Ab Roma ad Portucalem
A expressão não existe em lado nenhum – acabo de inventá-la. Significa de Roma para Portugal, como devem calcular. E é isso mesmo. Só prova que as novas tecnologias são uma maravilha, porque a esta distância toda posso continuar o meu blogue. Viva a Internet.
Antes de vir, tive o meu habitual ataque de nervos absurdo e incoerente, de menina assustada com a mudança, com a novidade. Se reajo a isto desta maneira, imagino quando for mesmo grave ou irremediável. Bem, não é assim. Como todos sabemos, vamos buscar forças onde menos esperamos. A mim também me apetece fugir de muitas coisas. E eu sou uma daquelas pessoas que pedi isto e pedi, pedi, pedi, e nunca mais vinha e blá, blá, blá. Afinal, tenho o emprego que queria. Não é um paraíso e não ganho fortunas, mas também não pedi isso. Pedi uma coisa que gostasse e com a qual, ao fim do dia, me sentisse bem, e com a qual soubesse que me poderia sustentar. É verdade que isto é instável, mas «isto» tem um nome que poucos poderão dar ao seu trabalho: investigação. E é maravilhoso, para quem gosta, como eu, mexer e remexer no passado e tentar descodificar o que ia na cabeça das pessoas para terem escrito aquela palavra e não outra, para terem uma letra tão estranha e me complicarem tanto a vida. Daqui a uma semana estarei cansadíssima e com os olhos a arder, mas são ossos do ofício. Além disso, é um trabalho de paciência estóica. Custa ao físico e ao psicológico.
Depois há a distância, que assusta muita gente. A Internet diminui isso, mas quando cá vim, em Fevereiro, gastava rapidamente o dinheiro do telemóvel, exactamente porque não tinha Internet. Não havia comunicação, e como estava num local de portugueses onde encontrava poucos, ouvia fado para continuar a coerência daquilo que ouvia dentro da minha cabeça, mas não fora, e que tanto me assustava. Nunca se assustaram em ouvir uma língua estranha? Eu assusto. É como chegar a outro planeta. Não se sabe pedir informações nem dá-las. Existe-se. Fora da língua, quem somos, se não animais sem comunicação para além do gestual? Eu também nunca tinha visto as coisas assim, até vir para aqui e ouvir «busta» em vez de saco e ficar a olhar para a empregada com olhinhos de carneiro mal morto. Essa foi uma de muitas, porque dentro da biblioteca a coisa não era melhor, e não melhorou, porque eu não falo a língua, só que agora estou mais descontraída e digo logo que me desculpem, mas não falo italiano. Como me disse um dos empregados do arquivo, na brincadeira «nós também não». É incrível, mas sou capaz de me sentir confortável com alguém que fale inglês ou francês, só pelo simples facto de entender e de conseguir responder, mesmo que atabalhoadamente, a alguma coisa. Hoje um investigador jovem, do Congo, perguntou-me se os meus pais eram portugueses, onde viviam e se eu tinha irmãos. Uma conversa despropositada, mas ao menos é uma conversa. Se não fosse o messenger, a minha conversa resumia-se a telefonemas, ou seja, era uma pequena fortuna, o meu ordenado, bem posso dizê-lo.
Nesta segunda viagem trago menos coisas comigo, estou a desenvolver sentido prático e de sobrevivência. A leitura paleográfica não ficou mais fácil, eu também não vou para menos míope, mas com os dias vai amaciando, vou lendo mais palavras, descodificando outras, de forma a não cometer erros e a fornecer aos historiadores pistas de investigação. É uma grande responsabilidade. Eu sei que ninguém leva isso muito a sério. Hão-de dizer «enganas-te paciência, o historiador que descubra» ou «há mais gente que assina o teu trabalho». Mas os meus erros horrorizam-me. Claro que às vezes tenho de desistir, ou resumo só um bocadinho, mas mesmo cansada ou cheia de fome oiço a minha consciência aos gritos «vieste cá fazer isto, quiseste, deram-te a oportunidade, agora fazes e pronto», é esse pensamento que me leva a ler nem que seja mais uma letra, às vezes em dias desgraçados de frio, cansaço, distância e janelas abertas nas costas, como hoje.
Ainda hoje eu e a Diana falávamos acerca disto: em Portugal ser-se investigador é como ser-se um sem-abrigo. Umas pessoas admiram-nos pela liberdade da escolha, outras chamam-nos loucos. Não temos subsídios de coisa nenhuma, nem direito a descontar para a segurança social, ou férias. Do ponto de vista da lei, simplesmente não existimos. Em Portugal, isto não é um trabalho, é uma coisa que alguém tem de despachar para se poderem escrever livros. Ninguém pensa que o rigor histórico é coisa séria, que os erros desgraçam muitas investigações futuras. Acima de tudo, ninguém imagina no trabalho que dá, porque há horários flexíveis e isso, na cabeça das pessoas, é preguicite aguda. É horrível ouvirmos «tu é que tens uma vida boa, viajas com tudo pago». A sério? E a minha reforma? E o meu subsídio de férias? E a minha licença de maternidade? Não existem. Só que se eu tivesse isso tudo, não tinha o que tenho: sentido de coerência. É aqui que estou bem, mesmo quando me sinto mal.
Em Fevereiro tive essa noção. Tive um recontro com uma pessoa que me desfez a auto-estima em segundos por uma porcaria de nada, por um boato, por manias e preconceitos, nem sei. Aqui, em Roma. Poderia ter sido em Portugal ou noutro local qualquer. E foi nisso que pensei, de imediato, porque de tarde, Roma era linda, deslumbrava-me com o sol, os anjinhos, o Vaticano e as pontes. Fotografei tanto, que agora em Novembro não fotografo nada. Na altura, dentro dos arquivos, eu pensei muitas vezes «os empregados são frios e distantes, ninguém me fala, sem ser para dizer bom dia, não sei dizer grande coisa; no café, não posso conversar com ninguém». Existe uma regra que nunca podemos esquecer: há coisas universais, como a simpatia, o amor, o ódio, a inteligência ou a estupidez. E somos reconhecidos por qualquer uma delas em qualquer ponto do mundo. Está bem, na faixa de Gaza seria difícil, todos se matam e fazem atentados bombistas (ou talvez seja uma imagem estilizada, orientalista, na acepção de Said). Apostando nisso, posso bem considerar que ganhei a confiança de muitos dos empregados, mesmo sem falar a língua deles, até lhes ofereci chocolates. Se fosse em Portugal, ainda hoje me lambiam as botas (não era essa a minha intenção, porque eu não compro ninguém) e diriam sorridentes «sôtora isto, sôtora aquilo». Ali, esqueceram-se de mim e tive de recomeçar do zero, porque estão novamente frios, porque não se lembram de mim, ou simplesmente porque funcionam desse modo, e está certo, porque não? Mas todos eles me aparecem na memória como em Fevereiro, a tentarem ajudar-me, a mim, investigadora perdida numa língua estranha e num trabalho estranho. Divertiam-se a tentar dizer os números em português ou a perguntar-me uma ou outra palavra. Com alguns, os mais porreiros, tenho uma imensa pena de não poder comunicar mais e só topicalizar palavras soltas. Pareço uma menina. Falar uma língua nova tem o seu encanto. É terrível, sabe-se e não se acerta na entoação, ou não se sabe e tenta-se dizer, e sai borrada. A língua neles flui tão bem, é tão doce e musical…a minha língua parece dura, parece língua de conquistador, cheia de ângulos rectos, sons nasais (que eles não têm, por isso me chamam «Ecarnacao» e não «Encarnação»), vogais abertas e fechadas a jogarem umas contra as outras. E a deles é uma música bem entoada. Falar italiano parece soberbo. Ser confundida com uma italiana também não é raro. Excepto quando tenho de abrir a boca, ando sempre descontraída. Mas parece que os italianos confundem toda a gente com italianos, excepto os japoneses e os nórdicos gigantes com filhos louros de olhos azuis.
Os japoneses são uma praga, aqui em Roma. Apetece fazer pontaria, um a um, até chegar à gaja ou gajo do guarda-chuva que comanda a tropa. Derrubado esse, ou derrubada essa, a pontuação seria máxima. Portugueses aqui são escassos, mas ouvem-se. É mais vulgar brazucas. É um destino caríssimo em todos os aspectos. Barato só as pizzas e os bolos, e quem se alimentar só disso rebola. As investigadoras do arquivo que estavam cá em Fevereiro e ainda cá estão mostram bem as roupas apertadas. Eu emagreci muito em Fevereiro. Andar com um portátil às costas é duro, mas andar num autocarro cheio de velhos, estrangeiros, freiras e padres com um portátil às costas ainda me parece pior. Atravessar nesta cidade também aparenta ser uma questão de vida ou morte premente, mas parece que não. No trânsito como em tudo, os italianos são desorganizados, mas na verdade funcionam lindamente. Partem carros mas não matam pessoas. Nós qualquer coisa é um número agreste de mortos na estrada, feridos graves, menos graves, pouco graves. E às vezes sai de lá alguém ileso. Além disso, somos claramente desorganizados e as nossas estruturas mal funcionam. E é uma pena, porque temos uma cultura rica, pessoas que são dedicadas e determinadas, com força, coragem, mas sem dinheiro para investir.
No meio disto tudo, e como quase todos os portugueses que se ausentam do seu país, continuo a ter o meu fado, potente e avassalador, cá dentro. Não sei se por ser portuguesa, se por eu ser eu, como diz a Patrícia. Mas é qualquer coisa identitária que os italianos não têm e os portugueses sim. Um pendor triste e sério, uma graça genuína mas contida, fechada, mas uma capacidade de desenrascanço que assusta o mundo. Tento não pensar muito que sou uma estrangeira, porque estou cá pouco tempo, não vou aprender a língua de uma assentada. Mas dou valor, muito valor, a quem o faz. Melhor do que ninguém, conheço a frustração de querer dizer e não conseguir, de querer fazer e não saber como, de estar sozinho, longe dos programas da televisão que conhecemos, das revistas e dos jornais portugueses. Quando regresso, no avião, leio as revistas portuguesas de uma ponta à outra, sorvendo a língua portuguesa, dizendo a mim mesma «isto é que sou eu», vendo às vezes imagens de Portugal com um sorriso sentido, de pertença, até a coisas que gosto pouco, como as danças folclóricas.
Talvez por isso agora não me apetecesse vir. Estava confortável a olhar o mar da Marginal do comboio e a ouvir as conversas das tias ao telemóvel. Quando volto até disso gosto. Das tias da linha que tratam os filhos por você. E gosto de ir ao supermercado e sorrir porque percebi uma piada estúpida dita pela empregada, mesmo que não ache graça nenhuma. Mas palpita-me que a Patrícia me vai dizer que dentro de Portugal também podemos ser estrangeiros. E é verdade…Talvez, como ela diz, uma lagosta suada não seja o ideal de toda a gente, muitas pessoas só querem a sua delícia de frango comprada no Modelo e comida no jardim do Campo Grande, em boa companhia. Evidentemente, nada de escamotear o facto de sermos ambiciosos. Devemos ser. Mas também devemos aprender a dar valor a tudo, e isso faz-se sentindo saudades.