«Pedro, o Milionário»
Chama-se assim o novo programa da TVI, e é, no mínimo, curioso. Melhor do que aquele que falava de um noivo horroroso e sacana, que afinal era actor, sem a rapariga saber. Este fala de um rapaz milionário que, pobrezito, não encontra uma dama que goste dele pelos sentimentos e não pelo papel. Só que, e esse é o pormenor mais interessante da trama, o tipo não tem cheta, é apenas um estivador de caracóis, que, como bom actor que é, aprendeu os ditos «maneirismos de ricalhaço», que é saber apreciar caviar e champanhe, ter empregados para lhe lavar o cu, andar num jaguar, andar a cavalo nas horas livre e tomar banho de jacuzzi ao ar livre. Vive num palácio em Barcelona. Como se a história, por si só, não fosse rocambolesca, abre um concurso para que entre pelo palácio dentro umas quantas fêmeas bonitas que lhe têm de fazer as vontades todas. Uma por semana é excluída.
Vamos por partes. Uma. O conceito do programa é, no mínimo, curioso: descobrir se hoje em dia o dinheiro vence ou não o amor, que o mesmo é dizer, descobrir se as pessoas são ou não corruptas. Portanto, o programa faz uma pergunta que me parece pertinente: afinal, porque nos relacionamos nós, porque damos confiança aos outros e por que nos apaixonamos, por um coração ou por um monte de notas?
Segundo. Que mania têm as televisões de voltarem às histórias das gatas borralheiras, das cinderelas, dos três porquinhos, do pobre-menino-rico, do pinóquio, etc. Agora deu-nos para ter paragens cerebrais e ficarmos na infância. Quer dizer, às vezes é bom. Quem não gostaria de ter um pai tão compreensivo como o Geppetto, uma história tão colorida como a da Gata Borralheira, um irmão tão severo mas tão justo como o porquinho Cícero, que nos ensina a construir casas de betão e não casas de palha ou de madeira? Tudo isso é metafórico, mas muitas vezes válido na nossa vida. Convém é que entendamos onde acaba a fantasia e começa a realidade. Porque a realidade é esta: normalmente para percebermos as coisas e conseguirmos atingir o entendimento delas, temos de nos esforçar. Para sermos felizes, temos de nos esforçar. Para ultrapassar traumas e chatices, temos de sofrer e temos de nos esforçar. Não vale a pena tentarmos contornar nada disto. Por muito estúpidos ou imbecis que sejamos, a vida prega partidas constantemente. Escusamos de passar a vida a dizer a nós próprios «isto nunca me vai acontecer», porque essa é a maior mentira do universo. Por isso, mesmo que nos pareça que alguém não teve de se esforçar a pontinha de uma unha para atingir alguma coisa, algum esforço teve de haver, mais não seja o de ludibriar e mentir, que não custa a todos, é verdade, mas que tem as suas consequências. Se a moral é, como dizia Nietzche, a nossa tentativa de solitariamente seguirmos o rebanho, então há muita gente rebelde, porque há muita gente sem moral.
Este programa também é a prova da falta de moral constante das pessoas. Então que raio de rapariga se sujeita àquilo de estar fechada num palácio de um gajo desconhecido, enquanto ele escolhe uma tipa de entre muitas? É que ele vai saindo com elas uma a uma, individualmente e em conjunto – para um estivador não se sai nada mal a bater couro, mas também outra coisa ele não deve fazer na vida. Não se percebe. As miúdas são novas, umas mais giras do que outras, algumas com ar de barracas, de vadias desaustinadas, de filhas pouco amadas. Outras com um ar mais certinho, de betas que sabem o que querem: casar com um homem rico. E finalmente há um outro tipo de gajas, as mais perigosas, que são as que se fazem de difíceis e não querem ir logo para a cama, o que é uma chatice, empatando os tipos, dizendo que são só «amigos», e que «é melhor ir com calma». A tipa do programa que fazia isso até dizia que era desafogada, economicamente, e que tinha tudo o que queria, mas não tinha o que queria: um homem para constituir família. Nunca na minha vida tinha ouvido tamanha mentira, e mesmo assim o estivador-a-fingir-que-é-rico disse que ela lhe parecia «sincera». Portanto, enganou-o bem, porque uma mulher que tem tudo não precisa de ir para um palácio com criados, apreciar as «pequenas coisas da vida» num jacuzzi, num jaguar, numa varanda com vista para o mar. Se ela quer apreciar as pequenas coisas da vida passe um serão com a Tembwa a contar anedotas ou vá almoçar ao jardim do Campo Grande com a Patrícia. Aí, também conhecerá muitos estivadores, e alguns dir-lhe-ão coisas estúpidas, mas sinceras, como «minha jóia, deixa-me ser o teu ourives!» ou «se fosses um pastel de nata eu era a canela».
Uma mulher que tem a postura de procurar um marido no jornal, na Internet ou num concurso televisivo não pode ser boa rês. É uma pessoa que foge do contacto natural com as pessoas. Está bem. Pode acontecer apaixonarmo-nos por amigos, por pessoas conhecidas na net. Mas não me venham dizer que isso não subverte a lei natural das coisas, é quase como escolhermos o sexo e a cor dos olhos do bebé que vamos ter. Ainda por cima estamos a escolher uma pessoa com base em quê? No que ela diz. E desde quando as pessoas dizem a verdade? Ainda se admiram de haver encontros na net que acabam em processos judiciais porque o tipo era anão…
Mas mentir não é só típico de quem anda na net, embora eu seja conservadora ao ponto de pensar que quem promove relações virtuais talvez não esteja muito interessado numa relação real. Mentir também se faz cara a cara, até com algum despudor. E mesmo quando toda a gente topa, parece-me que um mentiroso com lata disfarça e continua. Mentir é uma das coisas que classifico como falta de coerência. Não é nada fácil dizer a verdade, porque a vida é um jogo duro. As meninas que vão à procura de um príncipe certo só mostram quem são dentro dos quartos, umas com as outras, mas não com ele.
Estou curiosa: quando ele disser que é estivador, que vai a eleita responder? Esperem. Deixem-me apostar: «eu não me importo que não tenhas dinheiro, fico é zangada por me teres mentido».
O Pedro diz que não falta por aí gente com dinheiro. É verdade. Não há é muita gente com dinheiro disposta a gastá-lo em pessoas estúpidas, que se aproveitam de tudo e de todos.
O que se passa é que pobreza e falta de dinheiro passaram a ser associadas a falta de carácter, de estirpe, de pedigree. Mas já pensaram que, a grande maioria das pessoas que não tem dinheiro, não tem a culpa disso? Exceptuando as pessoas que estoiram tudo na bebida ou no jogo, parece-me que não escolhemos ter ou não dinheiro. Depende muito do dinheiro que a nossa família tem, porque isso já define muitas coisas, embora não tudo. Há imensas pessoas inteligentes sem dinheiro para continuar a estudar, por exemplo. Depois, evidentemente, depende da profissão que escolhemos e de como ela está cotada, socialmente. Muitas profissões até são recompensadoras, pessoalmente (outras nem isso), como a investigação, mas em Portugal não dão dinheiro, nem têm sequer condições para serem exercidas. Depois, tudo depende da sorte e também dos nossos objectivos. Nem todos queremos, necessariamente, viver em vivendas com piscinas. Eu não quero. A mim basta-me que a vida seja vivida em plenitude e coerência. Acreditem, no entanto, que isso é muito difícil e que nem sempre somos bem sucedidos, porque o que, aparentemente, é coerente para nós não é para os outros.
Não quero julgar as pessoas pelos pais que têm, porque claramente isso é injusto. Mas acho que quanto menos os nossos pais puxam por nós, menos tendência temos para trabalhar e nos esforçarmos por conseguir superar medos e metas difíceis. Confesso que uma educação mais virada para a experiência ter-me-ia auxiliado a ultrapassar o meu medo de viajar sozinha, de me confrontar com a novidade, ter-me-ia ensinado a defender melhor dos pólos opostos. No fundo, educar talvez não seja difícil, mas educar bem é muito difícil. Não podemos prender os filhos a nós nem soltar demasiado, mas também nunca podemos esquecer que estamos a lidar com seres humanos. Por isso, que se passou na educação daquelas meninas? Tiveram pais que as reprimiram, e com essa atitude educaram as mulheres para serem feras, ou por outro lado foram soltas bem cedo para caçarem um homem rico? Estou certa de que, por muitos defeitos que a minha família tenha, seria um desgosto ver-me naqueles propósitos, a atirar-me a um homem rico porque é rico. Mesmo a minha avó, que sempre defendeu a tese de que um bom casamento é um casamento por dinheiro, estou ciente de que não gostaria de me ver rodeada de coisas materiais que em nada trazem benefícios à vida. É um jogo sujo e parece haver muita gente disposta a jogá-lo com as piores armas que é possível.
Uma das raparigas expulsas dizia para as câmaras: «sou demasiada areia para a camioneta do Pedro, ele não tem bagagem». No fundo estava a dizer, sem saber «valho demasiado para um estivador». Realmente, há males que vêm por bem, e às vezes somos castigados sem dó nem piedade pelas nossas palavras e actos.