A História Interminável
Hoje o meu post tem o nome de um filme fantástico. Um filme de 1984. E tem história, provavelmente interminável também. Eu vou contá-la. Em 1984 eu fiz sete anos. Animada pela promessa dos meus pais de que quando aprendesse a ler ia ao cinema, fui pela primeira vez com a minha mãe em 1984. Não me lembro porque fui só com ela. Talvez o meu irmão não quisesse ver o filme, talvez o meu pai não pudesse ter ido naquele dia – não me lembro. Talvez tenha sido um projecto entre mim e a minha mãe, tal e qual como quando íamos juntas à Baixa.
Eu tinha aprendido a ler há bem pouco tempo, portanto não seguia as legendas todas, a minha mãe teve de me explicar algumas partes do filme – além disso, eu já via muito mal. Mas sei que o filme me marcou para toda a vida, e nesta vinda a Roma percebi porquê. Vi o filme à venda e namorei-o dias e dias, mas reparei que não tinha legendas em português, para o ver e perceber teria de me esforçar no inglês ou seguir legendas em italiano – acabei por optar pelas duas. Todavia, ainda havia uma outra hipótese, bem remota: lembrar-me do filme quando o vi em 1984. Foi também o que me aconteceu. E foi tão bom ouvir a música do Limalh outra vez «Neverending Story». Foi tão bom vibrar com o filme e com o herói do mesmo. E finalmente perceber tudo sobre o filme: porque sempre gostei dele, porque ainda gosto dele, porque me marcou e quem sou eu no filme.
Obviamente sou o Bastian. Não tão má aluna como ele a matemática, mas igualmente boa leitora e participante das minhas leituras. Mas quem eu gostava de ser era o Atreyu ou a Imperatriz-Menina. E a história tem essa graça: os heróis são meninos e meninas, não homens, não guerreiros, mas meninos-guerreiros. E a partir dos sete anos, com pesados óculos na cara, eu desejei muito entrar na História Interminável, como entra o Bastian, e deixar de pé Fantasia, o universo onde reina a Imperatriz-Menina.
A Paula disse-me no outro dia que lhe disseram que Novembro é um mês terrível para quem perdeu alguém. Há saudades que não acabam mais. Há tristeza. É do tempo, da aproximação do Natal (que custa tanto), não se sabe bem. Mas é realmente um mês de transição. Para mim é sempre. Desde sempre. Não sei se não detesto mais Dezembro, por causa do Natal. Aos sete anos o Natal tinha tanta graça e era tão rico e hoje para mim vale zero. Mesmo zero. Não me lembro de nada tão mau, tão cruel e tão duro como o primeiro Natal sem a minha mãe. E quem me conhece sabe que não sou de choraminguices destas. Por isso cheguei a este Novembro, mais um passado em Roma, com a sensação de que a minha mãe partiu, realmente, mas está aqui comigo, quando eu atravesso a ponte Sant’Angelo ela está lá e fala comigo, e é tão fácil, tão simples…e tão estúpido, tão patético.
Descobri há bem pouco tempo que o segredo da vida se reduz a uma coisa muito importante: a espera. Queremos tudo demasiado rápido. Queremos comida rápida (excepto a Patrícia Torres), queremos que a constipação passe rápido (a gripe nem se fala), queremos que a gravidez passe rápido para vermos a cara do nosso filho, queremos ter um parto rápido para não doer, queremos sair rápido de casa (algumas pessoas, pelo menos), ter emprego rápido, ter estabilidade rápida, queremos resolver rápido o que não nos satisfaz. Eu pelo menos sou assim. Muito impaciente, inclemente, e por isso sofro da doença da rapidez. Quero perceber tudo rápido. Mas levei mais de dez anos a perceber a História Interminável, isso vos garanto, e toda a sua beleza, encanto e doçura, sobretudo na mensagem que transmite.
Do que me lembro com sete anos? Da minha mãe ao meu lado no cinema, sem dúvida. E da cena tenebrosa em que morre Artax, o cavalo do herói Atreyu, na lama movediça. Levei o resto do filme a perguntar à minha mãe «Morreu mesmo?», e ela dizia «Sim», e eu fiquei muito triste. Lembrava-me que o cavalo era branco. Só hoje, com trinta anos de vida, percebi essa cena: o cavalo não morre por acaso, morre para Atreyu aprender a continuar sozinho o seu percurso. O cavalo decide morrer. E quando na cena final volta a aparecer, fica claro que é fantasia, porque o cavalo tinha morrido. E eu para a minha mãe «O cavalo ressuscitou?», e ela «Sim». Atreyu sou eu e o cavalo a minha mãe. E ainda hoje, a ver o filme, me desespero completamente com o sofrimento de Atreyu, porque é o meu sofrimento, quando ele grita «Não me faças isso, Artax, não desistas! Preciso de ti!». Uma cena tão simples e com tanto significado. Sozinho e desamparado, Atreyu depara-se com falta de ajuda, cansaço, solidão, tristeza e doença, da qual só recupera quando é, no último suspiro, raptado pelo dragão da sorte (do qual eu me lembrava perfeitamente, excepto nos dentes e nas escamas, que agora achei horrorosos e mal feitos). O dragão ensina-lhe que ele não está sozinho, dá-lhe a mão nos piores momentos, procura por ele quando não o vê, preocupa-se genuinamente em lutar contra o fim de Fantasia, tomada pelo Nada. O Nada é o caos, a desordem, a escuridão, as trevas. Atreyu acha que falhou, Fantasia é destruída, e diz-lhe o dragão «Pelo menos tentaste». O dragão da sorte são os meus amigos.
Quando Atreyu se defronta com o lobo que representa o Nada diz-lhe que prefere morrer a combater, porque toda a vida combateu. Pergunta ao lobo quem é ele, e a resposta parece-me exemplar «Alguém vendido ao poder do Nada. Dantes os homens sonhavam, tinham coração, mas agora desistiram dos seus sonhos e venderam-se ao poder e à ambição. Represento a traição aos sentimentos». Atreyu mata-o, todavia antes de aí chegar tinha passado já por duras provas, uma das quais passar por entre duas esfinges que dizimavam quem mentia a si próprio. As esfinges liam o coração. E lêem o medo de Atreyu, por isso disparam, ao ponto de ele correr para não morrer. As esfinges são os meus inimigos: lêem-me o coração e tentam aniquilar-me.
Chegado à Imperatriz-Menina, que eu não me lembrava que era também uma criança, Atreyu chora e diz que falhou, mas a Imperatriz diz que não. Diz que com a sua bravura convocou outros a serem bravos, os leitores das suas histórias. E então convoca Bastian, o terrestre que Atreyu chamou e que tem de lhe dar a ela um novo nome. A Imperatriz diz-lhe «Tu sabes que nome me dar, mas não tens tido coragem de o dizer». Bastian abre a janela e grita o nome da mãe, que morrera (e não se chega a saber qual é esse nome, mas para que a Imperatriz não morresse era preciso dar-lhe um novo nome, segundo o Oráculo). Não me lembrava que Bastian era órfão de mãe, lembrava-me só que era um garoto triste e desolado, que os outros gozavam na escola. Mas pelos vistos Bastian e eu temos muito em comum.
A Imperatriz diz-lhe então que só sobrou um grão de todo o seu Império, mas que chega para construir um novo, basta querer. E para isso Bastian só tem de…sonhar, inventar, criar. E Bastian começa a inventar, a criar (daí a ressurreição do cavalo, ele também não deve saber lidar com a morte dos que amamos, como eu).
Tão bonito o filme! À distância de mais de vinte anos, acho o filme magnífico. No final, o narrador diz «Bastian inventou e criou, mas um dia teve de voltar à vida real…só que isso é outra história». Lembra-me quando eu sonho e gosto muito do sonho, acordo e volto à vida real.
Em 1984 ninguém fazia merchandising destes filmes: não havia cadernos, cadernetas, lápis, canetas, camisolas dos filmes, como hoje há do Homem-Aranha. Com muito menos do que há hoje, acho que éramos crianças muito mais felizes: tínhamos calquitos, cromos, barbies, sandálias transparentes para ir à praia, ténis e calças de treino para os fins-de-semana e víamos o Corpo Humano e a Abelha Maia. Se víamos um filme, fixávamos a história, não líamos resumos e sabíamos a priori de que tratava. Íamos à sorte e adivinhávamos o conteúdo dos filmes e dos livros. A vida era uma aventura muito divertida. E sobretudo íamos ao cinema com os nossos pais e por muito cansados que eles estivessem viam os filmes connosco, ainda fazíamos os trabalhos de casa com eles, no tempo em que fazer trabalhos de casa era uma coisa normal e regular, diária mesmo. Mas desse tempo o que mais recordo é que a minha mãe não aparecia nos meus sonhos, porque era viva e fazia parte da minha vida diária. Estava ali, à mão de semear. Hoje tenho de ir à procura dela na ponte de Sant’Angelo, numa igreja, num sonho, na minha memória, que nem sempre é feliz na forma como a recupera. A minha também é uma história interminável, que só resiste pela luta, pela bravura, e sobretudo pela minha imaginação, pela verdade do que o meu coração é e sabe. Com tanta força talvez as esfinges não me dizimem. E quem sabe o mundo seja como o Walt Disney o definiu «se podes pensar, então consegues fazer».
Hoje o meu post tem o nome de um filme fantástico. Um filme de 1984. E tem história, provavelmente interminável também. Eu vou contá-la. Em 1984 eu fiz sete anos. Animada pela promessa dos meus pais de que quando aprendesse a ler ia ao cinema, fui pela primeira vez com a minha mãe em 1984. Não me lembro porque fui só com ela. Talvez o meu irmão não quisesse ver o filme, talvez o meu pai não pudesse ter ido naquele dia – não me lembro. Talvez tenha sido um projecto entre mim e a minha mãe, tal e qual como quando íamos juntas à Baixa.
Eu tinha aprendido a ler há bem pouco tempo, portanto não seguia as legendas todas, a minha mãe teve de me explicar algumas partes do filme – além disso, eu já via muito mal. Mas sei que o filme me marcou para toda a vida, e nesta vinda a Roma percebi porquê. Vi o filme à venda e namorei-o dias e dias, mas reparei que não tinha legendas em português, para o ver e perceber teria de me esforçar no inglês ou seguir legendas em italiano – acabei por optar pelas duas. Todavia, ainda havia uma outra hipótese, bem remota: lembrar-me do filme quando o vi em 1984. Foi também o que me aconteceu. E foi tão bom ouvir a música do Limalh outra vez «Neverending Story». Foi tão bom vibrar com o filme e com o herói do mesmo. E finalmente perceber tudo sobre o filme: porque sempre gostei dele, porque ainda gosto dele, porque me marcou e quem sou eu no filme.
Obviamente sou o Bastian. Não tão má aluna como ele a matemática, mas igualmente boa leitora e participante das minhas leituras. Mas quem eu gostava de ser era o Atreyu ou a Imperatriz-Menina. E a história tem essa graça: os heróis são meninos e meninas, não homens, não guerreiros, mas meninos-guerreiros. E a partir dos sete anos, com pesados óculos na cara, eu desejei muito entrar na História Interminável, como entra o Bastian, e deixar de pé Fantasia, o universo onde reina a Imperatriz-Menina.
A Paula disse-me no outro dia que lhe disseram que Novembro é um mês terrível para quem perdeu alguém. Há saudades que não acabam mais. Há tristeza. É do tempo, da aproximação do Natal (que custa tanto), não se sabe bem. Mas é realmente um mês de transição. Para mim é sempre. Desde sempre. Não sei se não detesto mais Dezembro, por causa do Natal. Aos sete anos o Natal tinha tanta graça e era tão rico e hoje para mim vale zero. Mesmo zero. Não me lembro de nada tão mau, tão cruel e tão duro como o primeiro Natal sem a minha mãe. E quem me conhece sabe que não sou de choraminguices destas. Por isso cheguei a este Novembro, mais um passado em Roma, com a sensação de que a minha mãe partiu, realmente, mas está aqui comigo, quando eu atravesso a ponte Sant’Angelo ela está lá e fala comigo, e é tão fácil, tão simples…e tão estúpido, tão patético.
Descobri há bem pouco tempo que o segredo da vida se reduz a uma coisa muito importante: a espera. Queremos tudo demasiado rápido. Queremos comida rápida (excepto a Patrícia Torres), queremos que a constipação passe rápido (a gripe nem se fala), queremos que a gravidez passe rápido para vermos a cara do nosso filho, queremos ter um parto rápido para não doer, queremos sair rápido de casa (algumas pessoas, pelo menos), ter emprego rápido, ter estabilidade rápida, queremos resolver rápido o que não nos satisfaz. Eu pelo menos sou assim. Muito impaciente, inclemente, e por isso sofro da doença da rapidez. Quero perceber tudo rápido. Mas levei mais de dez anos a perceber a História Interminável, isso vos garanto, e toda a sua beleza, encanto e doçura, sobretudo na mensagem que transmite.
Do que me lembro com sete anos? Da minha mãe ao meu lado no cinema, sem dúvida. E da cena tenebrosa em que morre Artax, o cavalo do herói Atreyu, na lama movediça. Levei o resto do filme a perguntar à minha mãe «Morreu mesmo?», e ela dizia «Sim», e eu fiquei muito triste. Lembrava-me que o cavalo era branco. Só hoje, com trinta anos de vida, percebi essa cena: o cavalo não morre por acaso, morre para Atreyu aprender a continuar sozinho o seu percurso. O cavalo decide morrer. E quando na cena final volta a aparecer, fica claro que é fantasia, porque o cavalo tinha morrido. E eu para a minha mãe «O cavalo ressuscitou?», e ela «Sim». Atreyu sou eu e o cavalo a minha mãe. E ainda hoje, a ver o filme, me desespero completamente com o sofrimento de Atreyu, porque é o meu sofrimento, quando ele grita «Não me faças isso, Artax, não desistas! Preciso de ti!». Uma cena tão simples e com tanto significado. Sozinho e desamparado, Atreyu depara-se com falta de ajuda, cansaço, solidão, tristeza e doença, da qual só recupera quando é, no último suspiro, raptado pelo dragão da sorte (do qual eu me lembrava perfeitamente, excepto nos dentes e nas escamas, que agora achei horrorosos e mal feitos). O dragão ensina-lhe que ele não está sozinho, dá-lhe a mão nos piores momentos, procura por ele quando não o vê, preocupa-se genuinamente em lutar contra o fim de Fantasia, tomada pelo Nada. O Nada é o caos, a desordem, a escuridão, as trevas. Atreyu acha que falhou, Fantasia é destruída, e diz-lhe o dragão «Pelo menos tentaste». O dragão da sorte são os meus amigos.
Quando Atreyu se defronta com o lobo que representa o Nada diz-lhe que prefere morrer a combater, porque toda a vida combateu. Pergunta ao lobo quem é ele, e a resposta parece-me exemplar «Alguém vendido ao poder do Nada. Dantes os homens sonhavam, tinham coração, mas agora desistiram dos seus sonhos e venderam-se ao poder e à ambição. Represento a traição aos sentimentos». Atreyu mata-o, todavia antes de aí chegar tinha passado já por duras provas, uma das quais passar por entre duas esfinges que dizimavam quem mentia a si próprio. As esfinges liam o coração. E lêem o medo de Atreyu, por isso disparam, ao ponto de ele correr para não morrer. As esfinges são os meus inimigos: lêem-me o coração e tentam aniquilar-me.
Chegado à Imperatriz-Menina, que eu não me lembrava que era também uma criança, Atreyu chora e diz que falhou, mas a Imperatriz diz que não. Diz que com a sua bravura convocou outros a serem bravos, os leitores das suas histórias. E então convoca Bastian, o terrestre que Atreyu chamou e que tem de lhe dar a ela um novo nome. A Imperatriz diz-lhe «Tu sabes que nome me dar, mas não tens tido coragem de o dizer». Bastian abre a janela e grita o nome da mãe, que morrera (e não se chega a saber qual é esse nome, mas para que a Imperatriz não morresse era preciso dar-lhe um novo nome, segundo o Oráculo). Não me lembrava que Bastian era órfão de mãe, lembrava-me só que era um garoto triste e desolado, que os outros gozavam na escola. Mas pelos vistos Bastian e eu temos muito em comum.
A Imperatriz diz-lhe então que só sobrou um grão de todo o seu Império, mas que chega para construir um novo, basta querer. E para isso Bastian só tem de…sonhar, inventar, criar. E Bastian começa a inventar, a criar (daí a ressurreição do cavalo, ele também não deve saber lidar com a morte dos que amamos, como eu).
Tão bonito o filme! À distância de mais de vinte anos, acho o filme magnífico. No final, o narrador diz «Bastian inventou e criou, mas um dia teve de voltar à vida real…só que isso é outra história». Lembra-me quando eu sonho e gosto muito do sonho, acordo e volto à vida real.
Em 1984 ninguém fazia merchandising destes filmes: não havia cadernos, cadernetas, lápis, canetas, camisolas dos filmes, como hoje há do Homem-Aranha. Com muito menos do que há hoje, acho que éramos crianças muito mais felizes: tínhamos calquitos, cromos, barbies, sandálias transparentes para ir à praia, ténis e calças de treino para os fins-de-semana e víamos o Corpo Humano e a Abelha Maia. Se víamos um filme, fixávamos a história, não líamos resumos e sabíamos a priori de que tratava. Íamos à sorte e adivinhávamos o conteúdo dos filmes e dos livros. A vida era uma aventura muito divertida. E sobretudo íamos ao cinema com os nossos pais e por muito cansados que eles estivessem viam os filmes connosco, ainda fazíamos os trabalhos de casa com eles, no tempo em que fazer trabalhos de casa era uma coisa normal e regular, diária mesmo. Mas desse tempo o que mais recordo é que a minha mãe não aparecia nos meus sonhos, porque era viva e fazia parte da minha vida diária. Estava ali, à mão de semear. Hoje tenho de ir à procura dela na ponte de Sant’Angelo, numa igreja, num sonho, na minha memória, que nem sempre é feliz na forma como a recupera. A minha também é uma história interminável, que só resiste pela luta, pela bravura, e sobretudo pela minha imaginação, pela verdade do que o meu coração é e sabe. Com tanta força talvez as esfinges não me dizimem. E quem sabe o mundo seja como o Walt Disney o definiu «se podes pensar, então consegues fazer».