Quem sou eu?
Não há nenhum problema, por mais distante que nos pareça ser, que não culmine na velha questão, permanente e determinante, quem sou eu? A questão do dinheiro, do emprego, da casa, dos filhos, do que pensamos, tudo vai ter aí. O que nos acontece, sobretudo. Muitas vezes confundimos o interior com o exterior. Achamos que somos o que os outros acham de nós e o que nos acontece. Todavia, somos sem dúvida muito mais do que as nossas doenças, os nossos desastres, as nossas vitórias, os nossos amigos, os nossos familiares. Nós somos quem somos, o foco de coerência mantido antes, durante e depois e tudo isso. Portanto, somos o esqueleto, a estrutura, por vezes tão incompreensível, de todas essas coisas. Perdemo-nos muitas vezes de vista, sem qualquer dúvida. A força interior, à qual tanto apelamos, é exactamente isso: a nossa capacidade de fazermos face não só ao infortúnio, mas à grandiosa questão: quem somos, afinal?
Para nos mantermos sãos em relação àquilo que somos precisamos de muito trabalho. E de muitos amigos. Porque nos perdemos muitas vezes. Mas como eu costumo dizer, só se perde quem tem inteligência para isso. Nunca vi uma pessoa burra perder-se de si mesma: já vi pessoas burras a sofrer, claro, sentimentos são humanos, não são exclusivos das pessoas inteligentes. Mas compreender e enquadrar o sofrimento não é para qualquer um, e suponho que o esclarecimento, a lucidez, a consciência é o trabalho interior que exige paciência, inteligência, e predisposição. Porque se não estou predisposto a ouvir, a perceber, a questionar e até a perder-me, então não vale a pena. Sócrates tinha razão. Sem termos a noção de que nada sabemos não chegamos ao conhecimento. E para isso temos de ouvir os outros, mesmo quando custa, mesmo quando dói, mesmo quando achamos injusto.
Por algum motivo, radicado no meu interior mais profundo, deixo muitas vezes de ser vista como pessoa para passar a ser esse caixote do lixo de muitas espécies de pessoas diferentes: os arrogantes, os torpes, os mal intencionados, os que nada têm para fazer de melhor, o que me querem aniquilar, tantas vezes por eu transparecer o que sou, com toda a fragilidade que isso acarreta. Como me dizia a Sandra, sermos sinceros é o maior fruto de dissabores nas relações interpessoais. O cinismo é quem ganha. E eu tenho sido sempre sincera, porque isso quando não estou bem digo que não estou bem, e parece-me que quando digo uma piada é porque acho que faz sentido. E isso trouxe-me sempre dissabores terríveis, porque os outros acham sempre que, como não são sinceros consigo mesmos, e usam disfarces, podem despejar esses disfarces e outras coisas bem piores nas minhas costas.
Por exemplo, a minha avó usa o disfarce pior da sua época: o machismo. No fundo, sabe que nunca foi feliz sob alçada do machismo, mas cultiva esse poder, submetendo-se a ele através dos outros. E faz comigo esse jogo pérfido do «dá comer ao teu marido», mesmo com o meu marido ao lado, como se ele não pensasse pela sua própria cabeça. Reduz o homem à condição de procriador, achando que a ele nada mais está destinado, senão procriar e mandar. A mulher reduz-se à obediência. Coisa que nunca entendi é porque é que eu, que tanto me oponho a isto, sempre apanhei, qual caixote do lixo com fundo interminável, com esta mentalidade falsa e estúpida. Para a minha avó eu devo ser um bicho raro, que ela, como nunca entendeu, procurou sempre desambiguar. Como sempre ela envia a si mesma mensagens de sossego, para se manter nesse registo – que é o único que conhece – toda a vida. Todas as pessoas são boas e pensam como ela. Fora disto, nada existe ou tem valor. Ninguém decide fora disto.
Só há uma maneira de deixarmos de ser caixote do lixo das frustrações dos outros: não deixando. Isso não significa dar troco na mesma moeda, porque suponho que um arrogante esteja sempre à espera disso para aumentar o seu poder. Significa desprezo, distância e auto-estima, porque a certeza do que somos é que nos salva do que não somos.
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