A diferença
Muitas vezes ficamos confusos com coisas que, sendo aparentemente simples, nos metem medo. Algumas diferenças metem-me um medo terrível. Mas normalmente o que me mete mais medo é a nossa propensão a sermos/ficarmos todos iguais uns aos outros. Irmos às compras nos mesmos sítios, comermos as mesmas coisas, lermos as mesmas coisas, vermos os mesmos filmes, fazermos as mesmas coisas que os outros, e etc., etc. Gosto tanto de ir no metro ou no comboio e deparar com a diferença mais rebelde possível: alguém que se engalanou de tal modo nesse dia que dá vontade de rir, alguém muito perfumado ou tatuado, com roupa ou cabelo excêntrico. Alguém muito original, mesmo que seja em mau gosto, por assim dizer, com riscas e quadrados na blusa, uma saia à Floribella que mostra umas pernocas gordas, umas botas estupidamente enfeitadas e uma maquilhagem de meter medo a qualquer recém-nascido. Às vezes apetecia-me um arrojo, mesmo pequenino, um sopro desse tipo de atitude perante a vida. É verdade que pode não revelar nada, mas estou tão farta das pessoas como elas são, mesmo sem as conhecer…E adoro conhecer pessoas, conversar com quem dá gosto conversar.
Estou farta de vizinhos mal encarados que nem bom dia dizem e fecham o elevador na cara, estou farta de pessoas que levam o cãozinho a mijar e a cagar nos nossos carros, estou farta de funcionários mal encarados e irónicos sem razão, como uma vez, num hotel, em que eu perguntei se podia fumar, e tipo me respondeu «está a ver essa coisinha aí? É um cinzeiro!». Apeteceu-me mandá-lo à merda, palavra, mas educadamente expliquei-lhe que tinham sido promulgadas novas leis sobre o tabaco e respeitantes a fumar em espaços fechados e ele até concordou. Pode não ter sido «por mal», mas dever-lhe-ia ter dito que usar a ironia com um desconhecido faz com que se arrisque uma resposta em palavrão sonoro, ou a uma não-resposta, já que nem toda a gente conhece e sabe o que é a ironia. Este é um tipo de pessoas que, mesmo não sendo estúpida, é sempre estúpida.
Também há os inconscientes, que realmente não dizem «por mal», sai-lhes disparada uma piada parva. E há os parvos conscientes, de quem ninguém gosta, mas também ninguém se atreve a dizer «está calado, palerma!». É uma pena…porque é que perdemos tanto tempo com conversas insensaboronas, com pessoas sem aura, sem gosto, sem vida própria, que vivem na sombra do resto do mundo a tentar explicar o mundo através de olhinhos parvos?
Há uns tempos atrás, no Gato Fedorento havia um sketch cujo tema era um concurso de estupidez entre os empregados de café. Então as piadinhas mais votadas eram «quer um copo de água ou com água?» e «queria um bolo ou quer?». Mas porque é que pessoas que mandam piadas assim não são fulminadas pelos castigadores da parvoíce, como diziam noutro episódio do Gato Fedorento? Para além disso, há que ter em conta uma coisa muito importante: são empregados de café. Não têm mais do que o 9º ano, que hoje em dia equivale a uma 4ª classe antiga das menos exigentes. Agora pessoas formadas, trabalhadores da função pública, gente que tira mestrados e doutoramentos, ó meus amigos…qualquer dia também dizem na rua «minha jóia, deixa-me ser o teu ourives!».
Pelo contrário, há pessoas aparentemente simples, que sobressaiem por qualidades ditas normais, mas já muito raras na nossa sociedade: são genuinamente simpáticas. A senhora da limpeza aqui da universidade é um amor com toda a gente, desde empregados a alunos, as casas de banho estão sempre limpas e diz bom-dia a toda a gente. Não é uma pessoa negativa. Sente-se muito esforço, muita simplicidade, mas boas energias, ou como diria a Lisa, good vibes. Não pode ser interesseira, ninguém aqui lhe paga ou lhe dá mais ou menos pelo seu trabalho (não vó, não posso pôr qualquer coisinha no bolso da senhora para ela me limpar as janelas do gabinete), todavia ela é simplesmente simpática. Porque é que as pessoas não podem ser todas assim, um peixinho fresco em vez de um ultra-congelado? Olha, boa analogia. O peixinho fresco é genuíno, o outro era genuíno antes da camada de gelo. Onde raio arranjaram as pessoas tantas camadas de gelo?
Outra senhora que aqui trabalha é o pagode das colegas mais novas. Hoje estava a assistir a uma cena em que gozavam com a senhora porque encheu o prato de couves. Ó meus amigos, não têm mais que fazer? Calculo que estejam todas à espera que ela morra para lhe ficarem com o lugar. Mas a senhora é simpática, disponível, conversadora. É velha, sim, toda torta, mas sincera, porque quando lhe pedi os Diários da República de 1920 disse-me logo: “ Não tenho força para os trazer, mas já peço ao meu colega “, e mesmo a mim, que trabalho aqui, ela telefonou e deixou a mensagem que eu podia vir consultá-los quando quisesse. Porque raio há-de ser importante ela comer um prato cheio de couves? Parece-me tão mesquinho…
Todavia, a pessoa que manda aqui, que é «dr.», como muitos outros e outras que cá trabalham, é o cúmulo da arrogância e da má disposição. É uma dessas pessoas que me arrepia a espinha, porque acha que tem direitos mas não deveres. Entra aqui tarde todos os dias, segundo ele porque «vai ao ginásio», mas quando alguém sai mais cedo ou se atrasa reclama que nada anda para a frente (comportamento típico de manipulador autoritário e arrogante).
Muitas pessoas se situam na área dos direitos mas nunca nas dos deveres. Acham que querem, que podem, mas que os outros não podem nada, nem têm de querer coisa nenhuma. Ou então, simplesmente nem lhes ocorre que os outros existem. Por exemplo, mesmo aqui perto há um infantário. Em que pensam as pessoas que estacionam o carro em cima do passeio, à porta do infantário, para irem buscar os filhos? Meus amigos, há mais pais e crianças que precisam do passeio, certo? E o passeio é para andar, não é?
Mais uma vez é educacional. Sempre que oiço uma pessoa a dizer «nunca me conseguiram obrigar a nada, desde miúdo», penso em que raio de ser se terá tornado. Porque sermos contrariados, envergonhados, chateados pelos pais e restantes adultos parece-me saudável. Na verdade, terrível em algumas circunstâncias, mas se nos derem um docinho em vez de uma estaladinha ou empurrão, onde raio vamos parar? Ao mundo não dos direitos mas das exigências, ou do ficar «paradinho» à espera que nos apareça quem faça tudo, a ver se substitui os papás. Parece-me que somos alguém, na verdade, quando lutamos contra isto. Eu podia ter ficado assim. Seria até provável que ficasse. Mas não. Contrariei a tendência de me protegerem através da ignorância em relação ao mundo lá de fora. Às vezes gostava de dizer que fiquei a ganhar alguma coisa, mas parece-me que só ganhei mais consciência e lucidez. Já não é mau…
Muitas vezes ficamos confusos com coisas que, sendo aparentemente simples, nos metem medo. Algumas diferenças metem-me um medo terrível. Mas normalmente o que me mete mais medo é a nossa propensão a sermos/ficarmos todos iguais uns aos outros. Irmos às compras nos mesmos sítios, comermos as mesmas coisas, lermos as mesmas coisas, vermos os mesmos filmes, fazermos as mesmas coisas que os outros, e etc., etc. Gosto tanto de ir no metro ou no comboio e deparar com a diferença mais rebelde possível: alguém que se engalanou de tal modo nesse dia que dá vontade de rir, alguém muito perfumado ou tatuado, com roupa ou cabelo excêntrico. Alguém muito original, mesmo que seja em mau gosto, por assim dizer, com riscas e quadrados na blusa, uma saia à Floribella que mostra umas pernocas gordas, umas botas estupidamente enfeitadas e uma maquilhagem de meter medo a qualquer recém-nascido. Às vezes apetecia-me um arrojo, mesmo pequenino, um sopro desse tipo de atitude perante a vida. É verdade que pode não revelar nada, mas estou tão farta das pessoas como elas são, mesmo sem as conhecer…E adoro conhecer pessoas, conversar com quem dá gosto conversar.
Estou farta de vizinhos mal encarados que nem bom dia dizem e fecham o elevador na cara, estou farta de pessoas que levam o cãozinho a mijar e a cagar nos nossos carros, estou farta de funcionários mal encarados e irónicos sem razão, como uma vez, num hotel, em que eu perguntei se podia fumar, e tipo me respondeu «está a ver essa coisinha aí? É um cinzeiro!». Apeteceu-me mandá-lo à merda, palavra, mas educadamente expliquei-lhe que tinham sido promulgadas novas leis sobre o tabaco e respeitantes a fumar em espaços fechados e ele até concordou. Pode não ter sido «por mal», mas dever-lhe-ia ter dito que usar a ironia com um desconhecido faz com que se arrisque uma resposta em palavrão sonoro, ou a uma não-resposta, já que nem toda a gente conhece e sabe o que é a ironia. Este é um tipo de pessoas que, mesmo não sendo estúpida, é sempre estúpida.
Também há os inconscientes, que realmente não dizem «por mal», sai-lhes disparada uma piada parva. E há os parvos conscientes, de quem ninguém gosta, mas também ninguém se atreve a dizer «está calado, palerma!». É uma pena…porque é que perdemos tanto tempo com conversas insensaboronas, com pessoas sem aura, sem gosto, sem vida própria, que vivem na sombra do resto do mundo a tentar explicar o mundo através de olhinhos parvos?
Há uns tempos atrás, no Gato Fedorento havia um sketch cujo tema era um concurso de estupidez entre os empregados de café. Então as piadinhas mais votadas eram «quer um copo de água ou com água?» e «queria um bolo ou quer?». Mas porque é que pessoas que mandam piadas assim não são fulminadas pelos castigadores da parvoíce, como diziam noutro episódio do Gato Fedorento? Para além disso, há que ter em conta uma coisa muito importante: são empregados de café. Não têm mais do que o 9º ano, que hoje em dia equivale a uma 4ª classe antiga das menos exigentes. Agora pessoas formadas, trabalhadores da função pública, gente que tira mestrados e doutoramentos, ó meus amigos…qualquer dia também dizem na rua «minha jóia, deixa-me ser o teu ourives!».
Pelo contrário, há pessoas aparentemente simples, que sobressaiem por qualidades ditas normais, mas já muito raras na nossa sociedade: são genuinamente simpáticas. A senhora da limpeza aqui da universidade é um amor com toda a gente, desde empregados a alunos, as casas de banho estão sempre limpas e diz bom-dia a toda a gente. Não é uma pessoa negativa. Sente-se muito esforço, muita simplicidade, mas boas energias, ou como diria a Lisa, good vibes. Não pode ser interesseira, ninguém aqui lhe paga ou lhe dá mais ou menos pelo seu trabalho (não vó, não posso pôr qualquer coisinha no bolso da senhora para ela me limpar as janelas do gabinete), todavia ela é simplesmente simpática. Porque é que as pessoas não podem ser todas assim, um peixinho fresco em vez de um ultra-congelado? Olha, boa analogia. O peixinho fresco é genuíno, o outro era genuíno antes da camada de gelo. Onde raio arranjaram as pessoas tantas camadas de gelo?
Outra senhora que aqui trabalha é o pagode das colegas mais novas. Hoje estava a assistir a uma cena em que gozavam com a senhora porque encheu o prato de couves. Ó meus amigos, não têm mais que fazer? Calculo que estejam todas à espera que ela morra para lhe ficarem com o lugar. Mas a senhora é simpática, disponível, conversadora. É velha, sim, toda torta, mas sincera, porque quando lhe pedi os Diários da República de 1920 disse-me logo: “ Não tenho força para os trazer, mas já peço ao meu colega “, e mesmo a mim, que trabalho aqui, ela telefonou e deixou a mensagem que eu podia vir consultá-los quando quisesse. Porque raio há-de ser importante ela comer um prato cheio de couves? Parece-me tão mesquinho…
Todavia, a pessoa que manda aqui, que é «dr.», como muitos outros e outras que cá trabalham, é o cúmulo da arrogância e da má disposição. É uma dessas pessoas que me arrepia a espinha, porque acha que tem direitos mas não deveres. Entra aqui tarde todos os dias, segundo ele porque «vai ao ginásio», mas quando alguém sai mais cedo ou se atrasa reclama que nada anda para a frente (comportamento típico de manipulador autoritário e arrogante).
Muitas pessoas se situam na área dos direitos mas nunca nas dos deveres. Acham que querem, que podem, mas que os outros não podem nada, nem têm de querer coisa nenhuma. Ou então, simplesmente nem lhes ocorre que os outros existem. Por exemplo, mesmo aqui perto há um infantário. Em que pensam as pessoas que estacionam o carro em cima do passeio, à porta do infantário, para irem buscar os filhos? Meus amigos, há mais pais e crianças que precisam do passeio, certo? E o passeio é para andar, não é?
Mais uma vez é educacional. Sempre que oiço uma pessoa a dizer «nunca me conseguiram obrigar a nada, desde miúdo», penso em que raio de ser se terá tornado. Porque sermos contrariados, envergonhados, chateados pelos pais e restantes adultos parece-me saudável. Na verdade, terrível em algumas circunstâncias, mas se nos derem um docinho em vez de uma estaladinha ou empurrão, onde raio vamos parar? Ao mundo não dos direitos mas das exigências, ou do ficar «paradinho» à espera que nos apareça quem faça tudo, a ver se substitui os papás. Parece-me que somos alguém, na verdade, quando lutamos contra isto. Eu podia ter ficado assim. Seria até provável que ficasse. Mas não. Contrariei a tendência de me protegerem através da ignorância em relação ao mundo lá de fora. Às vezes gostava de dizer que fiquei a ganhar alguma coisa, mas parece-me que só ganhei mais consciência e lucidez. Já não é mau…