As aulas de Pilates
Por vezes sinto que realmente não sou muito igual às outras pessoas. A Patrícia Torres diz que eu e Tembua, se não existíssemos éramos inventadas. Eu também acho que a Patrícia teria de ser inventada, nem que fosse para regrar os hábitos de cozinha desenfreados em gordura e açúcares que temos. Mesmo no bolo de noiva, a Patrícia divide o que é bom e o que é mau cuidadosamente, de modo a comer o miolo e deixar aquela capa de açúcar medonha com que enfeitam os ditos «alimentos» (lol). Eu e a Tembua somos as duas únicas mânfias com coragem para ir a um casamento de vermelho (ela com sapatinho vermelho e tudo), quais pérolas de uma ostra sem mais nada para fazer do que cuspir estas duas belezas.
Das duas uma: ou a mim e à Tembua acontece tudo ou somos nós que somos muito observadoras. É que até a minha aula de Pilates tem que se lhe diga, quase tanto como as turmas de formação da Tembua.
A turma de Pilates era muito pequena no início, basicamente pessoas que já se conheciam e que conheciam a professora, tudo gente na casa dos cinquenta e dos sessenta. Por razões que desconheço, as pessoas mais velhas gostam imenso de discriminar os mais novos. É uma coisa que não se percebe bem, porque durante anos a queixa era que os mais novos não queriam saber dos mais velhos, que os deixavam a um canto, que não os queriam ouvir. A minha perspectiva é sempre distinta: quero aprender o máximo possível com eles, até o que não presta, para não repetir os mesmos erros. Acho que está bem. Agora a questão é: quem, dos mais velhos, está disposto a ensinar alguma coisa a esta «jovem»? Socialmente falando, não sou jovem coisa nenhum: sou velha para tudo, nesta sociedade.
O que fariam estas cotas do Pilates há trinta atrás? Certamente já teriam parido um ou dois filhos, iam no primeiro casamento, antes do segundo (e algumas do terceiro, pelo que sei), tinham um emprego para o resto da vida, ou viviam à conta dos maridos. Não sei. Pelo que oiço, já foram à Tailândia, Macau, Nova Zelândia, Brasil, Barcelona, etc. Em suma, viajaram. E com aquelas idades podem ir ao Pilates, à natação, ao shiatsu, às massagens. Já têm filhos criados, casados, netos. Podem viajar, ler livros, apanhar sol. Está bem, não têm o meu corpo, não sou eu que digo à laia de ser convencida, são elas que dizem. E depois contrapõem «Há muitas meninas mais novas pior do que nós, e que andam por aí cabisbaixas». Ó amigas, é assim: hoje em dia um jovem não tem por onde se safar. Emprego é mentira, o pessoal trabalha a recibos verdes anos e anos a fio, a ganhar misérias, a descontar balúrdios. Os que ganham bem, não têm vida pessoal. Filhos é mentira, ninguém quer crianças, as escolas levam metade dos ordenados e não há disponibilidade para os criar.
Não perco tempo a dizer-lhes isto. Cheguei aos trinta anos com uma convicção que me parece sensata: não vou perder tempo com pessoas que não sabem ouvir. É que ouvir – como hei-de explicar? – é mesmo essencial. Ninguém cresce sem ouvir os outros: mais novos, mais velhos, assim-assim, homossexuais, travestis, crianças, pessoas da nossa idade, o homem do talho, da mercearia, a cabeleireira. Todos têm alguma coisa para ensinar, nem que seja pela negativa. Até os malucos dos autocarros. Se não soubermos ouvir, vamos achar que estamos certos e sabemos tudo. A questão é que nem sempre estamos certos. E ninguém sabe tudo. Nem os mais velhos.
Os velhos mais felizes que conheço fazem duas coisas: exercício físico e querer aprender mais. Se assim não for, estagnam, ficam a boiar à tona, a pensar «no meu tempo é que era bom», mesmo que tenham vivido miseravelmente. Ou então vão dizer «queria era ter trinta anos outra vez». Até compreendo, as articulações nem doíam tanto, tinha-se melhor vista, fazia-se tudo com mais flexibilidade. Mas essa perspectiva também está inquinada. Nada volta para trás. Temos de ser felizes para a frente e se possível sem comparação com «os mais novos». Também é prudente pensar que nem todas as pessoas novas são felizes, estão bem consigo mesmas e alcançam da vida o que desejam. Muitas pessoas não são elas próprias até serem velhas. Outras nunca são elas próprias e o resultado são velhos amargos e infelizes, cujo fulcro dos pensamentos se centra na doença. Os budistas dizem que a doença é um sinal para prosperarmos: do-in. Dentro de mim próprio. Proteger o interior exige um treino muito maior do que ir ao Pilates. Pode começar aí. Pode começar noutra coisa qualquer.
Para a Patrícia Torres proteger-se é não comer carne, ser vegetariana e parece-me uma decisão inteligente. Para a Patrícia França é ir às massagens, à depilação, namorar. Para a Paula é pintar bonecos. Para o meu marido é tocar guitarra portuguesa. Para mim é escrever. Todos temos estratégias e dispomos de outras, muito ricas e brilhantes que nos fazem evitar a do-ença, o desfazamento interior, a capitulação à raiva, ao desespero, à tristeza. Fico muitas vezes surpreendida como num dia consigo mudar de estado de espírito por coisas de nada. Por exemplo, ontem vi o meu sobrinho e fiquei muito contente, mesmo com ele a tentar boicotar a minha festa de anos, podre de sono. Mesmo que me partisse a casa toda, a companhia do bebé, da mãe, do pai eram suficientes para a minha animação interior. Outras pessoas têm a capacidade de me arruinar o dia, a disposição, até a alegria de viver, sobretudo pelo que representam, pelo que pensam de mim, pela coisificação do outro, que apenas lhes «serve» como uma roupa. E os outros são tratados como roupa fixe, de todos os dias, roupa reles, que vai para panos do chão ou roupa de gala, que lhes assenta como uma luva nos dias de festa.
As aulas de Pilates e qualquer ginástica que eu faça (nem que seja andar a pé) têm a capacidade de me animar, acho mesmo que é científico, quer dizer, estimulam a sorotonina, libertam endorfinas. Portanto, depois de um passeio vigoroso, a raiva esvanece-se. O meu período mais raivoso e triste sempre foi de manhã. Deve haver uma explicação científica, porque os psiquiatras dizem que, regra geral, quem adoece de depressão tem dificuldade em acordar, em levantar-se, em enfrentar um dia novo. Para mim as manhãs sempre foram um pequeno tormento, mas às vezes conseguem ser ricas em acontecimentos cómicos. Hoje por exemplo estava um homem sentado no meio na estrada, em Oeiras. Porque sim, porque lhe apeteceu. Ora toma. E os carros tinham de se desviar…Este tipo de narcisista eu ainda não tinha visto.
Os velhos não sabem tudo, mas padecem de um mal muito comum, achar que sabem tudo. Acham que têm as doenças todas, as dores todas do mundo dentro da alma. São uma espécie de relicário de porcaria. Parecem ter recalcado coisas inacreditáveis, parecem ter feito um registo de todas as vezes que foram espezinhados para poderem espezinhar os outros com requintes de malvadez. Deste tipo de velhos ou simplesmente da meia-idade o discurso típico é «Vais ver quando cá chegares», «Não sabes nada», «Quem te dera a ti saberes o que eu sei», «Se eu tivesse o teu corpo…». As minhas colegas do Pilates dizem que na idade delas vou ser gorda, vou «ranger» as articulações (expressão que me fez rir, lembrei-me das portas com dobradiças sem óleo), que os jovens não sabem nada (mesmo não sabendo o que eu sei). Quando olho os corpos delas, percebo o que é a «acumulação» de coisas negativas, o que é comer mal, beber pouca água, ou fazer o que os outros querem em vez do que nós queremos. Todavia, elas têm sorte: têm saúde, podem viajar, têm dinheiro, filhos que estão bem…e o terrível problema de não serem jovens. Portanto, de um lado da barricada estou eu, jovem e estúpida, do outro lado estão elas, velhas e sábias. Vou dar a ideia à TVI para mais um programa culturalmente rico…