Tuesday, October 31, 2006

«Pedro, o Milionário»

Chama-se assim o novo programa da TVI, e é, no mínimo, curioso. Melhor do que aquele que falava de um noivo horroroso e sacana, que afinal era actor, sem a rapariga saber. Este fala de um rapaz milionário que, pobrezito, não encontra uma dama que goste dele pelos sentimentos e não pelo papel. Só que, e esse é o pormenor mais interessante da trama, o tipo não tem cheta, é apenas um estivador de caracóis, que, como bom actor que é, aprendeu os ditos «maneirismos de ricalhaço», que é saber apreciar caviar e champanhe, ter empregados para lhe lavar o cu, andar num jaguar, andar a cavalo nas horas livre e tomar banho de jacuzzi ao ar livre. Vive num palácio em Barcelona. Como se a história, por si só, não fosse rocambolesca, abre um concurso para que entre pelo palácio dentro umas quantas fêmeas bonitas que lhe têm de fazer as vontades todas. Uma por semana é excluída.

Vamos por partes. Uma. O conceito do programa é, no mínimo, curioso: descobrir se hoje em dia o dinheiro vence ou não o amor, que o mesmo é dizer, descobrir se as pessoas são ou não corruptas. Portanto, o programa faz uma pergunta que me parece pertinente: afinal, porque nos relacionamos nós, porque damos confiança aos outros e por que nos apaixonamos, por um coração ou por um monte de notas?

Segundo. Que mania têm as televisões de voltarem às histórias das gatas borralheiras, das cinderelas, dos três porquinhos, do pobre-menino-rico, do pinóquio, etc. Agora deu-nos para ter paragens cerebrais e ficarmos na infância. Quer dizer, às vezes é bom. Quem não gostaria de ter um pai tão compreensivo como o Geppetto, uma história tão colorida como a da Gata Borralheira, um irmão tão severo mas tão justo como o porquinho Cícero, que nos ensina a construir casas de betão e não casas de palha ou de madeira? Tudo isso é metafórico, mas muitas vezes válido na nossa vida. Convém é que entendamos onde acaba a fantasia e começa a realidade. Porque a realidade é esta: normalmente para percebermos as coisas e conseguirmos atingir o entendimento delas, temos de nos esforçar. Para sermos felizes, temos de nos esforçar. Para ultrapassar traumas e chatices, temos de sofrer e temos de nos esforçar. Não vale a pena tentarmos contornar nada disto. Por muito estúpidos ou imbecis que sejamos, a vida prega partidas constantemente. Escusamos de passar a vida a dizer a nós próprios «isto nunca me vai acontecer», porque essa é a maior mentira do universo. Por isso, mesmo que nos pareça que alguém não teve de se esforçar a pontinha de uma unha para atingir alguma coisa, algum esforço teve de haver, mais não seja o de ludibriar e mentir, que não custa a todos, é verdade, mas que tem as suas consequências. Se a moral é, como dizia Nietzche, a nossa tentativa de solitariamente seguirmos o rebanho, então há muita gente rebelde, porque há muita gente sem moral.

Este programa também é a prova da falta de moral constante das pessoas. Então que raio de rapariga se sujeita àquilo de estar fechada num palácio de um gajo desconhecido, enquanto ele escolhe uma tipa de entre muitas? É que ele vai saindo com elas uma a uma, individualmente e em conjunto – para um estivador não se sai nada mal a bater couro, mas também outra coisa ele não deve fazer na vida. Não se percebe. As miúdas são novas, umas mais giras do que outras, algumas com ar de barracas, de vadias desaustinadas, de filhas pouco amadas. Outras com um ar mais certinho, de betas que sabem o que querem: casar com um homem rico. E finalmente há um outro tipo de gajas, as mais perigosas, que são as que se fazem de difíceis e não querem ir logo para a cama, o que é uma chatice, empatando os tipos, dizendo que são só «amigos», e que «é melhor ir com calma». A tipa do programa que fazia isso até dizia que era desafogada, economicamente, e que tinha tudo o que queria, mas não tinha o que queria: um homem para constituir família. Nunca na minha vida tinha ouvido tamanha mentira, e mesmo assim o estivador-a-fingir-que-é-rico disse que ela lhe parecia «sincera». Portanto, enganou-o bem, porque uma mulher que tem tudo não precisa de ir para um palácio com criados, apreciar as «pequenas coisas da vida» num jacuzzi, num jaguar, numa varanda com vista para o mar. Se ela quer apreciar as pequenas coisas da vida passe um serão com a Tembwa a contar anedotas ou vá almoçar ao jardim do Campo Grande com a Patrícia. Aí, também conhecerá muitos estivadores, e alguns dir-lhe-ão coisas estúpidas, mas sinceras, como «minha jóia, deixa-me ser o teu ourives!» ou «se fosses um pastel de nata eu era a canela».

Uma mulher que tem a postura de procurar um marido no jornal, na Internet ou num concurso televisivo não pode ser boa rês. É uma pessoa que foge do contacto natural com as pessoas. Está bem. Pode acontecer apaixonarmo-nos por amigos, por pessoas conhecidas na net. Mas não me venham dizer que isso não subverte a lei natural das coisas, é quase como escolhermos o sexo e a cor dos olhos do bebé que vamos ter. Ainda por cima estamos a escolher uma pessoa com base em quê? No que ela diz. E desde quando as pessoas dizem a verdade? Ainda se admiram de haver encontros na net que acabam em processos judiciais porque o tipo era anão…

Mas mentir não é só típico de quem anda na net, embora eu seja conservadora ao ponto de pensar que quem promove relações virtuais talvez não esteja muito interessado numa relação real. Mentir também se faz cara a cara, até com algum despudor. E mesmo quando toda a gente topa, parece-me que um mentiroso com lata disfarça e continua. Mentir é uma das coisas que classifico como falta de coerência. Não é nada fácil dizer a verdade, porque a vida é um jogo duro. As meninas que vão à procura de um príncipe certo só mostram quem são dentro dos quartos, umas com as outras, mas não com ele.

Estou curiosa: quando ele disser que é estivador, que vai a eleita responder? Esperem. Deixem-me apostar: «eu não me importo que não tenhas dinheiro, fico é zangada por me teres mentido».

O Pedro diz que não falta por aí gente com dinheiro. É verdade. Não há é muita gente com dinheiro disposta a gastá-lo em pessoas estúpidas, que se aproveitam de tudo e de todos.

O que se passa é que pobreza e falta de dinheiro passaram a ser associadas a falta de carácter, de estirpe, de pedigree. Mas já pensaram que, a grande maioria das pessoas que não tem dinheiro, não tem a culpa disso? Exceptuando as pessoas que estoiram tudo na bebida ou no jogo, parece-me que não escolhemos ter ou não dinheiro. Depende muito do dinheiro que a nossa família tem, porque isso já define muitas coisas, embora não tudo. Há imensas pessoas inteligentes sem dinheiro para continuar a estudar, por exemplo. Depois, evidentemente, depende da profissão que escolhemos e de como ela está cotada, socialmente. Muitas profissões até são recompensadoras, pessoalmente (outras nem isso), como a investigação, mas em Portugal não dão dinheiro, nem têm sequer condições para serem exercidas. Depois, tudo depende da sorte e também dos nossos objectivos. Nem todos queremos, necessariamente, viver em vivendas com piscinas. Eu não quero. A mim basta-me que a vida seja vivida em plenitude e coerência. Acreditem, no entanto, que isso é muito difícil e que nem sempre somos bem sucedidos, porque o que, aparentemente, é coerente para nós não é para os outros.

Não quero julgar as pessoas pelos pais que têm, porque claramente isso é injusto. Mas acho que quanto menos os nossos pais puxam por nós, menos tendência temos para trabalhar e nos esforçarmos por conseguir superar medos e metas difíceis. Confesso que uma educação mais virada para a experiência ter-me-ia auxiliado a ultrapassar o meu medo de viajar sozinha, de me confrontar com a novidade, ter-me-ia ensinado a defender melhor dos pólos opostos. No fundo, educar talvez não seja difícil, mas educar bem é muito difícil. Não podemos prender os filhos a nós nem soltar demasiado, mas também nunca podemos esquecer que estamos a lidar com seres humanos. Por isso, que se passou na educação daquelas meninas? Tiveram pais que as reprimiram, e com essa atitude educaram as mulheres para serem feras, ou por outro lado foram soltas bem cedo para caçarem um homem rico? Estou certa de que, por muitos defeitos que a minha família tenha, seria um desgosto ver-me naqueles propósitos, a atirar-me a um homem rico porque é rico. Mesmo a minha avó, que sempre defendeu a tese de que um bom casamento é um casamento por dinheiro, estou ciente de que não gostaria de me ver rodeada de coisas materiais que em nada trazem benefícios à vida. É um jogo sujo e parece haver muita gente disposta a jogá-lo com as piores armas que é possível.

Uma das raparigas expulsas dizia para as câmaras: «sou demasiada areia para a camioneta do Pedro, ele não tem bagagem». No fundo estava a dizer, sem saber «valho demasiado para um estivador». Realmente, há males que vêm por bem, e às vezes somos castigados sem dó nem piedade pelas nossas palavras e actos.

O pedigree (texto dedicado à Célia)

Ouvi no outro dia esta expressão e não sei se me deva rir ou chorar pelo facto de ter sido dita num estranho contexto de enunciação: numa reunião de empresa, tipo «balanço de produtividade», eu não sei, que na minha vida nunca trabalhei em grandes empresas, só em empresas bem rascas, como centros de explicações manhosos, situados em caves e sítios medonhos, sem balanços de produtividade e, pelos vistos, sem qualquer «pedigree». Não sei se sabem, mas o pedigree é a qualidade apurada da raça de um animal, ou seja, saber quantos e quais cruzamentos houve nas gerações anteriores e em que é que isso beneficiou, fortaleceu ou prejudicou a raça do dito bicho. Pela mesmo lógica, se aplicássemos a expressão «pedigree» a seres humanos, estaríamos a dizer que a avaliação da sua qualidade era feita em função dos cruzamentos anteriores, portanto, seria algo semelhante a «sangue azul».

Eu sempre achei uma idiotice julgar as pessoas pela família que têm. Como é isso possível, se à partida não escolhemos essa circunstância? Tenho conhecido muito boas pessoas com famílias miseráveis, mas também o caso contrário: péssimas pessoas com famílias razoáveis ou mesmo boas. Tinha uma colega minha na faculdade muito convencida do seu pedigree, mas os pais eram dois simples emigrantes com quinhentos relógios barulhentos e coloridos em casa, trazidos da Alemanha. Ela tinha imensa vergonha da ignorância dos pais, mas a verdade é que eram dois seres simples, honestos e simpáticos, ao contrário dela. De igual modo, há pessoas que revelam um bom fundo admirável, que decididamente não foi transmitido pelos pais, veio de outro lado qualquer, talvez seja o pedigree da pessoa, melhor dizendo, o carácter, a sua essência. Não adianta dizer aos nossos progenitores que eles são parvos, muitas vezes, porque os filhos são sempre de outra geração à frente, pensam de outro modo, e geralmente têm outro carácter, melhor ou pior.

Será que trabalhadores também podem ter pedigree? Quem são eles? Os que chegam a horas, os que trabalham mais, os que raciocinam melhor e mais rápido ou…os mais trapaceiros que lambem as botas ao chefe? O que é um trabalhador com pedigree?

O que é uma pessoa com pedigree? Os tipos da monarquia? Ou uma pessoa benzoca, que se tornou rica à custa de um bom casamento? A minha avó utilizava muito a expressão «fazer um bom casamento» ou «casar bem», que significava mudar de estatuto social, ser promovido por meio do casamento. Embora ela não tivesse defendido isso para ela, defendeu sempre para os outros. Ou será que uma pessoa de pedigree é uma pessoa que mostra estirpe, garra, sabedoria, conhecimentos, mesmo que não tenha nada disso? O pedigree é provavelmente medido por duas balizes: o dinheiro que se tem no bolso e o estatuto que se adquiriu, seja por mérito próprio ou não.

Há inúmeras pessoas que se auto-denominam como alguém importante e, se formos ver, têm falta de tudo, estão é cheias de lata, uma lata medonha que atravessa este mundo e o outro. Ter lata não consiste só em dizer o que vem à cabeça – embora na verdade isso possa ser pouco prudente em algumas situações. É muito mais do que isso. Conheço pessoas tão latosas que metem medo, e juro que é verdade. De há uns anos para cá já vi de tudo e já me desiludi com todo o tipo de situações, com a suposta desculpa «era a brincar». A brincar já me chamaram pobre, gorda, incompetente, idiota, estúpida e…uma pessoa com falta de pedigree, que o mesmo é dizer, sem doutoramento na manga ou com poucas qualificações para alguma coisa. Se eu tivesse acreditado nisso, não estava a fazer o que faço nem me tinha casado, nem ambicionava mais e melhor da minha vida, que nem sempre foi assim. Mas a acusação que até hoje me feriu mais, na minha vida toda, essa sim feita com falta de respeito e de pedigree por uma pessoa de baixo nível, foi que eu tinha «falta de humanidade». A mim pareceu-me de uma crueldade terrífica alguém me dizer isso, porque falta-me tudo menos isso: falta-me dinheiro (a mim e à Floribella), uma profissão estável, capacidade de defesa e de resposta a situações menos boas, falta-me um doutoramento, falta-me a minha mãe, todavia não me falta humanidade. E com humanidade não quero dizer «lagriminha fácil», dessas pessoas que choram nos filmes, que gostam de animais e criancinhas, mas são umas filhas-da-puta na vida do dia-a-dia. A humanidade transcende a caridade, a solidariedade. É perceber quem são os outros, por onde andam, porque erram, e perceber que tudo tem consequências, mesmo que não tenha um significado preciso. Humanidade é também a procura do conhecimento do outro (não é preciso estudar psicologia, só saber ouvir, interpretar, falar).

A mim uma pessoa com pedigree parece-me sempre uma pessoa com humildade para aprender com os outros, antes de mais, e com a capacidade para ouvi-los, mas também para fechar os ouvidos à mediocridade e à ignorância dos outros. Talvez o pedigree seja uma certa superioridade a bocas foleiras, atitudes foleiras, gente foleira que gosta de copiar os outros ou de mandá-los abaixo com o intuito de dizer a si próprio/a «ai que fantástico sou!», apesar de, bem lá no fundo, saber que não é. Acho que ainda não ganhei esta imunidade…olha, talvez eu não tenha pedigree.

Bino, o conquistador

Alguns sabem do que falo quando falo do Bino. Outros nem por isso. Mas o Bino sou eu. Ou melhor, é a minha faceta pseudo-cómica, o Parvo que existe em todos nós. O Bino é uma personagem do filme «Balas e Bolinhos» que vive na lixeira, não tem qualquer importância na história, mas tem imensa graça. Para além disso, é o típico atrapalha-tudo, porque não tem capacidades para nada. Sinceramente, e deste ponto de vista, não é bom ser o Bino, porque o Bino é um incapaz. Creio que quem me chama Bino não o faz com esse intento, mas com o intento de me retirar do mundo sério e hermético onde às vezes mergulho sem dar conta.

O Bino é a minha parte infantil e medrosa, que receia muito o novo, que prefere ficar na sua lixeira encantada, tipo Floribella, a evoluir pouco e a sonhar com uma vida perfeita. É ainda o menino, neste caso menina, que não gosta da escola e precisa de tudo e de todos para respirar.

Quando eu era miúda, eu era beata, uma daquelas religiosas que temia, acima de tudo, o pecado. Não sei se essa educação me foi transmitida pela minha avó (mas duvido, porque ela gozava comigo), se fui eu própria que me interessei por um mundo novo. É engraçado que, quando somos nós próprios, apanhamos severamente na cabeça. Quando era católica, apanhava na cabeça porque era católica, quase ninguém apoiava essa convicção e graças a isso nunca frequentei uma igreja como deve ser. Agora que sou ateia e estou no pólo oposto, oiço muitas vezes as críticas da minha avó, como ouvia as da minha mãe. No fundo, a pergunta é sempre a mesma, o que é que os outros, afinal, querem de nós, sobretudo a família? Eu nunca entendi, mas estou ciente de que cada um segue as pisadas que deseja, pelo menos no que diz respeito a fé, crença, religião.

Aquilo que mais me agradava quando acreditava em Deus era o facto de achar que era protegida, que estava sempre acompanhada, que Deus me ajudava de alguma maneira. Talvez isso diminua a capacidade depressiva das pessoas. Deve ser um conforto acreditar que estamos a ser vigiados. Uma igreja parece sempre ser segura. Tenho alguma saudade do tempo em que acreditava em anjos da guarda, santos, santas, milagres, profecias. Tenho saudades do tempo em que tudo era a preto e branco e eu dividia o mundo entre luz e trevas. Hoje não é assim. Tudo se relativizou, por um lado ainda bem, significa que há o direito à diferença, mas por outro lado isso deixou-nos perdidos: afinal onde é que está o bem e o mal? Em qual deles escolhemos habitar?

Eu não sei se é perceptível a todos, mas um dia nós escolhemos qual dos caminhos vamos trilhar. Nem sempre um caminho de luz é um caminho constituído só de felicidade, mas é certamente um caminho onde procuramos a lucidez de opções, isto é, tomá-las de corpo, cabeça e espírito. Também não é sempre um caminho de coerência, porque erramos muito. Mas não pode ser um caminho que só tenha em conta a nossa existência e os benefícios dela, sem percebermos que, seja qual for a nossa existência, ela interage com outras de muitas maneiras. A nossa existência pode ser modificadora do outro, ou manipuladora do outro, exploradora do outro, ou eventualmente potenciadora do outro. Um professor, por exemplo, deve ter uma existência potenciadora, deve ser alguém que puxa pelos outros para fazerem melhor. Um médico tem uma existência apaziguadora (ou mesmo salvadora) das doenças. Um advogado defensora. E assim por diante. Mas à parte da nossa profissão podemos ser pessoas muito diferentes: com pouca ou muita sabedoria.

O Bino, apesar de toda a sua fragilidade, escolheu uma existência potenciadora, mas nas horas livres tem a mania que é herói e vê o Arcanjo S.Miguel, usa a sua espada, como o Eurico, o Presbítero. A sua arma potenciadora são as atitudes e as palavras. Vá, digam lá que o Bino é um beato, como o Santo Condestável. Não tenho muitas crenças. Vou sempre querendo acreditar mais e mais que tudo faz um sentido e que o Pai Natal de presente vai afastar xoxas velhas da minha vida. Mas outras virão, certamente…quem disse que a vida era perfeita? A dureza é sermos felizes com a imperfeição das coisas. A dureza é sermos coerentes quando custa e não o contrário.

O Bino odeia viajar sozinho. É como o primeiro dia de escola, é retirarem debaixo dos pés um mundo conhecido e baralharem tudo. Mas vai. Tanto gostei da escola que ainda lá estou, ainda estudo, ainda gosto, por isso desde os seis anos que o Bino é corajoso, porque não desistiu, mesmo podendo desistir, das coisas que lhe metem medo.

Roma é linda, bem sei. Mas estar em sítio desconhecido um mês, às vezes a olhar para paredes, com um frio de rachar, com poucos meios de comunicação (e caros), sem o pilates, sem a biblioteca que eu conheço, sem as pessoas que eu conheço e a língua onde me sinto confortável, com pouco dinheiro e prazos apertados…é dose. Está bem que tenho uma espécie de sos aqui em Portugal, que me fornece o que eu preciso, mas como pessoa empreendedora, tento fazer as coisas sozinha e aprender por mim. Os outros são sempre uma boa desculpa para não fazermos nem aprendermos as coisas. Tem-me custado muito aprender isso. Confesso que em Fevereiro houve coisas da viagem que me correram tão mal e eu não disse a ninguém. Houve dias desesperantes. Nunca tive aquelas saudades de morrer, das pessoas, nem nada disso, mas tinha muitas saudades de poder falar português sem ser dentro da minha cabeça, ir a um Multibanco qualquer, saber pedir uma comida, comer barato e bem, e conseguir fazer o meu trabalho sem dificuldades de maior. Além disso, passa rápido, mas os dias são sempre iguais. Não tenho como ir seja onde for, trabalho todo o dia. Acho que toda a gente fica mais entusiasmada do que eu com a ida a Roma. Eu já sei o que me espera. Dias frios e curtos, que acabam cedo, quando me vou deitar, manhãs gélidas e chuvosas e um trabalho duro para os meus olhos e costas. Alguma solidão, apesar de o Pedro ir lá ter comigo.

Na verdade, sei que tudo tem um preço. Sempre quis fazer isto, tenho uma certa devoção por tudo o que seja investigação, academia, universidade. Dantes era só um ponto de passagem, mas com o tempo tornou-se clara esta minha opção de viver e respirar na universidade. Seria difícil voltar ao que estava, ao que era, ao que fazia. Só que o preço é este: a distância, o trabalho árduo e muito solitário, a escrita como companhia. Naturalmente que de fora este parece um trabalho aventureiro e sem futuro. Eu própria não sei classificar, mas é bem possível que seja mesmo isso.

O Bino no meio disto tudo é pequenino e só se faz valer do que sempre se valeu: da sua cabeça de alho-xoxo, que felizmente consegue fazer algumas coisas, do seu coração, da ajuda dos seus amigos. O Bino tem pavor de aprender coisas novas, são difíceis e não se chega lá rápido. Estudo italiano todos os dias, mas qual quê…mais facilmente aprendi latim, quando tinha dezasseis anos. Só prova que quanto mais avançamos na idade mais difícil se torna aprender coisas novas. É assim mesmo, toda a aprendizagem se faz de muito esforço e dedicação. A vida faz-se de duras provas.

Saturday, October 28, 2006

Para quem já não acredita no Pai Natal

Apesar de não estarmos assim tão perto do Natal, o comércio abre as suas portas a todos os gastos desnecessários dos portugueses, a começar por velas, pais natais, anjinhos e as merdinhas do costume. Pelo menos é uma época em que reenfeitamos a casa, reformulamos as cores, e colocamos vermelho, verde e dourado em todo o lado. Enfim...haja coisas boas para contar.

Nem todos têm o chamado 13º mês, por isso nem todos podemos abrir os cordões à bolsa para oferecer coisas aos amigos.

Sinceramente, detesto o Natal, desde há muitos muitos anos, e nunca recuperei bem desta neura gigante que é haver Natal. Para dizer verdade, o último até foi bom, porque a Lisa e a Maria (irmã da Lisa) fizeram petiscos divinais, cheios de gordura e açúcar, enquanto esperávamos para conhecer a trombinha do nosso Menino Jesus, o Serginho (que valeu bem a pena!). Para trás desse Natal ficaram imensos que simplesmente odiei, feitos de um pendor trágico porque alguém estava doente ou tinha morrido. O Pedro também detesta o Natal. Quem sabe este ano possamos ser um casal boicotador do Natal e não permitirmos a entrada nem a um Pai Natal na nossa casa?

Quem é o Pai Natal? Ninguém sabe. Nem o Boss AC. Nem eu. Agora todos entendemos o que representa o Natal, quer sejamos católicos quer não sejamos: representa a comunhão, o espírito de grupo, a partilha, o amor, a família, mesmo que todo o ano sejamos umas bestas de merda, trapaceiros e filhos-da-puta, na casa, na rua, na escola, no trabalho, com o namorado ou com a namorada. Portanto, o símbolo do Natal não deveria ser o Pai Natal (que como diz o Boss AC, se é pai, é pai de alguém), deveria ser o Peidalhaço, um palhaço porco e mau para as crianças, que não se esquiva a laivos de pedofilia e sadismo. O Peidalhaço representa o pior de todos nós. Representa a porcaria toda que guardamos cá dentro, desde o ódio mesquinho à inveja, e representa as vontades reprimidas: há pessoas a quem de gosto faríamos o que ele faz às crianças, mandá-las passear, chamá-las de estúpidas, reduzi-las a caganitas.

O que irrita no Natal é mesmo a hipocrisia. Pronto, é uma festa. Deveríamos reduzir o Natal a isso mesmo, a uma mera festa. Como o Carnaval, que não é católico. Era mais honesto. Agora oferecermos presentes só porque sim...Termos férias só porque sim. Bem, está frio. A utilidade das férias é ficar em casa sem fazer nada, porque chove, troveja, faz frio. Eu gosto de ficar em casa, na net ou a escrever, a ler. Essa falta de sol também parece que influencia largamente a nossa disposição, tornamo-nos mais amargos, mais tristes. A falta ou o excesso de sol irritam-me.

No Natal é uma pena não haver castigo para os imbecis. Devia finalmente fazer-se justiça. Deviam vir os castigadores da parvoíce, como no Gato Fedorento, e dar cabo do miolo à maior parte das pessoas. Não era preciso isso. Bastava que de repente os imorais adquirissem uma moral. Nunca mais dormiriam à noite. Isso é que era um filme...Bastava que os imbecis fossem iluminados de repente. É que era lindo. De repente as pessoas estúpidas apercebiam-se de que eram estúpidas. Ai que maldade seria!

Durante esta época comercial, o que eu gostava hoje era aquilo que eu desejava quando era menina, mas um pouco mais elaborado e menos beato, menos católico. Na altura, quando eu era criança, queria muito a paz no mundo e que as pessoas se dessem bem. Hoje em dia, a paz no mundo continua a ser requerida e necessária, mais não seja para assegurar um lugar mais calmo aos nossos filhos, netos e sobrinhos (se os tivermos). Mas as pessoas darem-se bem é que já me parece idiotice, dado o estado actual que as coisas levam. É algo indesejável, a menos que sejamos puramente hipócritas. As pessoas são confusas e não se dão bem, é chato mas é verídico. Não vale a pena puxarmos por aquilo que achamos e classificamos como correcto. Não vale a pena tentarmos mudar circunstâncias que não podemos. Não vale a pena mudarmos as pessoas e a sorte delas. Muitos de nós seguimos caminhos onde impera a tristeza, as trevas mesmo, no pior sentido. E, mesmo que estejamos a ver, nada podemos fazer. Talvez não seja a melhor moral do mundo ficar calado, mas falar é completamente inútil. Caramba, o que dizer a alguém que se enganou no caminho, se não deixá-lo ir até ao fim? Esta impotência dói-me, mas é totalmente humana.

Nem sempre posso amenizar o sofrimento do próximo. Por acaso terei eu dado conta que a minha mãe sofria de cancro antes de ela contar? Não. Que poderia eu ter feito? Teria evitado se tivesse insistido com ela mais ainda para ir ao médico? Nunca vou saber. E cada Natal que passa eu sei menos sobre a vida, sobre o concreto, sobre a transcendência, sobre a dor. Só sei que são humanas e que completam quem nós somos. Que necessitamos da dor para saber que estamos doentes, que necessitamos do concreto para saber que estamos vivos, e que necessitamos da transcendência para saber que temos fé em alguma coisa, seja Cristo, Buda ou nós próprios. Ter fé é preciso. Nem que seja ter fé no amor e na vida. Nem que seja para dar o exemplo, é um argumento um bocado estúpido, eu sei, mas um professor é sempre um pedagogo, por isso nunca perdi este vício consideravelmente funesto de dar exemplo (coisa que, na prática, não consigo sempre fazer).

Muitas vezes me sinto uma pessoa fragmentada, toda partida em pedaços. Não sei quem sou, não sei como intervir na sociedade e na vida. Sei que há diversas maneiras bem simples e nada problemáticas, mas também há outras que passam por uma coragem sem precedentes, como dizer a verdade sem magoar. Onde posso eu intervir? Tenho a certeza que cada um de nós, a seu modo, pode intervir, nem que seja de uma forma competente, ou somente com um sorriso. O senhor dos CTT do Colombo é muito simpático, sobretudo com os velhotes e todos lhe falam como se ele fosse um amigo de longa data. Tenho a certeza que o ordenado dele não comporta esse simpatia (afinal é um emprego do Estado, certamente mal pago). Ele faz a diferença. Ou como ele é que todos deveriam ser, talvez isso, de qualquer modo primar pela educação já vai sendo raro.

Na vida dos nossos amigos fazemos sempre a diferença, com o que dizemos, fazemos, com o que construímos com eles. Mas na vida de estranhos, que diferença podemos fazer? Por exemplo, eu trago presentes de Itália às pessoas mais diversas e inusitadas. Chamem-me o que quiserem: interesseira, por exemplo. Eu também brinco com isso e digo que compro as pessoas com facilidade. Mas na realidade não é assim. É importante para mim interagir. Se eu passar todos os dias pelo porta da biblioteca e disser «bom dia» talvez não chegue. Talvez o sr. João da biblioteca também mereça um presente só por estar ali, presente, e ser simpático comigo. É nesta crendice estúpida de que as pessoas têm um fundo por revelar que podemos pòr a nu, ou mesmo de que podemos mudar alguma coisa na vida dos outros para melhor (como no filme da Amélie Poulin) que eu me baseio. Não sou tão doce (nem chata) como a minha avó, que acha toda a gente boa e bem intencionada, ou talvez não seja tão ingénua. Apesar de tudo, acredito nos outros e na revelação que podem ser para nós se forem bem tratados.

Evidentemente que há muitas e muitas excepções. Mas por uma vez na vida, e por muito hipócrita que seja o Pai Natal ou o conceito que o enforma, vamos acreditar que são mesmo excepções, que xoxas velhas que se apropinquam de gajos ingénuos com cheta no bolso e boa vontade não fazem o mundo, que gordas frustradas e com falta peso em cima que falam mal de nós nas costas e nos lixam não são assim tantas, que tipos arrogantes por terem títulos mais cotados do que os nossos nem sempre são arrogantes e nos maltratam, e por vezes até nos dão a mão. Há tanta gente que não merece tanta coisa, bolas...que não merece nenhum respeito, mas o obtém só respirando. Mas também há tanta gente que leva a vida a tentar obter o respeito dos outros da forma mais transparente e honesta possível, fiel ao que ama e ao que sente, de facto. Vamos acreditar, por uma vez na vida, que o Arcanjo S.Miguel degola as xoxas velhas e deixa lúcidas as pessoas que vivem a olhar para as sombras da caverna de Platão, repondo assim a justiça universal. Acima de tudo, gostaria imenso que todas as pessoas tivessem o mesmo privilégio que eu, de conhecer pessoas esclarecidas e com força interior, como a Elisabete, de conhecer pessoas tão bem intencionadas quanto o Pedro, de conhecerem pessoas que almocem connosco à pobre, no jardim do Campo Grande, mas são ricas em sonhos (Patrícia, é a tua deixa), de conhecerem pessoas que ensinam como estarmos sentados e manter a postura, como o JPA, de conhecerem pessoas que fazem lembrar que há bactérias em todo o lado, como a Patrícia Torres, ou de conhecerem alguém como a Tembwa, que conta anedotas sobre tudo, fantasiando e gozando consigo mesma. Amigas com a força da Paula, da Sandra, da Estela, da Diana. Amigos com a força magnânime e surpreendente do Paulinho. Ou com a ética do Eduardo, que vai a cascos de rolha telefonar-me para Roma a saber do que é que preciso. Ou como a Célia, que diz o que pensa sem medo (quem me dera a mim). Se as xoxas velhas tivessem amigos assim e os aproveitassem como eu, sem os sugar de forma medonha, não viviam no mundo das trevas. Mas xoxas velhas não chamam amigos assim. É preciso garra, mas também doçura, para conquistarmos as pessoas e colocá-las do nosso lado, sem todavia pedirmos o impossível às pessoas, que é estarem sempre do nosso lado. Isso eu não peço. Não posso pedir.

Não acredito nada nesse velho tonto que é o Pai Natal. Não gosto nada da beatice que é o Natal, com as igrejas cheias e os peditórios para tudo e mais alguma coisa. Esse aproveitar da carruagem desagrada-me solenemente. Só que quero muito acreditar que o Arcanjo São Miguel vai actuar com a sua espada, senão estou certa de que arranjará alguns discípulos para fazer o seu trabalho.

Thursday, October 26, 2006

O sonho (post ficcional delirante)

Hoje tive dos melhores sonhos que já tinha tido com a minha mãe. Foi magnífico e não posso explicar aos leitores deste blogue que não tenham, alguma vez na vida, perdido alguém pela morte (porque há várias maneiras de perdermos as pessoas, e qual delas a mais complicada!) o que é sonhar com essa pessoa feliz e descansada. É que eu nunca sonho assim com ela. Ela está sempre doente, ocupada, em baixo – se calhar porque a maior parte da vida esteve assim, ou porque infelizmente a dor da doença e da perda me custaram muito.

Neste meu sonho eu tinha tido um filho e ela felicitava-me muito, estava muito contente. Talvez porque a minha mãe sempre tivesse querido um neto, mas não chegou a ver. Neste sonho consegui, como em poucos, agarrá-la, senti-la, abraçá-la, sentir-lhes o rosto, a textura do casaco, a maquilhagem, o cabelo, as mãos, os anéis. Estava à porta da casa dela, estava lá o meu pai e diversos vizinhos em redor a verem o bebé. Então a minha mãe, resplandecente, dizia: «a minha filha está muito bem». Com a novidade deste sonho, em que a minha mãe estava feliz, pensei que me tivesse acontecido uma boa nova, sem ser a de ir novamente a Roma, como está agendado, e percorri o meu dia pensando que coisa extraordinária me iria acontecer hoje.

Fui almoçar com as minhas amigas à faculdade, e, para além de receber o meu presente de casamento ultra-esgotado da Loja do Gato Preto (que elas arranjaram depois de percorrerem as lojas todas), recebi a novidade que encheu o meu dia de luz e de alegria: a Sandra está grávida. Está bem, não sou eu que estou (se calhar estou alegre por isso!), mas o meu sonho, afinal, teve um significado. A boa nova tem nove semanas e já anda a passear na barriga da Sandra, que hoje tinha outro sorriso.

Então pensei nestes últimos textos que tenho escrito, dos mais amargos aos mais luminosos, e parece-me bem que estou saudavelmente a enlouquecer, porque ando a ver anjos e demónios em todo o lado, significados ocultos nas palavras, nos acontecimentos e nos sonhos. A Patrícia ofereceu-me há uns tempos o «Livro dos Médiuns» do Alan Kardec, e vejo que não deveria lê-lo à noite com tanta frequência. De há uns tempos para cá tenho tido a sorte de ver anjos de luz. Um deles estava no meu sonho (a minha mãe) outro estava sobre a Sandra, e antes de saber a boa-nova vi-o. Também estava um ao pé da Elisabete quando o Sérgio nasceu, ali bem ao lado (não, não era a senhora que escarrava). Portanto, tenho mesmo capacidades fenomenais: para o melhor e para o pior.

É evidente que tudo isto se liga à energia das pessoas, que quando flui de forma positiva transborda, por isso é evidente que quer a Lisa quer a Sandra estavam felizes nos momentos que referi. Mas está para além disso. É uma energia finíssima que atravessa as pessoas, uma luz branca, transparente, que quase cega. A minha amiga Diana também tem isso, uma aura diferente que eu nunca lhe sei explicar, mas que ela acha muito estranho que todas as pessoas com poderes mediúnicos lhe digam que tem.

Para o que me havia de dar hoje, logo eu que sou tão racional que até a mim me dói. Mas deve ser para disfarçar a tristeza profunda que sinto, porque não posso estar com a minha mãe e tenho de esperar por um sonho para lhe perguntar as coisas, nem sempre obtendo respostas certas. Hoje não me apetece racionalizar. Estou simplesmente em estado de comoção e estou febril. Este reencontro com ela deixou-me estarrecida, aparvalhada, petrificada.

Hoje deu-me para a esquizofrenia. Passei-me, como dizem os loucos. Óbvio que não fiz nada, porque sei bem que não estou louca, apenas delirante, mas consciente. Então vi também, pela primeira vez, o anjo que está sobre mim. É um anjo guerreiro, com uma enorme espada na mão e eu tenho de desenhá-lo. É enorme e está pronto a cortar cabeças. O da Diana é tão pacífico…que inveja! O meu anjo é o da justiça e é poderoso, mas ao mesmo tempo procura a sensatez das suas acções. À noite o meu anjo não brame a espada, tem-la quieta, pousada e está sentado ao pé de mim, a ouvir os meus sonhos, que são a minha maior fonte de conhecimento humano, porque a minha parte racional dorme. Então ele lê os meus sonhos como se de um livro se tratasse, e de manhã pousa-o à cabeceira, voltando a bramir a espada.

Muitas vezes não lhe ligo e ele não fica contente comigo. Perdoa-me e volta a tentar que eu perceba que a minha função no mundo é lutar contra demónios interiores e exteriores, afastá-los da minha luz, precipitá-los na escuridão e nas trevas, sem jamais fazer cair as peças boas deste puzzle que é o universo. Essa é a parte difícil da minha tarefa no mundo: destruir os maus sem deixar os bons em agonia. Mexer cuidadosamente as peças do xadrez. Montar o dominó sem caírem peças. Mas eu explico isso ao anjo e ele, furioso, pede-me a cabeça de todas as xoxas velhas. E eu digo, não pode ser, olha que as peças boas caem…O anjo não gosta de mim parada, quer movimento, acção, quer-me a aprender as forças do universo e diz que eu sou preguiçosa em demasia, não as estudo, não as procuro, tenho-as dentro de mim e disfarço-as neste blogue. Diz-me o anjo: és um atraso de vida, tens capacidades e só investes nos outros, a ver se os modificas, e eles já não mudam. E brame a espada, brame a espada, furioso comigo. E eu, uma jovem sossegada, penso que o silêncio é uma estaca incontornável, acho que muitas vezes devemos ficar cuidadosamente calados, esperando que dos males saia o bem. A verdade é que o anjo tem mesmo razão. Eu devia bramir a minha espada muito mais vezes.

Wednesday, October 25, 2006

Olho por olho, dente por dente

É um provérbio ou ditado árabe, que muito tenho analisado neste blogue e também no anterior. É um ditado simples e honesto, que quer dizer tão simplesmente, se me fazes merda, também te faço a ti. Conversei muitas vezes com a minha amiga Diana acerca dele, e parece-me que concordo com ela, sob todos os pontos de vista: não é um ditado inteligente, nem sensato (a sensatez também é parte da inteligência). Ficariam os nossos problemas resolvidos, se tudo fosse olho por olho, dente por dente? Bem, certamente o nosso espírito descansaria com uma vingançazinha torpe, mas, com toda a sinceridade, resolveria o problema?

O budismo assenta a maior parte da resolução dos problemas no perdão: perdoar a nós próprios, em primeiro lugar, e depois aos outros. Termos força e brilho (na acepção cool da Patrícia França) é a única maneira de ajudarmos os outros. E ter brilho não é só usar o Pantene ProV. É muito mais do que isso: é ter garra, ser empreendedor na vida, saber respeitar os nossos limites e os dos outros, saber mandar, saber dispor das armas humanas que são o corpo e a alma e, acima de tudo, fazer da vida uma luta limpa e transparente. Tenho a enorme felicidade de ver a minha vida preenchida por pessoas que considero serem assim. Não estou a dizer que são pessoas perfeitas, porque ninguém é. Todos têm as suas fraquezas, os seus mimos, os seus defeitos chatos, os seus silêncios incómodos, os seus ruídos. Mas são transparentes, coerentes, limpos como os choquinhos sem tinta. E eu gosto disso nas pessoas, gosto de me rodear dessa harmonia.

Evidentemente que, mesmo sendo uma pacifista, que acho que sou, muitas vezes sou tentada ao olho por olho, dente por dente, porque apetece, porque está na natureza humana, ou só por birrice. Também porque desvalorizamos o movimento perfeito do universo, temos uma visão redutora. Eu tenho, pelo menos. Acho que as pessoas saem incólumes de grandes erros. Acho que os hipócritas vencem. Acho que as mentiras dos mentirosos são frutuosas. Acho que a corrupção prolifera, tem tentáculos, está em todo o lado, em todas as pessoas, em todas as casas. Parece que temos de pagar taxas para tudo, até para respirar. E, acima de tudo, não vejo punições exemplares para imoralidades chocantes, na sociedade como na vida pessoal. O olho por olho sabia-me bem. Tipo câmara omnisciente da vida. Ser Deus um dia. Condutor que passasse com o carro por cima de uma poça de água de propósito e molhasse transeuntes tinha como castigo a casa inundada, por exemplo. Só a ver se gostava da sensação da roupa ensopada ao final do dia (corninhos a nascerem-me na cabeça…). Outra. Pessoa que fosse incorrecta no balcão de atendimento, a seguir à hora de expediente ia ao supermercado e toda a gente era malcriada para ela. Por exemplo. Depois isto ia aumentando, até se fazer luz no espírito da pessoa. Por exemplo. Gaja que andasse a enganar o namorado a seguir tinha outro que a tratasse bem mal. Ou vice-versa. Aluno que fosse mal educado para o professor seria um professor com problemas em disciplinar os alunos.

Mas não é assim. As pessoas não são coerentes. Por exemplo nas relações humanas. Há namorados com quem mantemos uma relação de submissão e outros não. Depende das pessoas, da idade, das circunstâncias de vida, da maturidade. Só temos de amar e ser compatíveis, na realidade é isso. Só que a compatibilidade varia consoante os nossos objectivos de vida. Se queremos ser felizes procuramos uma pessoa que defende os mesmos valores do que nós e nos transmita harmonia, alegria de viver. Não vamos escolher uma pessoa negativa, que saca de nós o melhor e o pior ao pontapé, que se relaciona mal com todas as pessoas de quem gostamos e que não nos inclui na sua vida senão por interesse. Porque será que muitos de nós gostamos tanto de relações medíocres, baseadas na superficialidade e escudadas na norma «estou velho para procurar». Na selva, se um animal fica de lado porque é velho, é morto, comido pelos outros. Por isso na vida, mesmo na amorosa, devemos ser lutadores e não nos contentarmos com o mínimo que podemos ter. Quem senta o cu na mediocridade, medíocre é.

Se às vezes a vida prega partidas e é mesmo como eu estou a dizer, colhemos os frutos daquilo que semeamos, e portanto se semeamos a discórdia, colhemos a discórdia, se semeamos a bondade colhemos a bondade, a vida não tem essa justiça exemplar, o que é uma pena. Muitas vezes semeamos a bondade em locais nos quais ela não dá fruto. E muitas vezes semeamos a discórdia onde não valia a pena. É uma questão de ajustarmos a forma ao conteúdo, eu acho. Quando eu aprendo uma coisa, tenho de perceber se posso ou não mostrar que a aprendi. Muitas vezes, se eu disser a que conclusões cheguei posso ser tratada abaixo de cão. Nem todos somos movidos pela vida espiritual. É a história do costume: como digo eu a um materialista que essa via não é a melhor? Não posso. Ou melhor, posso, mas talvez nunca mude aquilo que está mal, ou que eu considero estar mal. O que nos leva a nós, seres humanos, a pensar que estamos a agir bem? É a velha história do burro. Havia um velho, um rapaz e um menino, que levavam um burro. As pessoas passavam e chamavam-lhes tolos: então o burro não serve para carregar pessoas? Sentaram-se os três no burro. Passavam as pessoas e diziam: ena, três marmanjos em cima de um burro! Pobre burro. Desceu o velho. E as pessoas: pobre velho, é o único que vai a pé. Desceu o homem: pobre burro, a carregar com um velho e uma criança! Desceu a criança: pobre criança, a única que vai a pé e os dois adultos sentados. Por fim, velho, homem e criança acabam por carregar o burro aos ombros. Se a história não é assim, é parecida. Significa que a moral está na perspectiva de cada olhar, e se fizermos a nossa moral com base na dos outros acabaremos por cair em soluções estúpidas, como carregar o burro aos ombros. Por isso, é sempre mais seguro agirmos segundo a nossa moral e não a dos outros. Todavia, mesmo que arranjemos a tal «moral provisório» de que fala Descartes, temos de ter cuidado para não sermos traídos por ela. Somos seres humanos. Nem sempre somos coerentes, perfeitos e não somos eternos, existimos hoje e agora, e nada mais. O resto é memória contida no cérebro (e no corpo, porque também somatizamos) e o futuro não passa de ilusão.

Seja com que moral for, desiludimos sempre alguém que não pense como nós. Quem não aposta na harmonia e no amor vai achar-nos tolinhos à procura do Santo Graal. Quem não aposta na superficialidade e no materialismo, vai chocar com a moral provisória de quem se tenta adaptar às circunstâncias do mundo contemporâneo. É o relativismo axiológico. Deixa de existir o bem e o mal, passa a existir o mais ou menos, o virtual, o «homem-espuma» do Manuel Antunes, que é um homem sem firmeza de convicções e de valores morais. E é esse o grande mal. Caídas as balizas principais que nos orientam, na vida, quem somos nós? Somos olho por olho, dente por dente. A sociedade é injusta, eu sou injusto. A sociedade é torpe, eu sou torpe. A sociedade vive na ignorância, eu vivo na ignorância. A sociedade estimula o consumo, então eu consumo. A sociedade é fútil, então eu sou fútil. A sociedade promove o materialismo, então eu sou materialista. A sociedade promove que nos lixemos uns aos outros sem dó nem piedade, então é o que eu faço. A sociedade criou um conceito de sucesso ao qual tenho de me adequar sob pena de exclusão, desse conceito fazem parte: uma profissão bem remunerada onde hierarquicamente eu possa subir; um casamento harmonioso e rentável, mesmo que não seja por amor; um título académico, de preferência elevado, mesmo que tenha sido conseguido com o trabalho dos outros; filhos, mesmo que sejam criados por outras pessoas; uma casa com algum luxo; relações de amizade aparente com pessoas que me façam subir na vida, ou seja, relações de interesse; um carro topo de gama (ou um namorado com um carro topo de gama); valores morais só apregoados; um amante que me dê uma vida sexual de que eu goste. Em suma, queremos ser burros a serem transportados por pessoas burras, que nos carregam às costas e tenham trabalho e valores morais por nós. Assim, ficamos à sombra.

Agora a antítese, porque este blogue fala de antíteses, também. O sucesso não pode ser ditado pelas regras da sociedade. Se eu quero ter sucesso, tenho de procurar a felicidade que subjaz no simples facto de eu existir, de ter amigos, saúde, de haver dias de sol e de chuva. Na verdade, dita a sociedade que eu trabalhe e tenha uma profissão. É difícil ter uma profissão que eu goste e pague as minhas contas, mas devo trabalhar para isso, mesmo que hierarquicamente não possa mandar em ninguém. Os títulos académicos devem ser tirados por quem tem vontade e capacidades, mas não são fonte de felicidade, só de orgulho pessoal. Devemos pedir ajuda no que não sabemos, sem no entanto dependermos dessa ajuda para ler, escrever, pensar, construir uma tese. Devemos separar as relações de amizade e de amor de todas as outras. As outras são relações superficiais, que também podem ser muito positivas, que nos podem dar balanço para uma vida melhor, sem todavia lambermos o cu a ninguém (perdoem a má criação), vulgo graxa. Quem tem capacidades não precisa de dar lustro ao patrão. Em qualquer relação, devemos promover as capacidades dos outros, não as incapacidades, falhas, defeitos, ou aproveitarmo-nos da circunstância de alguém ser mais ingénuo ou mais frágil do que nós. Na fragilidade devemos dar força, para discutirmos os assuntos e vivermos a vida em igualdade de circunstâncias. Se formos amigos, falamos com os amigos e chamamos a atenção naquilo que não concordamos, com respeito e sem insistirmos. Nem sempre termos razão. Temos de saber ganhar e de saber perder. Perceber que ninguém é o seu carro, a sua casa, as suas roupas, as suas jóias, e nem mesmo as suas palavras. Ninguém é o seu casamento, os seus filhos, a sua profissão, o seu curso. Ninguém é só o seu corpo nem só a sua alma. E para terminar, não devemos ter um amante (é agora que vocês se vão rir à gargalhada) porque é desonrarmos tudo e mais alguma coisa, aí até falhamos em termos jurídicos. Do mesmo modo, não devemos manter um casamento infeliz, porque a vida é muito muito curta e nunca sabemos quando é a nossa vez de irmos embora, como diz a minha avó.

Eu acredito nestes valores, e não, não sou nada boazinha, até porque acho que devemos ser críticos activos em tudo, na vida. Não digo é que esteja certa. E compreendo não ser popular ou socialmente frutuoso aquilo que acabo de enunciar. Mas eu e a Patrícia França andamos numa onda de Deepak Chopra, e de recordar as coisas pequenas e boas da vida, como almoçar sob chuva no jardim do Campo Grande, almoço de pobre, comprado no Modelo ali ao pé, a ver transeuntes das obras armados em mete-nojo a piscarem-nos o olhito…isso é que era vida!

A mudança

Durante estes últimos dias, tenho reflectido muito (e às vezes de forma dramática) acerca deste assunto, que ao longo da vida me tem dado muitos desgostos, muitas dores de cabeça, mas também muitas alegrias. Se não vejamos: o que é uma mudança? De um ponto de vista abrangente é tudo, todos os dias mudamos vezes sem conta, sem dó nem piedade, para o melhor e para o pior. Envelhecemos, temos células e neurónios a morrerem constantemente, e, apesar de nunca termos essa noção presente, podemos morrer a qualquer altura, a máquina corporal pode parar ou ser parada por algum motivo. Mas tirando essas mudanças, que são inerentes à condição do ser vivo (e não exclusivas do ser humano), a verdade é que passamos por inúmeras mudanças na vida, de todo o cariz possível: em bebés, as coisas parecem fáceis, mas não devem ser, porque os bebés não têm muitas formas de comunicação, por isso choram de dores ou simplesmente de tédio. Um choro pode querer dizer «opá, nunca mais vem a papa?» ou «vem brincar comigo, deixaste-me aqui…». Mais tarde, as formas de comunicação vão-se multiplicando e acabamos por, na idade adulta, dispormos de inúmeros recursos preciosos, aumentando as capacidades lógicas, judicativas, e também as de gestão da nossa própria vida e daquilo que somos, enquanto seres humanos.

A perspectiva do que é a vida, de quem somos e do porquê de sermos assim e não de outro modo, já não é só genética ou neuronal (não sei como lhe chamar, mas creio que entenderão), mas cultural, social, educacional. Somos a soma de inúmeros factores. É tudo isso que nos ajuda (ou desajuda) a encarar a mudança como uma coisa mais positiva ou negativa. Para uns mudar é sempre bom, para outros não. Na realidade adaptamo-nos com muita facilidade às coisas, temos um cérebro ágil, desde que seja treinado como um músculo. Para mim, o espaço de tempo que vai desde o momento em que é inevitável mudar até à mudança é o pior. Por isso, a minha amiga Paula diz sempre: o que custa é partir e voltar, depois adaptamo-nos. E ela tem razão. Para a Patrícia França, a adrenalina de ir partir para algum lado é o que mais lhe agrada, e isso acontece com inúmeras pessoas. Para mim não. A mudança só é positiva quando consigo concluir que melhorei enquanto pessoa, que cresci, que me tornei mais confiante, mais justa, mais doce com quem me é querido e mais dura com os inimigos. Por isso, só quando espiritualmente percebo que sou outra dentro de mim mesma é que posso suspirar e dizer «ainda bem que isto aconteceu!».

É evidente que há coisas cuja frase «ainda bem que aconteceu!» não se aplica. Não acho isso da morte da minha mãe ou do meu avô. É verdade que não podemos ser egoístas, temos de deixar as pessoas partirem, serem levadas para lado nenhum ou para outro percurso diferente. Não podemos prender ninguém a nós, isso é possessão. Não pode haver apego. Devemos amar de uma forma incondicional, mas livre. Sem tragicidade. Sem pensarmos «não sou ninguém sem esta pessoa». Temos sempre de ser alguém, com ou sem essa pessoa.

Mas há outras mudanças: de estado civil, de títulos honoríficos, de estudos, de grau, de profissão, até familiarmente, quando a família cresce, ganhamos títulos, passamos a «tios», «avós», «pais», «primos», etc. Também não ganhamos pessoas nem as possuímos, e podemos ter sorte ou azar, porque não somos nós que escolhemos (às vezes nem os outros, porque não se podem escolher filhos nem netos). Há mudanças de penteado, de estilo de vestir, de amigos, de companheiro ou companheira, dos livros que se lêem, dos gostos. Eu dantes não comia cogumelos e agora como. Pronto, é uma mudança.

Mas para mim a vida tem sido muito rápida, com imensas mudanças, nos últimos dois anos, sobretudo. Passei a viajar imenso, por vezes sozinha, coisa que achava nunca ser capaz. Passei a tentar participar em conferências, em vez de ser apenas ouvinte, o que também não é fácil. Passei a trabalhar numa universidade. Passei a multiplicar os meus títulos familiares, já sou tia, esposa, cunhada, nora, prima, etc., quando dantes era só filha, neta, irmã, prima. Nestes últimos anos também tive a sorte de ganhar mais amigos. No meio de todas estas coisas, tenho de dizer que também as mudanças na vida das outras pessoas me afectam. Sou tia porque o meu irmão e a minha cunhada (casal pensalinho) tiveram o Serginho, portanto a mudança da vida deles é que afecta a minha vida, para melhor claro.

E quando as mudanças dos outros nos deixam infelizes? A verdade é que pode acontecer. Se algum amigo nosso tiver um acidente ou alguém da família adoecer é uma mudança que nos afecta, às vezes duramente. Se algum amigo nosso sofre por algum motivo afecta, também. Se alguém fizer uma escolha que nos pareça claramente errada também nos afecta. A mudança é muito complicada. O mundo está a sempre a mudar, e muitos dos acontecimentos fogem completamente ao nosso controlo. Mas há outros que, embora nos pareçam longínquos e inacessíveis, são aceitavelmente controláveis.

Lembro-me bem de uma série, penso que se chamava «O homem que não queria ser anjo», cujo protagonista era tão boa pessoa que lhe cresciam umas asas de anjo, enormes, atrás das costas. Confrontado com essa mudança, e infeliz por não poder ser um «ser humano vulgar», o homem começa a praticar más acções, repetidamente, e a medir a significativa diminuição das asas, mas cada vez que exerce a sua natureza mais profunda, a bondade, as asas crescem-lhe e ele reclama, vezes sem conta a Deus, que só quer ser «normal, uma pessoa comum». Penso que esta metáfora ilustra bem quem somos ou quem talvez sejamos, porque infelizmente não tenho certezas sobre nada, nesta vida. Creio que a maior parte de nós possui asas mas não as usa, faz o contrário, procura diminuir o seu tamanho, e, pior ainda, ganhar uns chifrezinhos, pactuando com a maldade, a ganância, a inveja, a imbecilidade dos outros.

Bem, o princípio de que, lá bem no fundo, todos nós somos bonzinhos, isso eu não concordo, mas mesmo nada. Concordo, isso sim, que todos estejamos cá por uma razão, nem que seja esbofetear as outras pessoas e acordá-las do marasmo em que vivem. Eu todos os dias tenho um instinto apurado acerca do que deve ser mudado. Acho que todos temos, se não, não nos queixávamos tanto. Quase todos dizemos «isto funciona mal», mas poucos reclamam a sério, com uma queixa formalizada. Há coisas que estão objectivamente mal – acho eu. Ninguém concorda certamente que as pessoas tenham de gastar um dia para serem atendidas no médico, sobretudo se for urgente. São «sistemas instalados», como nós chamamos, difíceis de mudar. Mas podemos fazer como a Lisa: agarrar e escrever uma queixa no livro de reclamações. Não sabemos se o sistema muda por isso, mas de certeza que fazemos a diferença. Muitos de nós também se aproveitam daquilo que está mal a seu bel-prazer: ai funciona por cunha? Ainda bem, é de aproveitar. Com essa atitude aumentamos a corrupção.

A corrupção é uma coisa terrível, sobretudo porque é pouco transparente, muito dissimulada. Quem é corrupto? No fundo todos nós. A gravidade só depende dos nossos valores morais. Não creio que seja tão grave a minha avó meter uma nota na bata da enfermeira para tratarem bem o meu avô - o que com toda a certeza é feito com boa intenção, mas de princípio está totalmente errado, porque eu era professora e jamais deixaria que me dessem dinheiro para passar um aluno (também não era preciso, visto que estamos num sistema que quase não permite chumbos, mas enfim…), como usarmos a cunha para conseguirmos um lugar que nos estaria vedado por falta de qualificações ou especialização, passando à frente de outras pessoas que as possuem. De facto, somos um país de brandos costumes, porque todos os professores já se deveriam ter reunido e atirado queixa sobre queixa contra o Ministério até este ser derrubado.

Mas esta corrupção nós quase que conseguimos vê-la com os olhos. O pior é a corrupção em que não conseguimos mexer de maneira nenhuma. Não podemos mexer no percurso pessoal de cada pessoa. É difícil dizermos a um drogado que ele está viciado e que tem de largar aquilo. Assim são algumas pessoas. É impossível dizer-lhes «por princípio isso está errado». Qual é o nosso critério, senão a subjectividade? É subjectivo dizermos a alguém que errou na escolha amorosa, ou que não deve continuar um casamento ou um namoro. Como fazer isso? No fundo, se vemos alguém a cair no erro tremendo de estar com uma pessoa mal intencionada, pouco ou nada podemos fazer. Eu digo-me isto todos os dias, e mesmo assim o meu espírito não sossega. Quem raio sou eu, enquanto pessoa, para achar que não posso nem devo mudar nada? Mas quem raio sou eu para me meter na vida dos meus amigos, dar-lhes um abanão e fazê-los certamente chatearem-se comigo, como eu já me chateei com muitos? Por outro lado, chatear será pior do que assistir a uma mentira prolongada no tempo e no espaço, que poderá ter ricochetes também muito dolorosos para nós?

Meus amigos, entra a consciência, essa gaja lixada, que tanto nos faz sofrer. A consciência é o nosso resquício de asinhas de anjo. A falta dela são os nossos cornichos diabólicos. Se tivermos consciência sofremos pelos outros, mas se não a tivermos, conta o nosso umbigo e pouco mais. Se tivermos consciência pedimos desculpa quando nos enganamos e valorizamos as atitudes que os outros têm connosco de boa fé. De igual modo, somos irascíveis com atitudes e posturas incorrectas, que a nós nos pareçam imorais, e tentamos combatê-las. Portanto, podemos ser conscientes e compassivos, mas a intervenção faz parte das nossas obrigações, também. Escrever no livro de reclamações, como fez a Lisa, não ficar calada, como faz sempre a Paula, não é só ser impertinente, é muito mais do que isso: é ter atitude necessária. Reclamar é a primeira parte para sermos cidadãos activos, sem estarmos necessariamente a promover a guerra com as pessoas. Declarar guerra ao sistema instalado e corrupto é um passo na nossa cidadania. Então declarar guerra às imoralidades que fazem aos nossos amigos é parte da nossa humanidade. Na verdade, cabe às pessoas o direito de construírem o seu percurso pessoal de livre vontade, mas o nosso instinto dá muitas vezes um sinal de alerta poderoso, que também se prende com a nossa capacidade de sobrevivência e de defesa pessoal.

Devemos tentar aceitar a mudança, nas nossas vidas e nas dos outros. Mas é difícil, por muito que digamos que estamos cá para aprender. Há inúmeras pessoas que se acham talhadas para as boas oportunidades e nada mais. Para os grandes objectivos. Não percebem que há consequências em tudo aquilo que fazemos, que tudo faz ricochete na vida dos outros, às vezes com uma força inimaginável. As leis da física também subsistem nas emoções, nas paixões, nos desaires, nas palavras.

As xoxas velhas

Há muitas coisas na vida que parece nunca fazerem sentido para nós, sendo arremessadas para um canto simplesmente porque não as conseguimos resolver. Tal e qual como o cubo mágico, que só alguns privilegiados conseguem resolver em poucos minutos (e alguns tristes nunca conseguem fazer aquela porcaria), assim é a vida. Todos nós temos alguma coisa a dizer e a fazer por ela, mas enquanto alguns conseguem arranjar significados precisos para o que acontece, outros não conseguem.

Tenho tido alguns privilégios raros, mas todos eles recentes. Um deles é o de trabalhar no que gosto realmente, outro é o de trabalhar com quem gosto, e finalmente a liberdade de muitas vezes poder fazer o que quero, com pouco ou muito dinheiro. Ao longo da vida sempre encontrei quem me ajudasse a não sair dos trilhos. Óbvio que tenho dias em que penso no pior que pode acontecer: perder tudo isto, e é bom ter essa consciência. A vida é mesmo impermanência.

Uma coisa eu sei, gosto muito de viver, mesmo em dias de chuva e mesmo em situações que não sei dar a volta. Por gostar de viver é que comprei uma cama com colchão ortopédico, para dormir melhor, tento saber as receitas mais saudáveis, tento perceber como é que posso evitar doenças, procuro ir regularmente ao médico fazer todo o tipo de exames, e leio tudo e mais alguma coisa acerca das vias espirituais e espiritualizantes da vida. Não sou uma iluminada, mas gosto de iluminados, de preferência sapientes e que saibam explicar, mesmo que as coisas já tenham sido ditas uma e outra vez.

No outro dia deparei-me, numa revista médica, com um conselho magnífico para evitar o stress, de modo a prevenir quer o cancro, quer as doenças coronárias: não tentar stressarmos com situações que não podemos mudar de todo. Apesar de existirem situações de pura injustiça com as quais nos temos de debater e que obviamente gostaríamos de mudar, a começar pelos carros estacionados em cima dos passeios, às filas de espera no médico, à má educação diária das pessoas que nos atendem, às pessoas que nos passam à frente nos empregos sem terem capacidades para isso, temos de pensar que podemos sempre mudar qualquer coisa, que devemos reclamar, fazer queixa, ou permitir que o próprio tempo se encarregue de mostrar que assim não pode ser.

A minha tristeza não vai só para estas situações. Vai para as xoxas de velha. Eu explico o código linguístico. Xoxa de velha, no Algarve (pelo menos em Olhão) significa simplesmente «alforreca». Alforreca é um nome feíssimo. Lembra-me verruga, lembra-me forro, e al deve ser um prefixo árabe, que significa o artigo definido «o» ou «a». A forreca? Se o nome era feio, vejam como os olhanenses o substituíram para outro ainda pior, na ordem da adjectivação, como diz o Ric. Xoxa de velha. Eu sempre pensei que isso fosse calão para dizer «órgão sexual feminino», vulgo vagina. Este belo pensamento poderia perfeitamente ser incluído nos «Monólogos da Vagina». Então estou a falar de vaginas, ou seja, metonimicamente, de mulheres. Mulheres-alforrecas. Como o livro daquele professor universitário atrevido chamado «Couves e Alforrecas – segredos da escrita de Margarida Rebelo Pinto».

Xoxas velhas são mulheres muito semelhantes a alforrecas: venenosas, dissimuladas na areia ou no mar, só damos conta delas se as pisarmos. Aí, tornam-se agressivas e nojentas, fazem imensa comichão e provocam em quem as pisou (mesmo que seja sem querer) uma vontade imensa de fuga, de afastamento e de stress pós-traumático, do género: “Ai, meu Deus! Uma alforreca! Não quero pisá-la!”. Porquê velhas? Pelos vistos porque as alforrecas são semelhantes às vaginas das senhoras velhas, terão o mesmo aspecto, coisa que só saberei quando for velha, se lá chegar. Metaforicamente falando, as gajas-alforrecas assemelham-se imenso a velhas tristes e amargas que já desistiram da felicidade, do amor, da conquista das coisas pelo esforço. Mas nas velhas isso é bastante perdoável, porque a idade, a doença, a perda propiciam muitas vezes que se desista. Uma velha raramente vai à procura do amor, ou de ser feliz, ou de fazer um mestrado, um curso qualquer, um estudo (excepto as velhas que vão a congressos). Raras são as velhas que agem desse modo, até pelo nosso enquadramento cultural. Em Portugal, os velhos são simplesmente pessoas tristes e acabadas.

Agora quando se é mais novo dissimula-se essa tristeza com outros artifícios que, no agora, no hoje, no presente, são excelentes, mas que com o tempo veremos serem simplesmente perdas de tempo imperdoáveis. É importante termos amigos, namorar, investirmos na vida pessoal e na profissional, mas de uma forma mais ou menos transparente, para que nunca possa haver dúvidas, nossas e dos outros, de que agimos pela informação processada pelo nosso coração e razão, e não pela nossa ganância, inveja, falta de consideração pelo próximo. Tudo o que está a este nível eu classifico como falta de humanidade. E isso provoca que, anos e anos mais tarde, a solidão ataque com uma força que nenhum dinheiro do mundo pague, nem nenhum condomínio de luxo, nem nenhum desejo aparentemente satisfeito, nem nenhuma viagem cara, nem um mestrado ou um doutoramento. O mais importante é a nossa consciência, e eu ainda não percebi como é que algumas pessoas vivem na ausência parcial (ou total) dela, mas a verdade é que sim.

As xoxas de velha passam os dias a dissimular o que não têm: dinheiro, estatuto, beleza, inteligência, moral, modéstia. Uma alforreca não tem nada disso: parece uma bosta de ranho e escarreta de velho doente, são pobres, não têm qualquer estatuto, a menos que seja na taxonomia dos seres vivos*, e são desprovidas de inteligência ou sequer esperteza. Moral e modéstia são coisas de que não precisam. Existem e têm uma função qualquer na natureza que eu ainda não descobri (lançar veneno aos peixes?). Assim há pessoas iguais, tipo «não me toques ou eu lanço-te veneno, não me pises, não me maces, não me impeças o caminho». A diferença é que uma alforreca não segue as pessoas. Fica ali, deitada, ameaçadoramente, com um ar triste. Podemos cobri-la de areia, tocar-lhe com um pau, sentarmo-nos em cima (ou, se tivermos irmãos mais novos, atirar-lhes com ela…eu levei com algumas). Apanhamos com o veneno, mas ela não vem atrás de nós de forma agressiva, a gritar: “Ai que agora vais ver! Vou-me vingar!”. Portanto, eu gosto mais de alforrecas do que de xoxas de velhas. As alforrecas ainda podem ser levadas pelo mar para algum sítio (também nadam livremente), mas as xoxas de velha fazem bem pior do que isso: transportam-se a elas próprias (ou fazem alguém transportá-las) para o mais perto possível dos outros, sob pena de serem umas coitadinhas a precisarem de apoio e terem «muito jeito para lidar com pessoas». Todavia, gostam de fazer o papel exacto de uma alforreca: ficarem na areia, dissimuladamente, à espera de uma vítima ingénua e desabrigada, que não tenha maturidade ou experiência para saber que ela está ali para envenenar e não para incentivar. Depois essa pessoa faz o papel da onda que as transporta para onde elas querem ir, servindo de meio, servindo de canal, prestando um serviço de cooperação do qual acham uma recompensa que ainda não descobri qual é. Então lá vai a alforreca, rumo a outra areia, fixar-se noutro local para apanhar mais vítimas desprotegidas. Talvez as xoxas de velha vivam disto: sugar os outros impiedosamente.

As xoxas de velha são normalmente «as putas que têm sempre sorte», na expressão utilizada pelo meu amigo Paulinho, que conhece gente com médias medíocres tiradas em privadas que estão no ensino com horários completos, e que apesar de não saberem escrever português dão a disciplina de português (ou língua portuguesa) e formação na mesma área, qual especialistas completas e dedicadas. Pronto, este é um exemplo, como muitos outros, de corrupção no trabalho a favor das xoxas velhas. Há a corrupção na vida comum, todos os dias, a pessoa que nos rouba o lugar no supermercado ou pára no lugar dos deficientes, por exemplo, ou respira no nosso ombro enquanto estamos no Multibanco, não para ver o código, mas simplesmente por má educação.

Há a corrupção familiar, as pessoas que se metem na família por algum motivo menos aceitável, como explorar, mentir, trapacear, envenenar. Xoxas velhas, portanto. Relações que não promovem o amor e a harmonia são simplesmente detestáveis, e ninguém, por mais ganancioso que seja, vive só de dinheiro e de metas definidas sem valores, cujo lema é «o mais importante é lá chegar, não como se chega lá», porque isso subverte todas as regras da espiritualidade, que dizem o contrário. Apesar disso, uma xoxa velha a sério dirá sempre que o percurso de aprendizagem é que lhe interessa, porque uma xoxa velha mente com a boca toda. Quando uma xoxa velha gasta os seus recursos, não sabe mais o que fazer, copia as outras pessoas que a circundam, a ver se pega, e, apesar de se dar mal com as outras pessoas, dirá sempre que se dá muito bem, que tem jeito (isto porque alcança os objectivos), que é estupenda (como é que ninguém vê isso…), que sabe tudo, que aprende tudo rápido e que é muito sensível aos outros. Ao menos uma alforreca não diz nada.

Perguntas pertinentes para todos os leitores (ajudem e enviem-me as vossas respostas):

1) Quando acaba o reinado de uma xoxa de velha? O meu amigo Paulinho diz que é nunca. Eu cá não sei…a vida muda todos os dias e há pessoas que nos parecem coerentes na sua maldade, mas são fracas por dentro e esboroam-se como miolo de pão seco. Eventualmente o seu reinado poderá acabar quando Cristo descer à terra novamente;

2) Que fazer a uma xoxa de velha? Pontapeá-la até chocar com uma rocha e ficar a boiar na água, à deriva? Deixá-la envenenar as pessoas de quem gostamos? Ignorá-las, mas ter cuidado para não as pisarmos? Pôr a xoxa de velha em terapia (mesmo que ela seja terapeuta, ou assim se considere)? Como evitar o stress diário que uma xoxa de velha provoca nas pessoas? Esperar que ela envelheça e veja o que é bom para a tosse? Ou seguir os conselhos dos mestres budistas e pensar que o que nós detestamos nos outros é o que temos de pior dentro de nós e mais reprimido, e por isso não devemos escamotear essas características, nem excluí-las do nosso mundo; nesse caso a solução passará sempre por aceitarmos as circunstâncias sem as tentarmos influenciar com a nossa perspectiva de vida;

3) Onde vivem as xoxas velhas? A preferência de qualquer pessoa seria sempre: a milhas. A realidade é outra: vivem sempre perto de nós, se não mudam-se para aí;

4) Que fazem as xoxas velhas? Mandam os outros para terapia, mas elas é que precisavam. O resto já aqui ficou descrito em pormenor;

5) Que profissões têm? Quase todas, mas as mais surpreendentes são as profissões de ajuda: médicos, psicólogos, formadores e professores. Xoxas velhas aqui é do pior que pode acontecer, porque prejudicam a vida a centenas de pessoas diariamente, sem escrúpulos nenhuns nem dor na consciência;

6) Que fazem nas horas vagas? Copiam os outros. Viajam à conta. Andam à procura de alguém que as sustente o resto da vida. Ah, e copiam os outros outra vez;

7) Quem amam? Ninguém. Não vale amar o próprio umbigo, porque uma pessoa que está sempre a dizer bem de si própria não deve ter grande auto-estima;

8) Quais os objectivos de vida? Atingir o sucesso por meios fáceis, ser sustentado sem esforço próprio nem contribuição mínima, prejudicar; de resto querem o impossível: ser felizes mandando os outros abaixo, como eu sou ingénua e ainda tenho uma réstia de crença no ser humano, acho que sendo mal intencionados só semeamos a discórdia e a desordem no universo, por isso não posso acreditar que xoxas de velha se saiam sempre bem ou tenham um fim feliz, porque se não desejamos a felicidade aos outros, que raio de bicho somos nós?

9) Em que ou quem acreditam? Em si próprias e nas pessoas que lhes lambem o cu, dizendo-lhes que são lindas e maravilhosas. Quem não lambe o cu está fora de jogo, vira-se as costas… Também acreditam em quem tem dinheiro, vontade de as sustentar e de trabalharem por elas. Em termos de valores morais, não têm nenhuns, por isso mentem dizendo que acreditam na ética, na moral, na transparência;

10) Quem odeiam? As suas antíteses. Xoxas velhas odeiam-me sempre. E eu odeio-as sempre também. Passam a odiar quem não lhes liga e se liga às antíteses delas, isso é que não perdoam mesmo…; também odeiam pessoas felizes;

11) O que acontece às xoxas de velha? Nada. No máximo são ofendidas, maltratadas ou ignoradas por quem não gosta delas, mas suponho que ignorem totalmente esse facto e passem ao capítulo seguinte da sua vida frutuosa sem qualquer problema, sem se perguntarem sequer «mas porque é que isto aconteceu?»; outras chegam mesmo a Ministras e fazem os estragos que vemos;

12) Até onde pode chegar uma xoxa de velha? Até ao infinito, porque força de vontade aliada a maldade é uma mistura atómica muito poderosa, todavia aquilo que já vi permitiu-me chegar a estas conclusões: sobem na vida, na horizontal e nunca na vertical; têm profissões bem pagas; arranjam amantes porque nunca se casam com quem amam (casar por amor subvertia logo uma xoxa de velha); muita mais gente lhes passa a lamber o cu, porque ocupam posições de poder mesmo para isso; podem destruir completamente namoros, casamentos (o próprio e os dos outros); as pessoas respondem-lhes na mesma moeda, portanto só se aproximam delas por interesse ou ingenuidade, e ao longo da vida a percentagem de interesseiros aumenta, mas diminui a percentagem de ingénuos (xoxas de velhas não enganam nunca, mas nunca, cotas e pessoas experientes), o que significa que xoxas atraem xoxas; raramente têm filhos para não estragar o corpo, mas quando têm são as melhores mães do mundo, apesar de nunca estarem com os filhos e com frequência estes serem crianças deprimidas; tratam mal quem está abaixo delas (empregados ou gente hierarquicamente inferior, ou sem as mesmas qualificações, quer dizer, se tiverem um mestrado tratam mal quem não tiver e assim por diante). Xoxas de velhas podem chegar a ter tudo, mas nunca chegam à felicidade suprema, à verdade, ao amor, à plenitude e à iluminação…o pior é que acham que sim, por isso é que o mundo está como está.

13) Como salvar o mundo de uma xoxa de velha? Esqueça. O mundo já está perdido há muito tempo. Todavia, pode-se escolher ignorá-las, trapaceá-las ou responder com as mesmas armas, sendo dissimulados e mal intencionados com elas. É que merecem mesmo…

* O Dicionário define alforreca como um «animal celentrado e cifozoário marinho, em forma de campânula, disco ou sino, de tecido gelatinoso e semitransparente, com órgãos urticantes, que nada livremente, também conhecido por medusa». Em termos metafóricos pode querer dizer, curiosamente, «coisa sem consistência, palavra mal formada, coisa ou pessoa defeituosa». (in VVAA, Dicionário da Língua Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, p.165).

Tuesday, October 17, 2006

O despudor


É verdade que os anos 60 trouxeram consigo uma liberdade que dantes não se suponha, sequer, existir. Antes disso, toda a gente usava cuecas de gola alta, meias e saias acima do joelho, collantes desconfortáveis e sui generis (quando não eram ceroulas!!). A lingerie era um conceito distante das nossas casas e o mau gosto em penteados, roupas e sapatos imperava. Ainda hoje podemos olhar mil e uma fotografias dos nossos pais e avós para pecebermos que somos sortudos em ter nascido numa época de liberdade de gosto (ou de mau gosto, também, dependendo das opiniões). Eu olho para as minhas fotografias de quando era criança e só me vem à cabeça a tristeza que não devia ser usar sempre lenços esquisitos, saias horrorosas, sapatos apertados de fivela, blusas ranhosas que o meu irmão cuspia de alto a baixo e nunca nada combinar. Depois vieram os óculos, mais precisamente aos cinco anos, e com eles uma tristeza ainda maior, porque se hoje quase todos somos míopes, dantes não era bem assim, e portanto gama de óculos para mim era como encontrar tamanhos grandes em lojas de roupa. Dantes poucos eram obesos, também.
Com a era da liberdade veio também a liberdade de expressão, em todos os domínios. Repentinamente começou-se a falar de sexo e parece que hoje não há quase nada escrito ou filmado que não aborde, de forma aberta e despudorada, o tema em questão. Esta revolução também anda de mãos dadas com a liberdade feminina, que por exemplo a minha avó desconhece por inteiro de que trata. Hoje ouvimos as mulheres falarem dos mesmos assuntos dos homens, com a mesma abertura de espírito, com a mesma postura desabrigada, para não voltar à palavra despudorada. Com toda esta liberdade também veio uma outra coisa: a falta de vergonha na cara. Dantes, nós gajas, se tínhamos um amante escondiamo-lo bem. Hoje contamos umas às outras. Dantes, se casávamos por dinheiro era porque tinha de ser. Hoje não tem nada de ser. Não há casamentos fabricados por ninguém, excepto por nós próprias, que vamos à procura dos tipos mais parvos e endinheirados para lhes dizer «casa comigo, dá-me conforto, móveis caros, uma casa com vista para o mar, um carro (ou vai-me buscar onde eu quiser!), faz-me os trabalhos de casa, diz a todos que sou boa para ti, e mais tarde, quando eu arranjar um amante, não te queixes, que um par de cornos ficam sempre bem a qualquer homem, mesmo que bem intencionado». Este é o tipo de mulher proliferante, que nem os textos do Padre Manuel Antunes, tão modernos e inteligentes, supunham que alguma vez viesse a existir.
Se sempre houve gajos despudorados, sacanas, torpes, imbecis, daqueles que levavam uma mulher à ruína, à perdição, à tortura e à terapia, desde a época das famosas Cantigas de Amor que as mulheres dão cabo dos homens, só que hoje em dia deixando-os convencidos que lhes estão a fazer um grande favor em «gostar» deles. Se o mundo mudou, as mulheres mudaram, mas os homens não, qual bichinho primitivo, como dizia a minha amiga Arlinda, que nunca se casou com nenhum. Quando eu era miúda, a minha avó dava-me cantinhos do pão para eu casar cedo, porque ela dizia que, com o meu mau feitio, nunca arranjaria ninguém para me casar. Mas a minha avó estava enganada, pelo menos em parte. Eu casei-me, tarde, é verdade, mas mau feitio não põe ninguém de lado, nem mau carácter, que penso não ser o meu caso, mas o de tantas gentis fémeas que me circundam e deambulam por aí (às vezes tãoooo pertinho que até mete nojo!). Dantes havia homens mete-nojo, e nós, gajas espertas, sabíamos quem eram: os ciumentos, os parvinhos, os violentos, os que tinham outra mas diziam que éramos a única que amavam, etc. Hoje é ao contrário, se eles são muito esquisitos ficam sem nenhuma mulher, ou nem facturam (vulgo dar uma queca). Por isso, o mundo lançou esta nova moda da gaja mete-nojo, com carinha de saco de vómito, muito puxadinha para trás com ar mimado, muito cagalhona, como diria a minha amiga Diana, mas cabra que até arrepia a espinha!! Dessas que lixam as amigas, que avancalham as inimigas com sobranceria, que conquistam o gajo que tiver mais dinheiro e que morrem solitariamente, sem ninguém «porque estão fartas de homens». Portanto, fufas que se desconhecem a elas mesmas, tão cheias de si que quase rebentam. Desta tropa fazem parte as mamalhudas louras burras, as louras burras não-mamalhudas e as mimadas, que louras, morenas ou ruivas, têm pais-pagantes que lhes sustentam os vícios até vir o namorado rico, porque a existência da menina justifica isso.
O despudor das mulheres, meus amigos, não são só as senhoras de meia-idade ou mais que isso que andam nuas pelos balneários a mostrar o que já tiveram mas que a lei da gravidade tratou de atirar quase ao chão. Essas são o nosso futuro, se estivermos assim é bom, significa que chegámos à meia idade ou mais que isso e não temos vergonha, sabemos envelhecer, fomos espertas. Está bem que nem sempre é bom de ver, e que até meninas novas exibem arbustos gigantes sem qualquer preconceito, mas pronto, é um despudor agressivo do ponto de vista estético. Agora o outro despudor, o da traição descarada, o dá má língua, o do fingimento torpe, o do engano nojento, o do parzinho de cornos ao tipo bom mas parvo que teve o azar de nos encontrar pelo caminho, tenham dó, não faz de nós mulheres, mas bichos nada sociáveis. Que fazem estas pessoas no futuro? Garantem-no no presente. E como vão nadar em dinheiro e não ter preocupações nenhumas, a solução é preocuparem-se com uma casa melhor do que uma outra pessoa que invejem, por exemplo. Ou um perfume caro, ou um anel caro, ou uma roupa cara. A solução passa pelo parecer alguma coisa: fina, educada, elegante, rica, interessada nos outros. Portanto, exactamente aquilo que não se é e nunca se será, porque o dinheiro dos outros é o dinheiro dos outros, mesmo que sejam os nossos maridos, não é nosso. A elegância e a educação são dadas em casa e aprendidas com esmero fora de casa, se formos pessoas atentas e desbloqueadas de preconceitos.
Para mim, a mulher mais atraente é a que não tem medo de nada e é honesta com as suas capacidades. Portanto, eu não me incluo, já para não estarem a pensar que puxo a brasa à minha sardinha. É aquela mulher que chega e não precisa de dizer «Isto sou eu, estou bem assim». Se uma mulher chega e diz isto, então não está segura, e muitas vezes está a tramar alguma. Sim, porque nós, mulheres, passem os séculos que passarem, reprimidas ou não, somos bruxas. Umas do bem, outras do mal. Não andamos de vassoura, mas sabemos bem o que vai na cabeça das outras gajas, qual é a próxima fisgada e porquê. Esqueçam, os homens nunca nos vão entender. Lembram-se do que diziam as nossas mães? Os homens nunca ouvem nada. Pois é, é uma grande verdade. No dia em que eles nos ouvirem de verdade, dentro e fora das entrelinhas, acabou o nosso reinado de vez, porque esse é o dia em que eles vão ver a realidade em vez de olharem para sombras, e, quem sabe, passem a olhar as mulheres com os olhos da inteligência em vez de só dormirem com elas.