A osmose
Hoje tornei-me, oficialmente, uma múmia. Não se assustem, ainda tomo banho e mudo de roupa – pelo menos enquanto tiver roupa para mudar e a lavandaria for barata. Só que trouxe comigo um bocadinho de um documento…numa lente de contacto. Ali estava uma linha pequena e quase invisível (mas muito incomodativa) de um documento do século XVIII ou XIX – não posso precisar – na minha lente de contacto esquerda.
Novembro é o mês decisivo na mumificação do arquivo: ali estão os mesmos padres, frades, freiras, estudiosos novos, velhos e mais ou menos do costume. Agora há umas variantes engraçadas, como a rapariga que põe auscultadores com microfone na cabeça e tem um pé torto (coitada…mas aquilo dá-lhe estilo de múmia), o alemão gordo que se veste todo de preto e tem ar de ir exterminar judeus (basta alguém se sentar na fila dele e lhe empurrar a cadeira), a chinesa que se veste sempre de cor-de-rosa (pronto, é sempre a mesma roupa, só muda as meias), o senhor que quando espirra quase rebenta com as paredes, e há sempre o «monsenhor», que até aqui eu percebia sempre «monsieur», mas depois de muitos textos em italiano lá entendi o que lhe chamavam. Tem sempre uma nova música na abertura dos programas do PC e nunca ninguém o ensinou a baixar o volume. Há também um inglês muito estranho (eles são todos mas este supera o mau gosto) careca e com um bigode farfalhudo e de anéis com brasão.
Tenho saudades de algumas múmias do ano passado, como o velho de Oxford que sabia sempre o que queria mas nunca estava disponível, ia e voltava constantemente.
O bom da investigação é a osmose. As pessoas ali tornam-se parte dos textos e os textos parte delas (daí trazer bocados deles nas lentes de contacto). Os investigadores dividem-se em grupos, alguns muito estranhos. Geralmente as pessoas agrupam-se pelo critério da nacionalidade, ou do interesse e há os solitários, como eu, que de vez em quando lá encontro um português ou uma portuguesa por aqui. As pessoas também se dividem pela hora de chegada. Há os pontuais, que parecem dormir à porta do arquivo, e com os quais me confundo por vezes, quando sou a 5ª ou 6ª pessoa a entrar (uma marca excelente para quem mora a 25 minutos dali e tem de passar por quinhentos turistas logo pela manhã) – saliento que as assinaturas são feitas pela hora de chegada, num caderno e a hora de entrada e saída marcadas, de manhã e de tarde. Há o grupo seguinte, que é vasto e entra entre as oito e meia e as nove da manhã. Há os que chegam sempre depois das dez, ainda confusos com o que vão pedir. E os que chegam em cima das onze ou até do meio-dia, descabelados e sem saber para onde se virar, mas querem pedir tudo de uma vez.
Os horários também têm a graça de às vezes as pessoas competirem para ver quem chega primeiro. Geralmente é o clero, por uma razão simples, vive ali, naquele território sossegado para além da porta Sant’Anna. Mas muitas vezes são outras pessoas, para quem o trabalho que aqui fazem deve ser a maior graça divina. Eu já fui duas vezes o número um a entrar – não é para todos. Mas também já cheguei cedíssimo e reparo que antes de mim já ali estão caídas múmias de todo o género, novas, velhas e assim-assim.
Há as faixas etárias, de que aqui já falei. E há também os que se vestem normalmente, os que se vestem muito bem, de preferência de fato, os clérigos, que trabalham incansavelmente, e os que nunca tomam banho, parecem trambolhos, mas se estão a borrifar, porque certamente os textos são mais importantes do que o olfacto das outras pessoas ou o «parecer mal».
A tarde é mais curiosa e sossegada para trabalhar. Geralmente os poucos que aqui estão são supreendidos por meia dúzia de pessoas que vêm das catacumbas, penso que de aulas, que olham para nós como se fosse o jardim zoológico, espreitam os nossos textos e desaparecem do mesmo modo que aparecem, tipo visita de estudo. Nunca percebi quem são. E há os homens das obras, que por aqui passeiam de tarde e não ligam nenhuma ao contexto, querem é usar o berbequim e mudar as tomadas.
Para a maior parte das pessoas que aqui investiga os textos são uma fonte de informação muito rica e intensa e ganha-se uma certa afeição por eles. Quando me despeço de uma caixa difícil, daquelas com imensos textos para ler complicados e extensos, sinto alívio, mas também pena de ver partir a caixa das minhas mãos para outras mãos. Gostaria sempre de ter feito melhor – sinto sempre que poderia ter feito melhor, mas o pouco tempo que aqui estou impera uma certa velocidade que não se compadece com a exactidão científica.
O arquivo tem estudiosos excelentes, isso eu sei. Não sei se são pessoas excelentes, mas geralmente avalio pela forma como falam com as outras pessoas, empregados inclusive, como são enquanto pessoas. E também pelas respostas que têm. Por exemplo há uma alemã – daquelas que tem tanto cara de alemã, que não passa por mais nada – que é muito simpática. Parece ter uma familiaridade extraordinária com todos os empregados e fala um italiano perfeito. Trabalha imenso, é disciplinada, o ano passado nem a via levantar-se. Há outra rapariga, que penso que seja italiana, que faz um bom dia estrondoso e troca larachas com os empregados. Temos os mais discretos – como eu, que sou basicamente muda (mas há mais mudos por ali). Temos as tias, que querem fotocópias de tudo para não sujar as mãos e estragar as unhas.
O comum de todos os estudos, tratados, teses é o mesmo: igreja, clero e alguma podridão na maior parte dos documentos. Os documentos reflectem o país. Portugal vem sempre em caixas sujas, todas sebentas, rotas, com documentos rasgados e húmidos. As caixas da Alemanha (Germânia) vêm sempre limpas, bem fechadas e os textos batidos à máquina (depende dos fundos, claro, e quanto mais actuais mais bem tratados estão).
Há quem trate os textos por «tu», sem medo nem temores. Mas há outros, como eu, que criaram ligações aos textos de aprendizagem tal que é como se os textos falassem e me dissessem «boa! Aprendeste a ler isto!». Agora os textos estão do meu lado, os bispos, os núncios, os arcebispos e todos os missionários. Tenho sempre receio dos textos italianos com letras complicadas, mas a pouco e pouco vou-me afeiçoando a eles. Há outros que criam ligação ao seu próprio trabalho e vêm os textos como mensageiros do que pretendem.
O Arquivo é especial. É um sítio onde as pessoas não convivem senão com lixo, a interacção é só entre os empregados (e pouco com eles), a solidão é uma constante e vê-se na cara das pessoas quando estão sozinhas a fazer um trabalho. As pessoas que arrumam os documentos circulam no café com botas e fatos especiais como se tivessem vindo num ovni – tudo com um ar de normalidade que espanta; os estudiosos (como eles chamam) mexem nos documentos podres como se fossem livros de BD, com familiaridade e determinação. Ali estamos a fazer um trabalho «muito original», que tantos almejam, mas poucos entendem «para que é que serve» e «o que é que dá no futuro». Aliás, o ponto comum entre os historiadores todos é o mesmo: olham para o passado. Aquele é um trabalho para dar futuro ao passado.
Todas as pessoas deviam entrar no Arquivo pelo menos uma vez na vida. Não acho assim tão importante visitar Roma ou vir ao Vaticano, mas entrar na porta Sant’Anna, mostrar três vezes a autorização para entrar (a «tessera»), ver os guardas suíços vestidos à patetas (e ver os homens jovens e sorridentes dentro dos fatos), entrar no arquivo e ver aquelas pessoas todas a dar uma de «O Nome da Rosa» é experiência única…aconselho a levar Brise com insecticida e cheirinho bom.
Hoje tornei-me, oficialmente, uma múmia. Não se assustem, ainda tomo banho e mudo de roupa – pelo menos enquanto tiver roupa para mudar e a lavandaria for barata. Só que trouxe comigo um bocadinho de um documento…numa lente de contacto. Ali estava uma linha pequena e quase invisível (mas muito incomodativa) de um documento do século XVIII ou XIX – não posso precisar – na minha lente de contacto esquerda.
Novembro é o mês decisivo na mumificação do arquivo: ali estão os mesmos padres, frades, freiras, estudiosos novos, velhos e mais ou menos do costume. Agora há umas variantes engraçadas, como a rapariga que põe auscultadores com microfone na cabeça e tem um pé torto (coitada…mas aquilo dá-lhe estilo de múmia), o alemão gordo que se veste todo de preto e tem ar de ir exterminar judeus (basta alguém se sentar na fila dele e lhe empurrar a cadeira), a chinesa que se veste sempre de cor-de-rosa (pronto, é sempre a mesma roupa, só muda as meias), o senhor que quando espirra quase rebenta com as paredes, e há sempre o «monsenhor», que até aqui eu percebia sempre «monsieur», mas depois de muitos textos em italiano lá entendi o que lhe chamavam. Tem sempre uma nova música na abertura dos programas do PC e nunca ninguém o ensinou a baixar o volume. Há também um inglês muito estranho (eles são todos mas este supera o mau gosto) careca e com um bigode farfalhudo e de anéis com brasão.
Tenho saudades de algumas múmias do ano passado, como o velho de Oxford que sabia sempre o que queria mas nunca estava disponível, ia e voltava constantemente.
O bom da investigação é a osmose. As pessoas ali tornam-se parte dos textos e os textos parte delas (daí trazer bocados deles nas lentes de contacto). Os investigadores dividem-se em grupos, alguns muito estranhos. Geralmente as pessoas agrupam-se pelo critério da nacionalidade, ou do interesse e há os solitários, como eu, que de vez em quando lá encontro um português ou uma portuguesa por aqui. As pessoas também se dividem pela hora de chegada. Há os pontuais, que parecem dormir à porta do arquivo, e com os quais me confundo por vezes, quando sou a 5ª ou 6ª pessoa a entrar (uma marca excelente para quem mora a 25 minutos dali e tem de passar por quinhentos turistas logo pela manhã) – saliento que as assinaturas são feitas pela hora de chegada, num caderno e a hora de entrada e saída marcadas, de manhã e de tarde. Há o grupo seguinte, que é vasto e entra entre as oito e meia e as nove da manhã. Há os que chegam sempre depois das dez, ainda confusos com o que vão pedir. E os que chegam em cima das onze ou até do meio-dia, descabelados e sem saber para onde se virar, mas querem pedir tudo de uma vez.
Os horários também têm a graça de às vezes as pessoas competirem para ver quem chega primeiro. Geralmente é o clero, por uma razão simples, vive ali, naquele território sossegado para além da porta Sant’Anna. Mas muitas vezes são outras pessoas, para quem o trabalho que aqui fazem deve ser a maior graça divina. Eu já fui duas vezes o número um a entrar – não é para todos. Mas também já cheguei cedíssimo e reparo que antes de mim já ali estão caídas múmias de todo o género, novas, velhas e assim-assim.
Há as faixas etárias, de que aqui já falei. E há também os que se vestem normalmente, os que se vestem muito bem, de preferência de fato, os clérigos, que trabalham incansavelmente, e os que nunca tomam banho, parecem trambolhos, mas se estão a borrifar, porque certamente os textos são mais importantes do que o olfacto das outras pessoas ou o «parecer mal».
A tarde é mais curiosa e sossegada para trabalhar. Geralmente os poucos que aqui estão são supreendidos por meia dúzia de pessoas que vêm das catacumbas, penso que de aulas, que olham para nós como se fosse o jardim zoológico, espreitam os nossos textos e desaparecem do mesmo modo que aparecem, tipo visita de estudo. Nunca percebi quem são. E há os homens das obras, que por aqui passeiam de tarde e não ligam nenhuma ao contexto, querem é usar o berbequim e mudar as tomadas.
Para a maior parte das pessoas que aqui investiga os textos são uma fonte de informação muito rica e intensa e ganha-se uma certa afeição por eles. Quando me despeço de uma caixa difícil, daquelas com imensos textos para ler complicados e extensos, sinto alívio, mas também pena de ver partir a caixa das minhas mãos para outras mãos. Gostaria sempre de ter feito melhor – sinto sempre que poderia ter feito melhor, mas o pouco tempo que aqui estou impera uma certa velocidade que não se compadece com a exactidão científica.
O arquivo tem estudiosos excelentes, isso eu sei. Não sei se são pessoas excelentes, mas geralmente avalio pela forma como falam com as outras pessoas, empregados inclusive, como são enquanto pessoas. E também pelas respostas que têm. Por exemplo há uma alemã – daquelas que tem tanto cara de alemã, que não passa por mais nada – que é muito simpática. Parece ter uma familiaridade extraordinária com todos os empregados e fala um italiano perfeito. Trabalha imenso, é disciplinada, o ano passado nem a via levantar-se. Há outra rapariga, que penso que seja italiana, que faz um bom dia estrondoso e troca larachas com os empregados. Temos os mais discretos – como eu, que sou basicamente muda (mas há mais mudos por ali). Temos as tias, que querem fotocópias de tudo para não sujar as mãos e estragar as unhas.
O comum de todos os estudos, tratados, teses é o mesmo: igreja, clero e alguma podridão na maior parte dos documentos. Os documentos reflectem o país. Portugal vem sempre em caixas sujas, todas sebentas, rotas, com documentos rasgados e húmidos. As caixas da Alemanha (Germânia) vêm sempre limpas, bem fechadas e os textos batidos à máquina (depende dos fundos, claro, e quanto mais actuais mais bem tratados estão).
Há quem trate os textos por «tu», sem medo nem temores. Mas há outros, como eu, que criaram ligações aos textos de aprendizagem tal que é como se os textos falassem e me dissessem «boa! Aprendeste a ler isto!». Agora os textos estão do meu lado, os bispos, os núncios, os arcebispos e todos os missionários. Tenho sempre receio dos textos italianos com letras complicadas, mas a pouco e pouco vou-me afeiçoando a eles. Há outros que criam ligação ao seu próprio trabalho e vêm os textos como mensageiros do que pretendem.
O Arquivo é especial. É um sítio onde as pessoas não convivem senão com lixo, a interacção é só entre os empregados (e pouco com eles), a solidão é uma constante e vê-se na cara das pessoas quando estão sozinhas a fazer um trabalho. As pessoas que arrumam os documentos circulam no café com botas e fatos especiais como se tivessem vindo num ovni – tudo com um ar de normalidade que espanta; os estudiosos (como eles chamam) mexem nos documentos podres como se fossem livros de BD, com familiaridade e determinação. Ali estamos a fazer um trabalho «muito original», que tantos almejam, mas poucos entendem «para que é que serve» e «o que é que dá no futuro». Aliás, o ponto comum entre os historiadores todos é o mesmo: olham para o passado. Aquele é um trabalho para dar futuro ao passado.
Todas as pessoas deviam entrar no Arquivo pelo menos uma vez na vida. Não acho assim tão importante visitar Roma ou vir ao Vaticano, mas entrar na porta Sant’Anna, mostrar três vezes a autorização para entrar (a «tessera»), ver os guardas suíços vestidos à patetas (e ver os homens jovens e sorridentes dentro dos fatos), entrar no arquivo e ver aquelas pessoas todas a dar uma de «O Nome da Rosa» é experiência única…aconselho a levar Brise com insecticida e cheirinho bom.
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