Os piqueniques da vida
Já escrevi imensos textos acerca dos meus amigos, quase todos eles elogiosos e representativos da importância que cada um deles tem para mim. Naturalmente que, com o tempo, cada amigo segue o seu caminho pessoal, profissional, social, e até geográfico. Quase todos nós, à excepção do Dalai Lama, damos muita importância ao ego e por isso tornamo-nos possessivos, com as coisas e com as pessoas. Queremos as pessoas connosco, aqui e agora. Se formos razoáveis, começamos a perceber que, se estamos pouco tempo com as pessoas, devemos aproveitar a sua companhia ao máximo. Acho que a vida me tem ensinado a fazer isso de uma forma delicada, a dar importância a almoços, jantares, lanches e piqueniques, caracoladas e cervejinhas. A minha avó costuma dizer que é o que guardamos da vida e levamos no coração. Talvez ela tenha razão.
Há quase um ano que almoço com a Patrícia no jardim ao pé da Maternidade Alfredo da Costa. Ali ficamos com os nossos almoços improvisados ou trazidos em tupperwares, as nossas bananas compradas ou roubadas de casa, os nossos guardanapos, a ver grávidas a passarem, indigentes a ressonarem ou a praguejarem e, em muitos casos, a ver boxers, poodles, bulldogues e cães rafeiros a fazerem necessidades no jardim. Quando chove resguardamo-nos no centro comercial, onde dezenas de pessoas de fato comem à pressa. Muitas sentam-se na nossa mesa a fim de se despacharem. Há tias, tios, gente pateta, miúdas que se vestem como putas finas, outras que não, há conversas fúteis e tolas, outras que parecem sérias. Mas, na maior parte das vezes, existimos nós, a nossa salada de queijo fresco e manga, as nossas empadas de galinha, a nossa sopa, e o nosso passeio pelas lojas de livros, cds e enxovais caros.
Temos uma hora para tudo isto e conseguimos habilmente expor muitos problemas que nos afligem. Ou melhor, eu falo que me desunho, ao contrário da maior parte das pessoas, quando estou calada, na minha concha, estou bem, é porque a harmonia está cá dentro, é porque estou a resolver qualquer coisa com o meu próprio assentimento. A Patrícia é ao contrário, fala imenso quando lhe apetece, mas se estiver em baixo, está muito quieta a ouvir-me, em escuta atenta e silenciosa. É com estas antíteses que gerimos uma hora de almoço que acontece, geralmente, duas vezes por semana, mas que ultimamente se tem multiplicado. Passei uma fase em que pensava «é hoje que a Patrícia já não me consegue ouvir mais e me põe fita-cola na boca!». Era a fase do gato que tenta apanhar a cauda (tenho muitas fases assim!), de angústia, em que falo do mesmo tantas vezes que fico cansada só de existir. Todavia, até hoje, sempre consegui dizer tudo o que me passava pela cabeça sem sanções. Tenho esta sorte divinal com os meus amigos: eles ouvem de tudo.
Apesar de ter já tanta intimidade com a Patrícia, conheço-a há muito pouco tempo, em Dezembro faremos dois anos de amizade. Já trabalhámos juntas (e divertimo-nos a valer) graças ao mítico Padre Manuel Antunes, padre, escritor, filósofo, professor e quase amigo de casa, não desse a sua obra tanta dor de cabeça à Patrícia e à Paula. Depois eu estive em Roma, a Patrícia na Madeira, falámos por messenger e quando a Patrícia voltou retomámos a nossa ligação de amigas, quase irmãs em sonhos, em pensamentos, em escritos poéticos, em cartas e postais. Hoje surpreendi-me com a Patrícia – engraçado como a conheço bem, ou acho que sim, e ela me surpreende tanto – quando ela me perguntou «sabes o que é que eu gostaria mesmo de fazer hoje?», e eu pensei logo «de estar com o Luís Filipe!», mas pensei sem maldade nem inveja nenhuma, porque ela está apaixonada e vai viver com ele. E ela saiu-se com esta «de passar a tarde contigo às compras no Colombo!». É resposta que só uma gaja fixe dá a outra gaja fixe! Não duvido que ela adorasse estar com o Luís Filipe, mas, não podendo, a Patrícia apetecia-lhe dar a sua voltinha de gaja gastadora, como a Elisabete gosta de fazer comigo, também. Um gelado, cinema. Epá, coisas muito boas…o que nós levamos da vida, como diria a minha avó.
Num ano, eu e a Patrícia sofremos modificações nas nossas vidas. Mais eu do que ela porque me casei, saí de casa, tive de me adaptar a um mundo de coisas novas que ainda esperam por ela. No início foi um desespero tremendo, eu achava que não ia mesmo conseguir passar dos primeiros meses de casamento, sentia-me a Britney Spears, mas em versão morena e magra, a casar num repente e a descasar noutro, pedindo desculpa à humanidade por tanta afronta. Todavia, a Patrícia mantinha uma calma inabalável e dizia-me «as coisas vão mudando, mas devagar». Já mudaram muito e talvez eu nem me aperceba, afinal agora grito e esperneio para me defender de afrontas e, apesar do stress e das noites mal dormidas, ainda estou casada, mais do que isso, gosto de estar casada. Zangar-me a sério já fez estragos, mas lembro-me sempre da frase que a minha psicóloga me disse um dia «até Jesus Cristo expulsou os vendilhões do templo ao pontapé!...». Como me diz o Pedro «compreendo que agora és mais tu própria». A responsabilidade é minha por isso, mas a Patrícia ajudou.
Na brincadeira, costumamos dizer que, com tanta perversidade, o Diabo já gosta de nós e nos guardou lugar no Inferno…juntas.
Eu e a Elisabete somos mais de cervejas e caracóis. No outro dia resolvemos fumar. Ali estávamos na esplanada a desrespeitar tudo o que as avós nos ensinaram: uma mulher não bebe, uma mulher não fuma, uma mulher não deixa o seu gajo sozinho, uma mulher não está ao fim do dia numa esplanada de perna traçada…essas coisas bacocas. No tempo do Salazar íamos dentro. Fartámo-nos de palrar, falar, pôr a conversa em dia, longe do Serginho, que é lindo, mas barulhento demais para desabafos entre senhoras. Nestas conversas ficamos sempre com a sensação de que o Atlas só podia ser gaja, porque o planeta estava nas costas dele, e a nós calha-nos isso, o mundo às costas, as pessoas mais manipuladoras e mesquinhas atrás de nós, a negatividade a circundar-nos e nós a mantermos a fé nos nossos valores e princípios de vida.
Gosto muito dos piqueniques. De todos. Quando se fazem aqueles lanches baratuchos compostos por batata-frita, folhados, fritos e sumos com açúcar, como diz a Paula, melhor ainda, arruinamos o esforço de mantermos o peso depois dos trinta anos. No outro dia fui com ela e com a Tembua (as outras mânfias resolveram desmarcar em cima da hora) ao jardim do Inatel, onde gentilmente tivemos de pagar 0,63 euros, uma fortuna que nos permitiu ver a noite a cair, a chuva a cair, alguns raios e fugir a sete pés para a casa da Paula, onde ficámos a beber café fraco, daquele que, como diz a Patrícia, só sabe bem quando é bebido em casa da Paula. Até lá, contei tudo sobre o que me afligia, e claro que as histórias da Tembua, simples, complexas, curtas ou longas, nos fizeram rir. Voltei para casa debaixo de uma tempestade e um céu violeta assustador, mas valeu a pena o piquenique.
Alguns psicólogos que estudam o optimismo e os mecanismos da felicidade sabem que mais de metade dos nossos problemas e da nossa infelicidade são causados por nós, pela nossa percepção das coisas. Os budistas dizem melhor, por vezes percepcionamos afrontas onde não as houve. A minha opinião, ao longo deste ano, mudou: acho que, se há afronta – imaginária ou não – tem de haver resposta. Naturalmente que «responder» não é perseguir ou ser mal intencionado, mal educado, responder é por vezes nem estar ali, naquele lugar, à hora marcada, com o corpo, ou com a cabeça. Não podemos viver só para os outros, devemos viver com os outros, e essa relação deve ser paritária. Esta foi uma das muitas coisas que aprendi nos piqueniques da vida. Palpita-me que o Dalai Lama não ia gostar de me conhecer, mas por agora os meus amigos dos piqueniques bastam.
2 Comments:
Eu posso ser o teu Dalai Lama se quiseres!! :D
E depois, no meio de conversas sérias, faço de macaquinho e dou risadinhas à chinês! Perdão: tibetano (que eu não quero ferir susceptibilidades!)
Não fazia ideia de que o que eu disse te tinha deixado a pensar nisso. Mas ainda bem. É sinal de que sou uma gaja manipuladora e com poder! :p
Infelizmente não pudémos ir para o colombo. Mas vê as coisas pelo lado positivo: não destruímos a dieta nem a algibeira! Ficámos só menos felizes (como se isso fosse o menos importante!).
De qualquer modo, havemos de nos encontrar em "Cativeiro" num destes dias, no Colombo ou em outro lugar qualquer (de preferência sem sportinguistas, tá??:p), com lanche ou com piquenique, mas sempre com a certeza de que estamos ali porque queremmos, a falar das coisas que nos importam e que o Diabo esfrega as mãos de contente sempre que nos juntamos! :pp
PS - Temos de voltar à casa de chá para beber "O" chá! ;)
PS outra vez - És oficialmente lacraia desde ontem!!!! :D***
Amiga, desta última vez que estivemos juntas o número de malucos aumentou!!
Que se passará? É do que a gente come/bebe/respira?
Iremos acabar a dar passeios ao cemitério?
Para a próxima vamos ao chazinho, então!
Bjs.
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