal. Coram quando são elogiadas, querem muita atenção e, apesar de não gostarem muito de si próprias, dizem sempre que se adoram como são.
Normalmente, este grupo de pessoas tem vistas curtas. Por se acharem super-homens, ou super-mulheres, não percebem o que está à volta. Vêem os outros como meros espectadores deles próprios e nada mais. Não percebem que as outras pessoas têm outras vidas, ou mesmo vida própria. Acham mesmo que só existe no mundo a vida deles, os problemas deles, as coisas deles, o espaço deles, o tempo deles, e que toda a gente flui em função disso e não em função de outras coisas. A estas pessoas, não vale a pena levantar a voz, contrariar, dizer que não é bem assim. A opinião deles é sempre mais válida, melhor, mais sábia, mais experiente. Muitas vezes a experiência de vida destas pessoas é zero. Nunca passaram por dificuldades nem fazem ideia de quem são, ou como é que o mundo se move. Outras vezes são pessoas com menos sorte, mas mesmo assim de ego cheio de vaidade, ou cheio de complexos de inferioridade. Se estas pessoas forem muito idiotas, nem vale a pena utilizar a ironia, o sarcasmo, ou mandar uma boca. Simplesmente não resulta com uma pessoa cheia dela própria e vazia de significado. Não se tocam. Se forem mais inteligentes percebem, mas acham-se à mesma o máximo.
Há uma certa supremacia nestas pessoas. É terrível trabalhar ou conviver com elas. Nunca fazem nada mal, não cometem erros, não querem ouvir críticas, aliás, não precisam. Se forem chefes de alguma coisa, ou tiverem profissões de contacto directo com o próximo, como professores, psicólogos, médicos, pior ainda. Nenhum professor assim está disposto a ouvir os alunos ou a aprender com eles. Nenhum psicólogo assim pode ser competente, em vez de ouvir o doente vai querer moldá-lo por oitenta euros. Nenhum médico assim estará disposto a ouvir a sério o doente e não só a fazer o diagnóstico. E ouvir é a base destes profissionais, que, ao longo da vida, desenvolvem um sexto sentido apurado para apanharem mentirosos, por exemplo. Isso faz-se ouvindo atentamente. Observando atentamente. Lendo os outros com treino. Um egocêntrico crónico não faz isso. Um egocêntrico crónico ouve o que quer, normalmente muito pouco, com a finalidade específica de falar se si próprio a seguir. Um egocêntrico crónico é um doente a precisar de terapia. O rumo da vida dele é o próprio umbigo. E, a menos que se toque, o fim da vida dele está também aí. Como Narciso, afogam-se na própria imagem, ou nem querem vê-la para não se afogarem logo.
Os egocêntricos (homens) normalmente ocupam cargos de poder, são arrogantes, recusam ouvir o próximo. As mulheres ocupam qualquer cargo, desde que possam falar delas próprias. A colega mais burra que tive na faculdade era uma egocêntrica. Como muitos dos egocêntricos, tinha sido mimada como se fosse a última pessoa à face da terra. Estava sempre muito orgulhosa dela própria, apesar de ter levado cinco anos a fazer uma cadeira do 1º ano e dez anos a tirar o curso. Era a mãe que fazia tudo em casa dela, inclusivé aquecer-lhe a cama, para ela se deitar. Mesmo assim, ela achava-se o máximo, e até já se tinha casado e tido filhos quando nós nem pensávamos nisso. Não avançava mais do que isto, provavelmente não avançou – nunca mais a vi, não posso precisar. Mas também há egocêntricos descompensados. Os que não tiveram a atenção que achavam que mereciam, nem tanto mimo como desejavam, e que procuram atenção em todo o lado. Muitas mulheres que usam sempre decote (até no Inverno) estão incluídas neste grupo. Acham-se as mais lindas, as mais bem feitas, as mais perfeitas (mesmo que saibam que não o são), e adoram atenção masculina. Não passa disso. Acabam por se envolver nas próprias teias e morrer sufocadas nesse movimento concêntrico de «ou tenho atenção ou faço uma birra descomunal».
O melhor exemplo disto é um conto, muito pequeno, de Clara Pinto Correia, pertencente a um livro que uma amiga me ofereceu há uns anos «Mais marés que marinheiros». Falava de uma senhora quarentona, com emprego estável, que todos os dias suscitava atenção pela roupa que vestia, pelo decote proeminente, pela maquilhagem soberba. Todos os dias aparecia com um sorriso nos lábios, os homens fantasiavam sobre ela, as mulheres tinham inveja. Tinha fotografias do marido e dos filhos, parecia feliz. Um dia, a mulher suicida-se, aparece morta, misteriosamente, e vem abaixo a teia de mentiras que tinha criado: não era feliz, não gostava do emprego, não tinha filhos nem marido, não tinha amigos. Simplesmente tinha tido a capacidade de se auto-recriar, de fingir a auto-estima. E isso nem sempre é fácil, mas acaba sempre mal.


O funcionalismo público e os funcionários públicos

Há muito tempo que venho a pensar nisto, no dito funcionalismo público e nos funcionários públicos, mas, como sempre, foi uma conversa quotidiana que ouvi que me despertou a atenção. Diversas senhoras que almoçavam perto de mim, funcionárias públicas de uma biblioteca iguais a tantas outras, conversavam acerca da vida, queixando-se. Até aqui nada de estranho, toda a gente se queixa, salvo as pessoas mais tímidas ou introvertidas, que se queixam para dentro, ou os egocêntricos vaidosos, que só falam deles próprios. Mas as queixas eram do melhor. Uma queixava-se que na cantina devia haver um complô contra ela porque lhe tinham servido, única e exclusivamente, uma fatia de carne, em vez das três a que tinha direito, por isso, já que ia ficar com fome, pediu sopa e pagou menos. O comentário é corriqueiro, bem sei, mas é assim mesmo que começa uma boa reflexão. Primeiro, cantina é cantina. É para quem necessita, não há luxos nem pedidos suplementares. Há o básico. Sobretudo, cantina é, regra geral, para estudantes, gente pobre, regra geral também. Segundo, para que quer uma funcionária pública três fatias de carne, em vez de uma, se passa todo o dia sentada? Personalidade demonstrou a empregada, que lhe negou o pedido. Ora bem. Lá porque é funcionária não tem mais direitos do que os estudantes. Volto à carga. Cantina é cantina.
As pessoas, com o tempo, foram deixando de lado os valores que distinguem o privilégio do abuso. Assim como algumas pessoas deixaram de distinguir o menos bom do abuso. Dá para os dois lados. O funcionalismo público é o primeiro caso. São pessoas ultra-estabelecidas no sistema, tipo lapas, que vão exigindo mais coisas e mais coisas, sem nunca compreenderem que têm de fazer novas aprendizagens. Chegam à menopausa e querem a «promoção a que sempre tiveram direito», com argumentos, ainda por cima estabelecidos por lei, de «contagem de tempo de serviço». Apesar de fazer sentido, não faz todo o sentido que, por sermos velhos, sejamos melhores do que os outros trabalhadores, e por isso sejamos promovidos. O estar há muito tempo num sítio não é determinante de uma aprendizagem correcta, nem é sinónimo de competência.
Mas fico ainda mais admirada com os mais novos, os funcionários públicos mais recentes do funcionalismo público. Para já, como é que entram no sistema? Nunca entendi os concursos ditos «públicos», parecem-me verdadeiras jaulas de nepotismo. Sim, entram por competência, claro. E saias curtas, amigos no sistema, etc. Tudo bem. Entrados no sistema, como é que ficam? Quase ninguém efectiva, mas eu estou sempre a ver gente incompetente a efectivar. As pessoas jovens também não são, necessariamente, as mais dedicadas ou competentes. Por vezes tratam os clientes abaixo de cão.
O funcionalismo público é, regra geral, uma proliferação nefasta de gente estúpida cravada no sistema, preguiçosa e corrupta, ultra-dependente de outros trabalhadores mais competentes. Passam o dia a «verificar ficheiros» e a «enviar faxes», coisas úteis, tão úteis quanto ler o Tio Patinhas ou jogar Tetris (também há tempo e espaço para isso). Levantar o cu da cadeira para atender o telefone é o sacrifício supremo. Depois almoçam na cantina, criticam o comer da cantina (mas almoçam lá sempre, porque é barato), querem mais comida, como se fossem atletas de alta competição com grande performance, e ainda se chateiam se não têm a tão almejada «promoção».
Evidentemente, não posso generalizar. Já fui funcionária pública, num trabalho (não emprego…) sem efectivações possíveis: professora. Muitos colegas trabalham com esforço e dedicação, novos ou velhos, mas tantos e tantos «colegas» (merecerão esse nome?) põem atestados (como a galinha põe o ovo...) semanais, sem doença assinalável que não seja um certo pecado capital chamado «preguiça», retirando o lugar a tantos colegas desempregados muito mais competentes. É isso o funcionalismo público. Mais uma vez se aplica a norma que eu e os meus amigos temos para estes casos: todas as putas têm sorte.
No outro dia, no Telejornal, passava uma notícia acerca do trabalho na restauração. O entrevistado, professor de hotelaria, dizia que a restauração não atraía os jovens porque eles queriam ser «funcionários públicos». Não estavam habituados a trabalhar ao fim-de-semana, queriam horários fixos e não rotativos. Se formos ver, tem uma certa lógica: as pessoas gostam de ter hora de entrada, hora de saída, hora de almoço e fins-de-semana. O funcionário público tem um serviço de saúde privilegiado (pelo menos a ADSE paga os óculos aos míopes, não é como o SNS, que dá uma comparticipação de dez cêntimos…). Mas penso que o senhor terá dito isso pela ideia-mestra que gere o funcionalismo público: o dolce fare niente. Não se estaria a referir aos professores, que mesmo que não façam nada convém sempre que façam alguma coisa, para não serem mortos pelos alunos, nem se estaria a referir aos médicos, que, nas urgências, não podem dizer: "Realmente hoje não estou para aqui virado." Mas talvez se estivesse a referir às senhoras desta e de outras bibliotecas.
Da minha parte, não tenho saudades de ser funcionária pública, a não ser pelo serviço de saúde (que me pagava os óculos). Gostava dos miúdos, das aulas, mas nunca gostei dos colegas (na sua maioria), nem da carreira, que acho miserável, pois trata os professores como saltimbancos sem família com papéis multifacetados, de pais, psicólogos, artistas de circo; nem de concorrer (os papéis parecem um jogo tipo Cubo Mágico). Não tenho saudades de «progredir» na carreira, porque isso simplesmente não existe. Acho que nenhum professor, hoje em dia, tem uma carreira. Tem mais um carreiro, um caminho esconso, construído a pulso. Acho os meus colegas professores – os que ainda concorrem – vitoriosos enquanto funcionários públicos, porque não se deixaram acabrunhar (ou não puderam mesmo) pelo funcionalismo público dos colegas, pela sorte das putas, pelo sistema corrupto. Para além disso, um professor que seja competente trabalha muito, mas muito mesmo, arduamente, todos os fins-de-semana, e ainda é criticado pelo «longo» mês de férias, em Agosto, quando por vezes, no(s) mês(es) seguinte(s), não é colocado, não tem direito a ordenado, como foi o meu caso. Também não há efectivações para ninguém, nem reformas. Em breve os professores serão um bando de velhos caquéticos, com Alzheimer e Parkinson, a trocarem os nomes dos alunos enquanto entregam os testes com as mãozinhas trémulas, ou perguntarão «Ai hoje é que era o teste?», como acontecia com uma professora que eu tinha, de inglês, a excelência e a competência em pessoa (assinava o livro de ponto e ia embora). Com tantos esgotamentos e depressões, como ficarão os professores? Ou melhor, como ficará o sistema de ensino, que tantos partidos políticos assumem estar assente nos «interesses» do aluno (que ninguém sabe quais são, nem o próprio aluno) e não nos do professor?

Monday, March 27, 2006


As feministas

Continua-se a ter, ainda hoje, uma ideia errada e errónea acerca do que é ser feminista. Se, nos dias que correm, a imagem das mulheres a queimarem os soutiens já desapareceu de cena, ainda temos o estigma de que a feminista é uma mulher frustrada, feia, barriguda, de pêlo na venta, pronta a barafustar por tudo e por nada, e, acima de tudo, pronta a castrar os homens. Em suma, uma mulher do bloco de Esquerda. Muitas das senhoras do BE faziam parte do ex-PSR e proclamavam nos panfletos, bastante zangadas: «Deixem de nos tratar como cadelas com o cio!». Embora seja exagerado dizê-lo desta forma, muitas vezes somos tratadas como carne para canhão. Por isso, este tipo de feminista, embora caída em desuso, ainda faz sentido nos dias que correm, tristemente o constato através da minha observação.
Veja-se o que nos dizem as estatísticas: as mulheres são as maiores vítimas de agressão doméstica (raramente temos casos de mulheres que batam nos namorados/maridos, embora eu conheça casos desses), de violência de todos os tipos, de violações, quer sexuais quer dos direitos humanos (a prostituição e o tráfico de mulheres atinge níveis mundiais elevados). Por outro lado, na vida quotidiana, são muito mais sacrificadas. Embora as coisas já vão mudando, a mulher concilia mil e um papéis e é só uma. É a super-mulher, a super-mãe, a super-amante, a protectora da família, a gestora de carreira, da casa, da sua própria vida, do seu bem-estar. É sempre condicionada por estereótipos (como eu aqui já tinha referido), referentes a carreira/casamento/filhos, e referentes também a uma forma física que tem, muito a custo, de manter. Não é de admirar que, com tantas pressões, a mulher esteja mais sujeita a esgotamentos e depressões. São elas que inundam os centros de estética mas também os gabinetes dos psiquiatras (talvez também por exporem mais os seus problemas e serem mais capazes de falar do que os homens, ou por antigos estereótipos masculinos, que vêm o homem sempre como alguém forçosamente capaz de ultrapassar as dificuldades sozinho, o que também vai sendo cada vez menos verdade), novamente numa subversão das conquistas feitas ao longo das últimas décadas.
Somos, também nós, as maiores vítimas dos piropos estúpidos dos homens (e até de outras mulheres), que nos vêem como um pedaço de carne com pernas, mesmo quando não fizemos nada para sermos vistas assim. Lembra aquele caso de violação nos EUA perpetrado por um padrasto a uma enteada, em que ele respondeu no Tribunal que a rapariga o tinha deliberadamente provocado com uma minissaia e andava despida pela casa, o que justificava, na perspectiva dele, o crime.
Apesar de tudo isto que aqui ficou dito, continuo a achar que a feminista de pêlo na venta tem tendência a desaparecer. No outro dia li uma pequena entrevista a uma gestora, num artigo semanal que sai no Correio de Domingo acerca de mulheres com sucesso na carreira. A certa altura perguntavam-lhe porque é que ela, com quarenta anos, se tinha casado só há três (de novo o estereótipo…), e ela respondia que não tinha sido por causa da carreira, mas porque tinha demorado muito a apaixonar-se. Se esta resposta faz sentido, a resposta à pergunta seguinte não, porque lhe perguntavam se ela era feminista, e ela respondia que esse termo não fazia sentido porque estava apaixonada pelo marido e mulheres e homens eram iguais. Esta ideia de que a feminista castra os homens e, consequentemente, a paixão e o amor, penso ser falsa e quase perversa. Lutar pela igualdade não subestima os homens, nem sequer o pretende fazer. Hoje em dia, só uma louca completa pode defender que um homem não é preciso para nada. Os homens têm e continuarão sempre a ter o seu papel de namorados, maridos, pais, e não podem ser reduzidos a «reprodutores» (os bancos de esperma parecem-me redutores da condição masculina ao máximo). São ajudantes preciosos em todos os momentos da vida, se a vida é vivida em conjunto. Embora eu acredite que uma mulher possa viver bem sem um homem, nunca se casar, ou não ter filhos, isso não anula o papel deles. Penso também que ser feminista é uma condição que não pode pôr em causa o amor ou a paixão. Defender as mulheres não é o mesmo que dizer que elas não se podem apaixonar profundamente por um homem. Seria uma subversão à natureza defender o contrário. A paixão e o amor são naturais.
Os homens adaptaram-se melhor ao feminismo do que as próprias mulheres. Ou muitos deles. Sabem que as mulheres podem ser tão competentes como eles, e ao mesmo tempo boas esposas, boas mães. Mas se forem concienciosos também saberão que elas não são super-mulheres, por isso é necessário que cheguem a casa e lhe permitam, também a ela, sentar-se numa poltrona a descansar, onde outrora o Archie Bunker se sentava aos gritos, para a mulher lhe trazer uma cerveja. As mulheres não se adaptaram ao feminismo. Querem ter os mesmos direitos do que os homens, jogando com as mesmas armas, quando dispõem de outras. Ou simplesmente não querem. No dia-a-dia, muitas mulheres comportam-se como se nunca tivessem tido direitos. São elas que sustentam a casa, vão buscar os filhos à escola, dão-lhes banho, fazem a comida, a limpeza da casa e permitem abusos constantes dos maridos, nunca puxando pelas capacidades que verdadeiramente têm, nunca transcendendo os papéis ditos «tradicionais», e ainda por cima acumulando outros, nunca transgredindo. Muitas não descansam o suficiente e morrem da falta de descanso, porque passaram a vida a aturar maridos difíceis, filhos mal-comportados, sogros e pais difícieis sem terem ajuda.
Qualquer homem e qualquer mulher conscienciosos sabem que a vida em conjunto não é fácil, mas tem de ser sinónimo de cooperação. Não vale um lutar desregradamente por uma coisa sem a ajuda do outro. Não vale educar sozinho ou sozinha. Não vale casarmo-nos com o silêncio e sermos obrigadas a solucionar tudo. Se for assim, uma mulher chega sempre à conclusão, mais tarde ou mais cedo, que mais vale estar sozinha. O feminismo só vale em defesa da mulher se utlizado em proporções equlibradas, diariamente. Não vale como discurso vazio, abstracto, que leve as mulheres a praticar isolacionismos inconformados e frustrados.

Sunday, March 26, 2006


Sorte e Azar

Se é verdade que alguns de nós puxamos com força a sorte ou o azar na vida, outros nem por isso, e não são por isso mais sortudos ou azarados. Alguns nem acreditam nesta premissa, acham que «é o que tem de ser». Ou, na doce perspectiva budista, «tudo depende da forma como encaramos as coisas». O que também é verdade, mas que, quanto a mim, não exclui a sorte e o azar das nossas vidas.
A começar pela vida que temos, o país, a cidade, a família onde nascemos. Na perspectiva budista (e em muitas outras, de pessoas que vêem e ouvem Jesus Cristo), tudo isso estava pré-determinado antes da nossa reencarnação, a fim de aprendermos uma «lição» qualquer nesta nova vida, mesmo sem nos lembrarmos da anterior. O que faz todo o sentido, tendo em conta que os monges budistas não fazem nada na vida, são só monges e lutam nos filmes do Jet Li, e as pessoas que vêem Jesus Cristo são tão criativas que publicam livros com relatos dessas vivências supra-normais, e têm um ouvido maravilhoso, que lhes permite ouvir Jesus quando ele diz qualquer coisa.
Eu acho que nem tudo depende da perspectiva. É verdade que mesmo azarados em muitas coisas podemos ter sorte noutras, ou ir conquistando aquilo que queremos, mas isso não faz de nós pessoas de sorte, apenas pessoas esforçadas.
Eu explico o que é sorte. É uma rapariga como a Paris Hilton, sem qualquer talento especial, ter resmas de dinheiro e ainda ganhar mais do que os pais. Aquilo que se previa ser um fracasso de gente (sem talento, sem inteligência, sem valores morais) é afinal um poço de sucesso. É sorte. Mas é óbvio que poderíamos sempre ver as coisas noutra perspectiva, e pensar que ela, afinal, é azarada, porque com tanto dinheiro não faz nada de jeito. Eu tenho sempre a impressão de que a Stéphanie do Mónaco, se não fosse princesa e vivesse em Portugal, vivia nas barracas com os seus filhos todos, cada um de seu gajo. Mas é princesa, por isso tem a sorte de poder viver como quer, com a circunstância negativa de ter de estar habituada a ver os seus talentos íntimos fotografados a toda a hora. Também não precisa de trabalhar para alimentar aquelas bocas todas, basta-lhe ir ao baile da Primavera, magra e bem vestida para ninguém falar mal. Apesar de os Grimaldi parecerem amaldiçoados, não o são. São uma família normal: passam por mortes, desastres, relações sem futuro, filhos ilegítimos. É quase uma família portuguesa. Se morassem nas barracas, ninguém falava neles, eram «normais», assim toda a gente acha que são azarados, que lhes acontece tudo. Também eles puxam os problemas e os azares, não têm mais que fazer na vida. Não têm um horário a cumprir, não têm o problema do desemprego, do sustento familiar, do pagar renda da casa, nem sequer o problema de ter casa. Quando se estala os dedos e se tem as coisas, qual é a dimensão da sorte e do azar? No entanto, certas sortes não nos impedem de viver uma vida infeliz, e certos azares não nos impedem de sermos felizes e realizados. Talvez a perspectiva conte, de facto.
Não me lembro de grandes exemplos de sorte, na minha vida. Tenho alguns, mas a maior parte achei merecidos, e todos eles tiveram o reverso, a consequência, um azar qualquer. Isso significa que pago sempre um preço. Por isso, eu considero sorte, na minha acepção: «acontecimento inesperado que traz prosperidade, sem que tenhamos de fazer seja o que for para isso, quer mereçamos ou não». Vejam se não tenho razão. O que é «merecer»? É ter de trabalhar para, fazer esforço, ter um conjunto de valores que permitam ganhar qualquer coisa. Mas se nada se fizer, e algo nos cair no colo, isso é o quê? Sorte. Óbvio. Nunca gosto que me digam «Tiveste sorte», prefiro que me digam «Mereceste isto». Ou então, num nível mais rebuscado «Tiveste sorte e mereceste», o que também é possível. Podemos merecer muito uma coisa e nunca tê-la, por mero azar.
Claro que temos sempre de fazer um percurso espiritual que nos permita valorizar o que temos, e não o que não temos nem podemos ter. A satisfação com o que somos, com o que temos é a maior expressão de felicidade. Eu, por exemplo, só sinto a felicidade entrecortadamente, exactamente porque, na minha vida, tudo o que houve de bom teve um reverso negativo, mas o contrário nem sempre se aplicou, ou nem sempre consegui aplicar (se calhar foi falha minha). Há coisas que me pareceram, única e exclusivamente, más. Há pessoas que me pareceram só empecilhos, e pouco ou nada aprendi com elas. Nem sempre sou uma pessoa construtiva, Há pessoas que me parecem tão inúteis, que é difícil imaginar a função delas. Talvez seja essa, a inutilidade.
Já fui mais optimista do que hoje sou. Dantes eu imaginava que a maior parte das pessoas era fixe, e havia umas quantas ovelhas ranhosas. Mas hoje vejo o mundo de outra maneira. Acho que por uma boa pessoa que aparece na minha vida, aparecem dez inimaginavelmente estúpidas e cruéis. Talvez estejamos a perder humanidade. Ou talvez eu tenha simplesmente chegado à idade adulta, sem sorte ou azar em demasia.
Tenho dificuldade em encaixar o porquê de, na minha vida, tudo ter tido consequências, mas não ver o mesmo na vida das pessoas que me parecem estupidamente cruéis. Parecem-me sempre pessoas com incrível sorte: têm bons empregos, têm sempre quem as ajude, conseguem manipular e humilhar o próximo sempre que é necessário. Talvez umas não sejam felizes. Mas algumas são, talvez por serem tão imbecis que se tornam inconscientes. Raramente sofrem consequências do seu comportamento. Talvez porque só vivam para elas próprias, longe da sorte ou do azar dos outros.

Saturday, March 25, 2006


As possibilidades

Sempre me irritou essa história bacoca da «igualdade de oportunidades», ou do «todos podemos lá chegar com mais ou menos esforço». Acho que isso pertence às tais coisas do politicamente correcto que solenemente me transtornam, e nada têm que ver com esforço ou força de vontade. É evidente que o esforço e a força de vontade são muito determinantes naquilo que conseguimos. Mas não são tudo. Quem o disser é porque não observou bem à volta. Aliás, esse é um problema que grassa. Só observamos a futilidade, não observamos o que as coisas significam. Observamos as ciganas no metro e as roupas que trazem, o tom de voz, as crianças ranhosas, não observamos o que isso significa, socialmente. Ou pelo menos a maior parte de nós não o faz, a menos que seja sociólogo, psicólogo, escritor, actor. Mesmo esses, muitos desses, vivem do que os livros dizem e chutam banalidades para o ar.
O blogue é uma das realidades da expressão do meu pensamento. Há muitos mais meios. Mas a expressão do meu pensamento traduz uma observação, mais ou menos atenta. A maior parte do tempo passamos a trabalhar, não a traduzir pensamentos. Por isso vivemos entupidos em pensamentos. E a qualidade deles depende muito do que somos, do que vivemos, da nossa experiência. Paris Hilton passa o dia como muitas portuguesas, a pensar: «o que vou vestir amanhã, para causar boa impressão?». A mim chateia-me gastar neurónios com isso. Quando tenho de vestir algo mais elaborado, apetece-me pedir os neurónios de volta, preciso deles, preciso de energia gasta em pensamentos e na escrita. Apesar disso, não escapo á fatalidade de quase adoecer de tanto pensar em coisas supérfluas, como as palavras dos outros e a sua repercussão na minha vida, e a mania que os outros têm de tentar controlar o que sou. Fora dos meus pensamentos melhores, poucas vezes sou livre.
Há sempre possibilidade de pensarmos além do que aprendemos como «correcto», mas poucas vezes utilizamos bem essa dita possibilidade. É um risco ser-se inteligente. Um risco muito grande. Poucos homens apreciam mulheres inteligentes, por vezes sentem-se ameaçados, por vezes nem isso, apenas não gostam delas porque questionam muito, pensam muito, e normalmente não querem papéis secundários na vida, nem atinam com a opinião dos outros. Eu sou um desses estranhos seres. Confesso que é difícil aturar-me e sobretudo viver dentro de mim, quando vivo presa a tantas coisas aspirando liberdade.
Mesmo que tenhamos todos a possibilidade de expressão (o que em certos países não é verdade, a expressão livre é punida por lei), nem todos a utilizamos da melhor forma possível. E nem todos sabemos ou queremos fazer uso dela. No outro dia, dizia-me um amigo, que muito do que somos e da forma como interpretamos a vida depende da nossa educação, por exemplo, daquilo que foi exigido de nós, em pequenos. Tínhamos responsabilidades? Fazíamos a cama? O que fazíamos mal tinha repercussões, castigos? Ou toda a gente nos desculpou e nos incitou a seguir a vida por meio da «cunha»? O que somos hoje depende disso, mas não só. Depende, em grande parte, do que fizemos com essas informações. Muitos de nós somos exactamente a cópia dessas informações, mas outros de nós não. Muitos desresponsabilizam-se, ao longo da vida, para seu próprio benefício, outros vão ganhando problemas e dificuldades aparentemente insuperáveis. E a vida é isso mesmo.


Paris Hilton, a antítese

Há histórias do diabo…começa-se por aprender, na vida, a ser trabalhador, honesto, sincero, e depois, de um momento para outro, chegamos à idade adulta com a sensação de que tudo isso era mentira e estava adulterado. Afinal é melhor ser desonesto, mentiroso e manipulador do próximo. Paris Hilton aprendeu isso bem cedo. Os pais conquistaram a pulso o império dos hotéis Hilton, espalhados pelo mundo, e as filhas, Paris e Nikki, aproveitaram a deixa para…não fazer absolutamente nada à sombra dos pais. Paris é a que mais factura, embora as «manas» se metam nas coisas em conjunto. Em separado, ainda é mais divertido, porque Paris é a estupidez encarnada numa pessoa seminua. Não sabe o que diz, não tem vocabulário nenhum, é burra, veste-se à Verão, mesmo no Inverno, mas mesmo assim já escreveu livros (algum dos escravos dela escreveu-lhe o livro), lançou produtos de maquilhagem, linha de roupas, etc. e, pasme-se!, facturou com tudo isto mais do que o papá e a mamã numa vida de trabalho. Digam lá se não tenho razão, se esta geração sabe ou não sabe desenrascar-se. A menina só tem 21 anos e, em vez de estudar em escolas caras, dorme com meio mundo, rouba namorados às amigas num piscar de olhos, casa-se e descasa-se e, pior do que isso, procura dizer coisas inteligentes como «Vote or Die» escrito na camisola como forma de «obrigar» as pessoas a votarem (ela apoiava Kerry). Imaginem quem se esqueceu de votar? A própria Paris. Esse poço de brilhantismo e sabedoria. Essa pérola de menina oxigenada, anoréctica e, como diria uma amiga minha, bimbalhona. Nem mais. Paris, a bimbalhona, cuja frase mais conhecida é «That’s Hot!», traduzido por «Ai que fixe!», que ela utiliza para quase tudo. Com essa frase, ela vendeu camisolas como pãezinhos quentes, todas a dizerem «That’s Hot!».
A coisa que mais aprecio em Paris é o despudor com que se assume. Adoro isso, sobretudo numa mulher. Uma prostituta assumida é sempre melhor, sobretudo porque sabemos com o que contar. Não gosto, nunca gostei, nem vou gostar, de mulheres falsas e dissimuladas, de prostitutas escondidas em vidas ditas «normais», em trabalhos ditos «normais», que encornam a torto e a direito, mas em casa são «santas». A minha personagem favorita, no «Sexo e a Cidade», sempre foi a Samantha, porque não finge aquilo que não é. Sempre apreciei uma mulher mais brejeira, mas mais assumida, daquelas que se dizem sensuais, provocantes, descomprometidas e prontas a lixar o próximo. Paris é assim, até porque nada tem a perder. Não tem miolos, e entre as orelhas há uma corrente de ar que lhe areja a cabeça, mas não as ideias.
É verdade que o dinheiro que ela tem dava jeito a qualquer pessoa aqui em Portugal, cantinho de pouca gente rica e abastada (e os que o são nem de longe se comparam aos HIlton), mas na verdade Paris é a antítese da mulher perfeita: a carreira dela é a supracitada, não vale a ponta de um corno, valores morais não existem e ela nunca deve ter ouvido falar nisso, tem como ídolo a sua própria vagina (que por diversas vezes mostrou aos fotógrafos), e a maior preocupação é vestir o cão com uma toilette igual à dela, para não destoar. Paris é toda ela acessórios – ou a falta deles – e tem um medo gritante das coisas essenciais da vida, como o amor, a sabedoria, a verdade. Só há um valor que ela defende só por ser como é: a liberdade. Faz o que quer, diz o que quer, sonha com o que quer, tem o que quer. Não está fechada numa gaiola, todos os dias, de segunda a sexta (ou a sábado, ou a domingo), está só fechada na própria estupidez; não tem de fazer a lida da casa, nem de pagar os estudos, nem de ir à procura de trabalho, ou de namorado. A maior parte das pessoas tem se esforçar para ter seja o que for: emprego, casa, marido/mulher. A Paris basta existir. Ela bamboleia as ancas e tem um rol de tipos interessados, quando a maior parte das mulheres tem de ter jogos de sedução elaborados, com objectivos definidos à partida, como casar, ter filhos, ou simplesmente ser rica, o que aqui em Portugal corresponde a uma vida confortável. Paris não conhece a palavra «dificuldade»: não viu gente doente, sem ser em revistas, não passou horas, dias, semanas, em lares da 3ª idade ou hospitais, a morte não se atravessou no seu caminho (para além da morte dos seus neurónios). Nunca teve chatices pessoais, nunca teve de lutar, esforçar-se, e mesmo assim sair perdedora de uma luta. A coisa pior, para ela, foi ter perdido o cão, afinal encontrado na casa de uma vizinha que, nas palavras de Paris, «não lho queria devolver». Segundo os «papparazzi», o cão nem era o mesmo, Paris perdeu um e comprou outro para agradar à imprensa, para continuarem a falar dela, mesmo sem fazer nada. É assim que ela resolve os problemas, por substituição, por compra. Tudo lhe cai do céu, e ela retribui com um sorriso parvo. «That’s Hot!»

Friday, March 24, 2006


A peça que falta

Nas nossas vidas, sentimos por mais de uma vez, que falta uma peça, inaudível, silenciosa, pacata. Uma coisa qualquer que, aparecendo, nos toma os sentidos todos, e não só alguns. Algo que nos faça escapar do barulho constante da vida mundana, que implica sofrimento, quase sempre. Para muitos, a peça que falta é o amor, para outros a plenitude de espírito, para outros o emprego ou a casa dos seus sonhos. Muitos completam faltas com outras faltas, ou responsabilizam o próximo pela falta de alguma coisa. Entristece-me isso. As pessoas que são assim são mentalmente desequilibradas. Têm namorados porque não são felizes, têm filhos porque não são felizes, têm bens materiais porque não sabem mais o que fazer. O endividamento permanente faz parte deste carácter. Ou os pais que sufocam os filhos, e os fazem viver em função dos seus próprios interesses, ignorando a dimensão humana, a pessoa do lado de lá. Parece invulgar, mas não é. Este aspecto explica a cara triste e desiludida das pessoas nos transportes. Não têm para onde ir, vivem aprisionadas nos empregos e nas frustrações pessoais. Custa-me, mas julgo que a maior parte das pessoas vive assim, pelo menos nos meios citadinos, onde a solidão faz parte do dia-a-dia e se deita connosco. Conheço poucas pessoas felizes. Muito poucas. São excepções à regra, e isso, na verdade, doma os meus sentidos e os meus pensamentos, daí que eu julgue, com bastante certeza, que a maior parte das pessoas não é feliz, não pensa muito sobre isso ou sobre as causas da suposta infelicidade/frustração diária. A maior parte das pessoas é simplesmente infeliz, e pensa, com um grau de certeza bastante grande, que se tivesse outro marido/outra mulher, outros filhos diferentes, outra casa, outras possibilidades, outro emprego, seria, com bastantes probabilidades, feliz. O que não temos é a causa da infelicidade, em vez da congratulação diária (e um bocado pacóvia, diga-se) com o que somos e com o que temos – é a teoria budista em todo o seu esplendor.
Por se concentrarem na sua própria infelicidade, as pessoas tendem também a observar a infelicidade do próximo e a tocar nos pontos fracos com força e determinação nunca antes vistas. É por isso que por vezes um grande amigo nosso nos diz: " Que cara péssima! Que borbulha horrível! Que te aconteceu?? ", com o ar mais sério do mundo. É por isso que os pais adoram dizer aos filhos: " Não consegues fazer nada. Não és capaz. Vê se aprendes. " É por isso que não há alminha no mundo que não me diga: " Tens carro, tens carta, porque não conduzes? ", em vez de " Tens carro, tens carta, não conduzes, então dá-me o teu carro, que me dá jeito ". Isto seria não só uma atitude positiva, como inteligente. Por isso aqui fica o repto lançado: quem quer o meu carro? Quem ficar com ele tem de me prometer que não me manda mais conduzir, nem se questiona mais acerca das razões que me levam a não conduzir, nem me tenta dar lições de condução. Eu não ando por aí a fazer isso a ninguém. Não digo aos meus amigos com excesso de peso: " Mas tu és doido? Emagrece mas é… ", nem digo aos meus amigos magros: " Que anorexia! Pareces um cabide, vai comer qualquer coisa! ". Se eu não digo isso aos meus amigos, porque é que os meus amigos me mandam conduzir? Preocupação com o meu futuro, é sempre o argumento. Lá vem a velha mania de as pessoas viverem no futuro, esquecidas do presente. Eu bem digo a mim própria que o que é importante para mim pode não o ser para os outros, ou vice-versa, mas nunca entendi as quinhentas mil pressões para eu conduzir. Será que por eu não o fazer o mundo fica mais pobre? Será que não conduzir é equivalente a não querer ir ao hospital tratar-me? Porque será que as pessoas gostam tanto de malucos na estrada? E eu, que tenho a consciência da minha loucura, tanto quanto possível, sou penalizada?
Isto que estou a descrever é muito estranho, mas a minha vida, que é simples e patética, parece ofender muita gente bem intencionada. Ou porque isto ou porque aquilo. Ou porque faço ou porque não faço. Conheço tantas pessoas mal intencionadas, e ninguém se chega a elas a dizer: " Ó vadia, larga o gajo que o estás a explorar!! ". É uma pena. Há uma certa falta de sinceridade em quem me dá «bons conselhos». Quando alguém vem com essa lançada, já sei que é uma pessoa frustrada à espera de me magoar. A minha fragilidade poética e existencial parece ser a antítese deste mundo. As pessoas parecem ter sempre vontade de aconselhar as outras a fazer exactamente o que elas querem, como querem, quando querem. Todos os que não cumprem isso são teimosos e desobedientes, são rebeldes, quando, ao fim e ao cabo, estão a ser eles próprios, assumindo falhas. Tenho tanta vontade que as pessoas enfiem os «bons conselhos» pelo rabo acima… É tão difícil ser pessoa, nos dias que correm.


A culpa das mulheres

Muitas vezes questiono o facto de haver ainda tanto machismo no século XXI, de continuarmos a achar que as mulheres não são capazes de tudo, sobretudo porque, como toda a gente sabe, ainda lhe cabe o papel principal de «guardiã» da família, de mãe, esposa, amante. Às mulheres que não são assim cabem-lhes rótulos pouco simpáticos: são mulheres de carreira que deixaram o ter filhos para último lugar, colocando os seus próprios interesses em primeiro, são mulheres que se casaram tarde (e vem a pergunta: qual é o problema dela?), ou são simplesmente rotuladas de «frustradas», de «lésbicas», sem apelo nem agravo. Por muito que eu repita, na minha cabeça, que os rótulos não fazem as pessoas, eu enquadro-me na categoria das mulheres muito mais preocupadas com carreira do que com filhos. E tenho ouvido poucas mas boas.
O curioso disto tudo é que estas ideias-chave, estes rótulos magníficos não vêm da boca dos homens, ou porque eles não pensam assim ou simplesmente porque não se preocupam com isso de ter filhos cedo ou tarde (também não são eles que têm de engordar brutalidades para carregar com bebés na barriga, nem dar de mamar). Não vejo os homens preocupados com a questão dos filhos, do tipo " Mas eu cheguei aos trinta e não tenho filhos? Que se passa comigo? Estará algo errado? Vou ser um pai velho? ". Não vejo os homens muito chateados com a questão. Mas as mulheres sim. Chateiam-se a valer. Eu digo sempre que não me chateio nada. Mas chateio. E muito. Porque raio tenho eu de ter filhos? Em que é que isso me «completa» assim tanto? E lá se ouve as outras fêmeas-procriadoras, " Um dia quando fores mãe já percebes ". A sério? E se eu não for mãe? Não percebo? Não encontro sentido existencial? Ai meu Deus, filhos para que vos quero…
Dantes era o casamento. Toda a mulher tinha de se casar. Hoje, as minhas amigas que se casam adoecem antes com um esgotamento só por causa da preparação da festa do casamento e, sobretudo, com os rios de dinheiro que gastam. Casamentos então, odeio mesmo. Não há hipótese de me verem de véu e grinalda, a menos que seja como fantasia de Carnaval. Não há hipótese de eu pagar aos meus amigos almoço/lanche/jantar só para me verem com um vestido ridículo. Não quero. Mas com o tempo, as coisas lá evoluíram e foi decaindo o estereótipo. Não temos todos de casar da mesma maneira. Há quem simplesmente se apaixone, ou viva junto, e parece bastar. As pessoas já não vêm com tretas, como a «oficialização do acto» e coisas assim. Já não temos de declarar aos outros que «somos casados».
Depois vem a questão, não sei se mais masculina se mais feminina, da dependência vs. Independência. Afinal as mulheres querem ou não querem ser independentes? Eu sei que eu quero ser. Não me agrada nada viver do dinheiro de outra pessoa, se fosse esse o objectivo ficava em casa sem trabalhar. Mas questiono muito até que ponto as mulheres querem ser independentes. Muitas querem estar «confortáveis». São essas que apostam em namorados ricos, fingem gostar deles (não custa nada, os homens deixam-se enganar bem), e depois passam a vida a lutar por uma casa maior, uns cortinados novos iguais aos das amigas, um carro, uma decoração fashion. Muito fixe, mas isso não é independência – nem casamento na acepção que lhe dou. É olhar para o próprio umbigo com um deslumbramento doentio. E nós, mulheres, estamos muito doentes. Criámos, durante séculos, armas de defesa que agora se viram contra nós, cheias de força. Criámos o mito da beleza e da estética, e vivemos em função dele. Criámos o mito do sexo frágil e o mito do sexo, que ainda é mais interessante. Durante décadas a sexualidade levou um avanço tal, que tomou as rédeas das nossas vidas. Procedeu-se a um endeusamento da mulher e da sua suposta supra-capacidade sexual, que deixava, em muito, os homens de lado. Esse mito virou-se contra nós. Queremos ser mães e queremos ser também artistas nos orgasmos múltiplos. Isso não é estranho, é difícil e um tanto irreal, dada a vida esmagadoramente cansativa que levamos. Queremos continuar a ser donas de casa exímias, como as nossas mães, mas ao mesmo tempo continuar a fazer carreiras competitivas, em que nos possamos equiparar aos homens. E já não queremos fazer isso sozinhas. Queremos que os homens nos ajudem nessa batalha do ser mulher.
Os mitos do que é ser mulher, hoje em dia, são nossa culpa também. Quisemos tudo de uma vez só, e agora não conseguimos gerir tantas das coisas por que lutámos. Ou pelo menos muitas mulheres não conseguem. Eu sou uma delas. Assumo plenamente a minha fragilidade, a minha má gestão de tantos campos da minha vida, a jogarem todos ao mesmo tempo, dentro e fora da minha cabeça. Penso em tudo todos os dias: quando me caso, como vai ser, quando vou ser mãe, porque é que tenho de ser mãe, como vou gerir isso com uma carreira na qual tenho cada vez mais ambições? Como é que depois vou gerir tantas famílias ao mesmo tempo? E já agora, porque é que esta preocupação me cabe a mim? Porque é que tenho de ser eu a «gestora», já que esse papel me chateia tanto. A explicação é que, apesar de me considerar uma pessoa inteligente (ou pelo menos sensata), fui atingida por diversos estereótipos, deixei-me influenciar pelas palavras dos «outros», aqui incluo homens e mulheres.
No meio disto tudo, os homens, que dantes ocupavam o espaço principal da casa, o sofá da sala, mandavam em tudo e tinham mulheres e filhos sob sua coacção, foram relegados para segundo plano. Não são eles que decidem por nós. Somos nós que decidimos por eles, homens educados, na sua grande maioria, por mães-galinhas, ultra-dependentes deles e eles delas. Uma amiga minha, quando se casou, recebeu do marido o seguinte comentário: " A minha mãe passa melhor a ferro ". Um dia ela agarrou nas roupas dele e respondeu: " Então leva à tua mãe". Acho os homens completamente perdidos neste emaranhado de conquistas feministas e femininas. Que fazem os homens, para além do tradicional papel de macho-reprodutor, se podemos ter tudo o que eles têm? Destituídos do papel principal da casa (ou o que assim aparentava ser!), os homens passaram a companheiros ou amigos, sem qualquer domínio sobre o belo sexo. Daí até à manipulação foi um passo. As mulheres emancipadas sabem que os homens não saem debaixo das saias das mães, não são, na verdadeira acepção da palavra, pessoas «independentes». Por isso, cabe-nos hoje o duplo papel, quanto a mim ingrato e quase incestuoso, de mãe/amante dos homens que vivem connosco. Ou então, e esta alternativa é a mais perversa de todas, cabe-nos fingir que dependemos deles para acariciar o seu lado macho e protector (hoje caído em desuso), mas na verdade não dependendo deles e apenas manipulando a nosso jeito os homens para os fins que verdadeiramente pretendemos atingir. Enquanto mulheres, esta foi a nossa pior conquista: enganar os homens de um modo ainda mais cruel do que aquele com que eles nos enganam a nós. Isso faz de nós personagens cruas, frustradas, vaidosas e fúteis. Subvertemos o sistema e fomos subvertidas por ele.