À Prova de Morte
Gostei muito deste novo filme de Tarantino, chamado «À Prova de Morte». Não fui grande apreciadora dos «Cães Danados», mas o «Pulp Fiction» ficou-me marcado pela originalidade, a violência da linguagem e das cenas, a forma crua como é tratada a morte, as cenas «cosidas» umas às outras com inteligência e sabedoria, e as interpretações fantásticas de John Travolta e Samuel L. Jackson. Vi há muitos anos e algumas pessoas saíram do cinema logo nos primeiros minutos – parecia um filme desconexo, chato, absurdo até. Mas é brilhante na forma como cruza tantas vidas nos mesmos espaços, no mesmo tempo, como uma dança predestinada a resultar.
Depois apareceu a parceria com Robert Rodriguez, que ainda refinou mais Tarantino, como em «Aberto até de Madrugada». Mais uma vez ninguém suspeitava que fosse uma história de vampiros, uma história azeda cujo único encanto está na figura do ladrão «politicamente correcto» interpretado por George Clooney. Aparece Tarantino, irmão de Clooney, que além de maluco é torpe e patético, perseguido por vozes e uma vontade insaciável de violar e matar. Maravilhosa a cena em que Clooney manda o irmão colocar o aparelho nos dentes depois de raptar uma família para passar a fronteira para o México. De resto, e como sempre, vale tudo: incendiar pessoas, matar de todas as formas mais cruéis e deixar que os inocentes se tornem agressores da pior espécie, provando, como sempre, que a natureza humana é imprevisível.
Depois apareceu os filmes do Kill Bill e aí caí mesmo de amores pelo Tarantino. Porque no cinema as mulheres têm sempre aqueles papéis tipo, de bonitas e burras, ou inteligentes mas vítimas, de desgraçadas, e isso só começou a mudar com o filme «Thelma e Louise», que une as mulheres numa parceria anti-abuso contra aquilo que são, contra a sua natureza fenomenal de lutadoras. Tarantino recuperou isso magistralmente, tirando as mulheres da margem e colocando-as não só em primeiro plano, como em dilemas que normalmente cabem aos homens. Kill Bill é uma história de vingança, de uma mulher contra um homem, mas também contra todos os agressores que rodeiam esse homem, sejam eles homens ou mulheres. Por isso as melhores cenas são as de lutas entre mulheres, pela supremacia que representam, pela conquista. Tarantino não deixa, no entanto, de descer às profundezas da mulher-menina, quando coloca a Black Mamba (interpretada por Uma Thurman) no papel de mãe, o que domina completamente toda a sua vida. Porque há uma mudança em Black Mamba que não esqueço, que é quando ela vê o teste de gravidez e diz ao inimigo (outra mulher, que excepcionalmente se compadece dela) «agora não estou sozinha, a responsabilidade é outra». A maternidade faz dela uma mulher com alma, amaciando a ferocidade das suas conquistas; em vez de uma exterminoadora de vidas, é uma criadora de vida, e isso dá-lhe perspectiva. O final em Kill Bill II prova que a vida não é só vingança, mas uma busca eterna da felicidade, que afinal estava ali, bem viva.
Finalmente o «À prova de Morte», e certamente que neste post estarei a reduzir a filmografia de Tarantino aos mínimos do que conheço. Aí a mulher também toma o lugar de vítima, mas reclama o de agressora só para si, numa conquista fundamental do «girls power». O filme tem praticamente duas partes, e a segunda vem a preto e branco, ou pelo menos uma fatia. O agressor-homem, desmesurado na sua brutalidade, na invasão das mulheres e do seu mundo, fotógrafo do alheio: homem porco, paradigma do pior que o masculino pode ter em mentira, falsidade e vontade de aniquilar a fêmea num exercício cru de poder sobre o outro, o mais fraco, o diferente é a personagem masculina principal, muito bem interpretada por Kurt Russel, uma escolha feliz para o papel (quem diria que na vida real ele se mostra sempre simpático e bem disposto, foi vê-lo chorar baba e ranho no programa da Oprah no dia do pai, quando os filhos lhe fizeram justa homenagem). Personagem solta e sem contexto específico, um mau só-porque-sim. História clássica do atacante que vigia a sua presa ao milímetro para a destruir sem dó nem piedade, com um carro potente, um carro que ele mesmo classifica ser à prova de morte. O carro que é o motor das agressões é também o fim da personagem. Lembremos também que o carro é o instrumento masculino de eleição, a grande metáfora do poder do homem é a velocidade, o grande elemento da conquista masculina é um automóvel potente.
Dois grupos de raparigas. O primeiro fica desfeito e o segundo inteiro, e nisto Tarantino é mestre em dar lições, tal como o segundo grupo de raparigas, Tarantino não se fica e dá na cabeça do agressor até ele ficar desfeito (tal como em Kill Bill). Não há a rapariga misericordiosa, boazinha, pacóvia. Quando as duas raparigas mais atrevidas querem fazer o jogo do mastro no carro, a terceira reclama o seu lugar, mas a resposta é «tu és mãe, não vais querer arriscar». A tipa não se fica «há sempre uma boa desculpa para eu não participar nos vossos jogos, deixem-me entrar». Boa onda a tipa, assim é que é. Eu cá não ia gostar da brincadeira do mastro, sou muito responsável, mas gostei delas todas. Estiveram bem em querer perseguir o assassino até ao limite das suas próprias forças, dando cabo da força dele, retirando-lhe poder, desmitificando que as mulheres são fracas ou medrosas, ou num estereóptipo maior, esvaziando o masculino com um poder tradicionalmente atribuído ao masculino. Vivam as gajas!
O que mais contribui para eu me ter tornado uma fã incondicional de Tarantino é ainda as suas técnicas cinematográficas, aliadas a boas ideias postas em prática. Parece ter uma daquelas cabeças que acumulam tudo e depois organizam em etapas, ficando uma mescla curiosa, no mínimo. Kill Bill já tinha sido feito com mestria inigualável, cruzando uma boa banda sonora com efeitos especiais. Mas os filmes de Tarantino têm uma surpresa que me deixa sempe boquiaberta: a intertextualidade. Uma personagem comum, um actor comum no mesmo episódio (que só se dá conta quando se vê a maquilhagem nos extras) ou em episódios diferentes, ou simplesmente uma música (o toque de telemóvel de uma das raparigas em À Prova de Morte é igual a uma das músicas de Kill Bill), Tarantino brinca com ele próprio, registando um lugar único na filmografia americana. Depois vai buscar centenas de referências da cabeça dele, dos anos 60 e 70, fotografias velhas, BDs, imagens, corta cenas e suja-as de propósito, como se de velhos documentários se tratassem. As histórias acabam por ser intemporais. Aparentam uma actualidade impressionante nos efeitos especiais mas contam histórias antigas, mitos intemporais e até clássicos do cinema de acção. São filmes e histórias à prova de morte, graças a Tarantino.
Gostei muito deste novo filme de Tarantino, chamado «À Prova de Morte». Não fui grande apreciadora dos «Cães Danados», mas o «Pulp Fiction» ficou-me marcado pela originalidade, a violência da linguagem e das cenas, a forma crua como é tratada a morte, as cenas «cosidas» umas às outras com inteligência e sabedoria, e as interpretações fantásticas de John Travolta e Samuel L. Jackson. Vi há muitos anos e algumas pessoas saíram do cinema logo nos primeiros minutos – parecia um filme desconexo, chato, absurdo até. Mas é brilhante na forma como cruza tantas vidas nos mesmos espaços, no mesmo tempo, como uma dança predestinada a resultar.
Depois apareceu a parceria com Robert Rodriguez, que ainda refinou mais Tarantino, como em «Aberto até de Madrugada». Mais uma vez ninguém suspeitava que fosse uma história de vampiros, uma história azeda cujo único encanto está na figura do ladrão «politicamente correcto» interpretado por George Clooney. Aparece Tarantino, irmão de Clooney, que além de maluco é torpe e patético, perseguido por vozes e uma vontade insaciável de violar e matar. Maravilhosa a cena em que Clooney manda o irmão colocar o aparelho nos dentes depois de raptar uma família para passar a fronteira para o México. De resto, e como sempre, vale tudo: incendiar pessoas, matar de todas as formas mais cruéis e deixar que os inocentes se tornem agressores da pior espécie, provando, como sempre, que a natureza humana é imprevisível.
Depois apareceu os filmes do Kill Bill e aí caí mesmo de amores pelo Tarantino. Porque no cinema as mulheres têm sempre aqueles papéis tipo, de bonitas e burras, ou inteligentes mas vítimas, de desgraçadas, e isso só começou a mudar com o filme «Thelma e Louise», que une as mulheres numa parceria anti-abuso contra aquilo que são, contra a sua natureza fenomenal de lutadoras. Tarantino recuperou isso magistralmente, tirando as mulheres da margem e colocando-as não só em primeiro plano, como em dilemas que normalmente cabem aos homens. Kill Bill é uma história de vingança, de uma mulher contra um homem, mas também contra todos os agressores que rodeiam esse homem, sejam eles homens ou mulheres. Por isso as melhores cenas são as de lutas entre mulheres, pela supremacia que representam, pela conquista. Tarantino não deixa, no entanto, de descer às profundezas da mulher-menina, quando coloca a Black Mamba (interpretada por Uma Thurman) no papel de mãe, o que domina completamente toda a sua vida. Porque há uma mudança em Black Mamba que não esqueço, que é quando ela vê o teste de gravidez e diz ao inimigo (outra mulher, que excepcionalmente se compadece dela) «agora não estou sozinha, a responsabilidade é outra». A maternidade faz dela uma mulher com alma, amaciando a ferocidade das suas conquistas; em vez de uma exterminoadora de vidas, é uma criadora de vida, e isso dá-lhe perspectiva. O final em Kill Bill II prova que a vida não é só vingança, mas uma busca eterna da felicidade, que afinal estava ali, bem viva.
Finalmente o «À prova de Morte», e certamente que neste post estarei a reduzir a filmografia de Tarantino aos mínimos do que conheço. Aí a mulher também toma o lugar de vítima, mas reclama o de agressora só para si, numa conquista fundamental do «girls power». O filme tem praticamente duas partes, e a segunda vem a preto e branco, ou pelo menos uma fatia. O agressor-homem, desmesurado na sua brutalidade, na invasão das mulheres e do seu mundo, fotógrafo do alheio: homem porco, paradigma do pior que o masculino pode ter em mentira, falsidade e vontade de aniquilar a fêmea num exercício cru de poder sobre o outro, o mais fraco, o diferente é a personagem masculina principal, muito bem interpretada por Kurt Russel, uma escolha feliz para o papel (quem diria que na vida real ele se mostra sempre simpático e bem disposto, foi vê-lo chorar baba e ranho no programa da Oprah no dia do pai, quando os filhos lhe fizeram justa homenagem). Personagem solta e sem contexto específico, um mau só-porque-sim. História clássica do atacante que vigia a sua presa ao milímetro para a destruir sem dó nem piedade, com um carro potente, um carro que ele mesmo classifica ser à prova de morte. O carro que é o motor das agressões é também o fim da personagem. Lembremos também que o carro é o instrumento masculino de eleição, a grande metáfora do poder do homem é a velocidade, o grande elemento da conquista masculina é um automóvel potente.
Dois grupos de raparigas. O primeiro fica desfeito e o segundo inteiro, e nisto Tarantino é mestre em dar lições, tal como o segundo grupo de raparigas, Tarantino não se fica e dá na cabeça do agressor até ele ficar desfeito (tal como em Kill Bill). Não há a rapariga misericordiosa, boazinha, pacóvia. Quando as duas raparigas mais atrevidas querem fazer o jogo do mastro no carro, a terceira reclama o seu lugar, mas a resposta é «tu és mãe, não vais querer arriscar». A tipa não se fica «há sempre uma boa desculpa para eu não participar nos vossos jogos, deixem-me entrar». Boa onda a tipa, assim é que é. Eu cá não ia gostar da brincadeira do mastro, sou muito responsável, mas gostei delas todas. Estiveram bem em querer perseguir o assassino até ao limite das suas próprias forças, dando cabo da força dele, retirando-lhe poder, desmitificando que as mulheres são fracas ou medrosas, ou num estereóptipo maior, esvaziando o masculino com um poder tradicionalmente atribuído ao masculino. Vivam as gajas!
O que mais contribui para eu me ter tornado uma fã incondicional de Tarantino é ainda as suas técnicas cinematográficas, aliadas a boas ideias postas em prática. Parece ter uma daquelas cabeças que acumulam tudo e depois organizam em etapas, ficando uma mescla curiosa, no mínimo. Kill Bill já tinha sido feito com mestria inigualável, cruzando uma boa banda sonora com efeitos especiais. Mas os filmes de Tarantino têm uma surpresa que me deixa sempe boquiaberta: a intertextualidade. Uma personagem comum, um actor comum no mesmo episódio (que só se dá conta quando se vê a maquilhagem nos extras) ou em episódios diferentes, ou simplesmente uma música (o toque de telemóvel de uma das raparigas em À Prova de Morte é igual a uma das músicas de Kill Bill), Tarantino brinca com ele próprio, registando um lugar único na filmografia americana. Depois vai buscar centenas de referências da cabeça dele, dos anos 60 e 70, fotografias velhas, BDs, imagens, corta cenas e suja-as de propósito, como se de velhos documentários se tratassem. As histórias acabam por ser intemporais. Aparentam uma actualidade impressionante nos efeitos especiais mas contam histórias antigas, mitos intemporais e até clássicos do cinema de acção. São filmes e histórias à prova de morte, graças a Tarantino.
4 Comments:
Excedeste-te! Magistralmente bem escrito, o texto, e muito bem analisado! Até parece que és da área de Letras!!! ;) Mas totalmente de acordo com o teu ponto de vista. O Tarantino consegue ver o que há para além do óbvio no universo feminino: uma força imensa, tão ou mais cruel que a masculina!
Ahahaha..parece mm q sou de letras, sim! Então não tinhas pedido postes novos? Aí está, inspirei-me nas nossas conversas.
Ora aí está uma coisa que eu gostava de ser (até certo ponto) - à prova de morte.
Às vezes acho que tb não sou à prova de vida. Mas, felizmente, é só às vezes.
Não vi o filme, mas vivo a minha vida todos os dias. A minha e a de muitas pessoas que se cruzam comigo. Daí não ser estranho para mim a compreensão do que escreveste.
Porque é preciso ser-se muito forte para se ser mulher. Se calhar deveria dizer que é preciso ser-se muito mulher para se ser muito forte.
Eu ainda sou do tempo das Spice Girls apregoarem o girl power (se bem que na altura não me dizia grande coisa). E sempre ouvi dizer que, em tempo de aflição, o gajedo une-se sempre.
Presumo que a nossa força seja maior pelo modo como enfrentamos o mundo (como mulheres temos sempre de enfrentar alguma coisa: estafermos, homens das obras, violência, discriminação, etc).
Não é à toa que tu sonhas com anjos guerreiros.
Não é à toa que eu gostava da Guerreira das Estrelas.
Não é à toa que somos mulheres.
Patrícia, escreves demasiado bem! Sai do meu blogue, isso é competição, sabes bem o quanto a competição entre fémeas pode ser lixada!
Xô!
(brincadeira, ok?)
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