Friday, December 29, 2006

Quem sou eu?

Não há nenhum problema, por mais distante que nos pareça ser, que não culmine na velha questão, permanente e determinante, quem sou eu? A questão do dinheiro, do emprego, da casa, dos filhos, do que pensamos, tudo vai ter aí. O que nos acontece, sobretudo. Muitas vezes confundimos o interior com o exterior. Achamos que somos o que os outros acham de nós e o que nos acontece. Todavia, somos sem dúvida muito mais do que as nossas doenças, os nossos desastres, as nossas vitórias, os nossos amigos, os nossos familiares. Nós somos quem somos, o foco de coerência mantido antes, durante e depois e tudo isso. Portanto, somos o esqueleto, a estrutura, por vezes tão incompreensível, de todas essas coisas. Perdemo-nos muitas vezes de vista, sem qualquer dúvida. A força interior, à qual tanto apelamos, é exactamente isso: a nossa capacidade de fazermos face não só ao infortúnio, mas à grandiosa questão: quem somos, afinal?

Para nos mantermos sãos em relação àquilo que somos precisamos de muito trabalho. E de muitos amigos. Porque nos perdemos muitas vezes. Mas como eu costumo dizer, só se perde quem tem inteligência para isso. Nunca vi uma pessoa burra perder-se de si mesma: já vi pessoas burras a sofrer, claro, sentimentos são humanos, não são exclusivos das pessoas inteligentes. Mas compreender e enquadrar o sofrimento não é para qualquer um, e suponho que o esclarecimento, a lucidez, a consciência é o trabalho interior que exige paciência, inteligência, e predisposição. Porque se não estou predisposto a ouvir, a perceber, a questionar e até a perder-me, então não vale a pena. Sócrates tinha razão. Sem termos a noção de que nada sabemos não chegamos ao conhecimento. E para isso temos de ouvir os outros, mesmo quando custa, mesmo quando dói, mesmo quando achamos injusto.

Por vezes os outros estão só a despejar frustrações. Estão a fazer de nós um caixote do lixo de emoções, como diz a Elisabete, e não têm esse direito. Ninguém tem esse direito sobre nós. Não temos de ter costas largas ou um alçapão sem fundo para ouvir dislates, disparates, coisas torpes e apanhar, vezes sem conta, com a indelicadeza e a arrogância das outras pessoas. Na realidade, não devemos dar nenhum poder a essas pessoas, mesmo quando elas estão no poder. É deixar que as suas palavras amargas fiquem suspensas no universo e lhes voltem às mãos. Eu sei que nem sempre acontece. Mas mais tarde ou mais cedo somos julgados pelo que fazemos em praça pública. Mesmo as pessoas mais intocáveis e protegidas algum dia saem da alçada dos outros que as protegem. E quem são elas, nesse tempo e nesse espaço, senão seres frágeis sem qualquer espécie de apoio? Significa que o somos somos, para além dos outros e da opinião dos outros. Se nos apoiamos única e exclusivamente em opiniões, às vezes lançadas ao acaso, não podemos ser nós. Só somos para os outros. E deixem-me que vos diga: essa é a melhor maneira de fugirmos de nós mesmo e de quem somos.

Por algum motivo, radicado no meu interior mais profundo, deixo muitas vezes de ser vista como pessoa para passar a ser esse caixote do lixo de muitas espécies de pessoas diferentes: os arrogantes, os torpes, os mal intencionados, os que nada têm para fazer de melhor, o que me querem aniquilar, tantas vezes por eu transparecer o que sou, com toda a fragilidade que isso acarreta. Como me dizia a Sandra, sermos sinceros é o maior fruto de dissabores nas relações interpessoais. O cinismo é quem ganha. E eu tenho sido sempre sincera, porque isso quando não estou bem digo que não estou bem, e parece-me que quando digo uma piada é porque acho que faz sentido. E isso trouxe-me sempre dissabores terríveis, porque os outros acham sempre que, como não são sinceros consigo mesmos, e usam disfarces, podem despejar esses disfarces e outras coisas bem piores nas minhas costas.
Por exemplo, a minha avó usa o disfarce pior da sua época: o machismo. No fundo, sabe que nunca foi feliz sob alçada do machismo, mas cultiva esse poder, submetendo-se a ele através dos outros. E faz comigo esse jogo pérfido do «dá comer ao teu marido», mesmo com o meu marido ao lado, como se ele não pensasse pela sua própria cabeça. Reduz o homem à condição de procriador, achando que a ele nada mais está destinado, senão procriar e mandar. A mulher reduz-se à obediência. Coisa que nunca entendi é porque é que eu, que tanto me oponho a isto, sempre apanhei, qual caixote do lixo com fundo interminável, com esta mentalidade falsa e estúpida. Para a minha avó eu devo ser um bicho raro, que ela, como nunca entendeu, procurou sempre desambiguar. Como sempre ela envia a si mesma mensagens de sossego, para se manter nesse registo – que é o único que conhece – toda a vida. Todas as pessoas são boas e pensam como ela. Fora disto, nada existe ou tem valor. Ninguém decide fora disto.
Depois, tenho servido de caixote do lixo de outras pessoas menos bem intencionadas do que a minha avó, cuja mentalidade pouco evoluída nos aspectos referidos é compreensível. Mas outras pessoas, sobretudo mulheres, que infelizmente é com elas que choco mais, não têm razão para terem mentalidades tão mesquinhas, tão fechadas, tão invejosas e mal intencionadas. Onde foi parar o bom senso? Parece que agora uma mulher para ser mulher tem de estar em disputa com outras, sendo agressiva, bruta e malcriada. Isso são armas masculinas, dizem os especialistas, sabiam? O poder sempre foi atribuído aos homens, primeiro porque tinham mais força e destreza física (na época das cavernas), e porque à mulher era destinado o lugar de mãe, procriadora, protectora do lar, e tinha menos força física. Muitas mulheres disfarçam-se desta segunda imagem, auto-proclamando-se mães excepcionais (mesmo que não sejam mães, acham que adoram crianças), protectoras do lar, mas frágeis criaturas que precisam dos homens. Todavia, é o contrário: têm sede de um poder muito masculino, que oprime as outras mulheres, considerando-as seres inferiores, isto é, muito diferentes de si mesmas.São as mulheres que querem tudo, e quando não têm reclamam que têm. Um homem que esteja ao pé destas mulheres é a parte feminina da relação: é o salvador, o seu protector, o seu faz-tudo, provavelmente pai e mãe dos filhos que ela diz tanto adorar. Sob a capa da frontalidade esconde-se o inevitável vazio: são mulheres arrogantes e desprezadas por outras mulheres que lhes topem as manhas. Digamos que estas são sempre as mulheres que me detestam. São as mulheres de capa dura, que provavelmente, algures na vida, se deitaram com o homem certo que lhes abriu as portas certas. Apesar de não saberem, deixam ver isso na sua face. Acaso do destino serem sempre estas as gajas que me odeiam? Não acho.
Só há uma maneira de deixarmos de ser caixote do lixo das frustrações dos outros: não deixando. Isso não significa dar troco na mesma moeda, porque suponho que um arrogante esteja sempre à espera disso para aumentar o seu poder. Significa desprezo, distância e auto-estima, porque a certeza do que somos é que nos salva do que não somos.


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