Tuesday, November 13, 2007

Um ateu em Roma

Roma tem diversos atractivos fantásticos, mas como toda a gente sabe, a igreja, o Vaticano e o clero são um dos conjuntos principais que atraem turistas. Estão imersos neste caos a que chamamos Roma. Não é difícil ser um turista ateu - se assim não fosse, que fariam cá os japoneses? Estou certa que vêem por curiosidade, não por serem religiosos. Mas muitos dos turistas que aqui são despejados (sim, porque aqui os turistas parecem gado) são católicos e vêm papar missas, hóstias, fotografar igrejas e comprar terços, lenços e calendários com a cara do Papa. Não ser católico em Roma deve ser uma heresia brutal, uma coisa absurda mesmo.
Hoje fiz a experiência derradeira da minha existência mundana: fui à igreja aqui em Roma, à missa. Em português de Portugal, afinal ali estão os conterrâneos a cantar português, e quando uma pessoa está algum tempo fora do seu país gosta de ouvir. Naturalmente que os portugueses que lá estavam eram católicos. Muito mesmo. Isto se eu puder classificar como católico a pessoa que sabe a missa de cor. As acções cada um guarda na consciência.
Mais uma vez cheguei à conclusão que, embora não valha a pena tentar convencer a minha avó, eu não acredito em Deus, nem na igreja, nem tenho fé. Só que dantes eu suspirava «ufa, ainda bem!», hoje em dia não sei se suspiro. Embora uma missa me pareça muitas vezes uma experiência de histeria colectiva, uma espécie de bola de neve que nunca estancou desde que Jesus Cristo andou por cá, acho que aquelas pessoas encontraram qualquer coisa que eu não encontrei e que está vedado por falta de fé. Eu bloqueei. E ninguém teve a culpa. Não é por ser ateia que sou menos responsável ou tenho menos moral do que os outros, todavia eu e só eu sou responsável pela minha moral. E esse é um peso muito grande, embora as pessoas vivam a vida sem pensar muito nisso. Todos temos uma filosofia de vida, seja ela qual for.
Apesar de a missa por si não me dizer muito, sinto-me peixe fora de água, desta missa a que fui eu gostei muito, não sei se por ser em português e junto de portugueses (certamente ajudou), se pela música, se pela igreja, se pela homilia do Cardeal Patriarca, de que francamente gostei, porque ele referiu imensos assuntos que me são caros. Para além de puxar pela comunidade portuguesa, e referir a perseguição à religião católica (que hoje em dia me parece muito pouco provável), mas sobretudo referindo-se à tentação de largar a igreja católica por outra melhor ou por nada (por isso até referiu o meu caso, dizendo «alguns até são ateus»), referiu que as sondagens apontavam para que uma percentagem muito elevada de católicos já tenham deixado de acreditar na vida para além da morte e na ressurreição. E curiosamente o meu ponto de viragem está aí, e talvez por isso esta homilia em especial me tenha dito tanto. É porque muito lentamente e por questões bem diferentes das católicas, eu voltei a acreditar que a comunicação com o lado de lá é possível (mais na linha Kardec no que na linha Cristiana), o que significa que parte da minha fé se restaurou. Não como se restaura um dente, e por isso estou certa de que demorá muito, ainda, a ter uma resposta acerca daquilo em que acredito. Só que entre a fé cristã e a fé que tenho na existência não corpórea da minha mãe deve haver semelhanças no processo de acreditar. Porque a mim os bispos, os padres, as freiras e todos os outros católicos, pelo menos os de hoje, me pareciam cheios de terem encontrado um sentido para a vida. Um sentido que eu não tenho e procuro. Pelo menos eu prefiro pensar isso do que pensar que todos estariam ali a adular o poder hierárquico da igreja – alguns certamente que sim, como em todos os grupos.
Numa vida tão atribulada, fútil, superficial, em que tudo parece estar à mão, mas cada vez que olhamos a felicidade está distante da nossa vida e estamos cada vez mais distantes do que somos, do que um dia quisemos na vida, talvez faça sentido o que o Cardeal disse: é um teste à nossa fé enquanto seres humanos continuar a acreditar seja no que for, na vida, em nós, em Deus, na Bíblia, na reencarnação. Não será mesmo mais fácil deixar de acreditar? Para mim não foi fácil. Devo ter deixado de acreditar em Deus aos dezasseis anos. Era muito nova e comecei a ler filosofia e a achar que acreditar em Deus era uma fraqueza tremenda, parecia que tinha de existir um fio explicativo ao qual estávamos presos e sem ele, quais marionetas, íamo-nos abaixo. Os filósofos provavam que havia outras explicações possíveis para explicar o que é o ser humano e qual é o sentido da vida. Depois apareceu o óbvio questionamento, que certamente muitos católicos farão também, das contrariedades entre o que a igreja prega e o que faz. Mas talvez isso não tenha muito a ver com Deus. Esse foi um passo mais fácil de dar, desvincular Deus da igreja que o prega. Só que eu não acredito nem num, nem noutro.
A mensagem principal do cristianismo é positiva: amor, perdão, fé são palavras boas, que respeitam o próximo naquilo que ele é, na sua essência humana. O problema é mesmo esse: como respeitar se não nos sentirmos respeitados? Dar a oura face torna-se extremamente complicado, e como acho que os católicos não são estúpidos, certamente saberão ludibriar essa questão melhor do que eu. Devem aceitar melhor que eu que existem pessoas más, desagradáveis, estúpidas, mal intencionadas, que nos odeiam e a qualquer momento nos tentam exterminar. As palavras são cruas como a minha vida, que também tem sido crua. E dessas pessoas eu ouvi sempre que eu me sentia assim porque queria, como se a normalidade passasse por eu me afeiçoar ao que não quero dentro de mim, em vez de o expulsar com rapidez e eficácia. Com muita honestidade eu assumo que sou incapaz de perdoar tudo o que me fazem, mesmo reconhecendo o que nisso há de mau, que é ruminar os actos dos meus malfeitores, em vez de os ignorar. Certamente que os católicos são pessoas como as outras: também amam, odeiam e acham que há pessoas insuportáveis. Mas têm a explicação que eu não tenho: Deus fez todos os seres com defeitos, temos de perdoar e aceitar a diferença. Ter a explicação nem sempre é conseguir atingir o patamar da lucidez. Por isso estou certa também que nem todos os católicos serão bons a perdoar ou a dar a outra face.
Na vida, parece que estou sempre a ser posta perante a mesma situação: terei mesmo de me adaptar ao que não quero? Parece que de repente a vida se tornou num campo de concentração, em que os judeus tinham de se adaptar ao frio, à fome e à morte; assim eu tenho de me adaptar à ofensa gratuita. Todavia, a maior parte das pessoas tem sempre uma boa desculpa para dizer o que quer e fazer o que quer: a velhice, a doença, a falta de cabeça, o mau feitio ou simplesmente o facto de ser de família parece contemplar as pessoas de um halo de santidade que lhes permite ser desbocadas, cruéis, insensatas, tudo com a desculpa «não foi por mal» - ou como já ouvi, «estavas a merecer». Dar estalos aos outros parece dar às pessoas uma certa alegria, um certo poder sobre o outro. Como lida um católico com isto? Um ateu descalça bem a bota: desvia-se do caminho destas pessoas, ignora-as, passa à frente. Mas um católico tem uma missão muito mais espinhosa: tem de perdoar. Cada vez mais acho que o Cardeal tinha razão na sua homilia, num mundo em que somos tentados a achar os outros monstros, teremos capacidade para os incluir nas nossas vidas como seres «iguais», permanecer na nossa fé e realmente acreditar que esta vida é uma passagem e que seremos reduzidos a «nada»? Ele citou uma frase de alguém não identificado: a vida é bonita, a morte é simples, a transição de uma para a outra é que é complicada.

Perguntas pertinentes que uma pessoa às vezes faz em Roma

Porque é que…

A probabilidade de encontrarmos um romano é cada vez mais reduzida à medida que nos aproximamos da área do Vaticano?

Os japoneses adoram isto, mas andam de máscara? Valia mais irem para outro sítio mais limpinho.

Um turista nunca anda sozinho, tem mais cinquenta a duzentos turistas atrás, à frente e ao lado dele?

Os espanhóis e os alemães se embebedam e cantam seja lá onde for?

Só consigo encontrar portugueses a discutirem e a comprarem rosários com cachecóis do Sporting?

O clero aqui se comporta de forma tão animalesca quanto as outras pessoas todas?

As freiras fotografam o Vaticano mais ainda do que os japoneses?

Às oito da matina de qualquer dia semanal há magotes de gente a sair de camionetas turísticas, com crianças, velhos, anormais e deficientes?

As turistas japonesas usam saltos sejam onde for (até em ruínas)?

Há motas e bicicletas a virem em sentido contrário nas ruas?

As probabilidades de encontrar um turista ou um vendedor de malas é igual à de apanhar com uma cagadela de pássaro no casaco (o meu casaco fala por si)?

O elitismo

No outro dia percebi porque me incomoda tanto o trabalho que faço, melhor, o lugar que ocupo. Porque é elitista e eu, por princípio, não sou elitista. Acho que se as pessoas têm qualidades e são inteligentes, podem e devem fazer o que gostam. Mas da palavra à acção, eu ouvi muitas vezes «eu queria fazer isto ou aquilo, mas não tive possibilidade». E depois vem o rol das impossibilidades: falta de dinheiro, saúde, oportunidade, azar na vida, ou filhos, família, etc. Depende do que pomos em primeiro lugar, daquilo em que investimos, da força de vontade, mas depende, e muito, da sorte. Mesmo. E eu pelos vistos tive sorte, depois de muitos azares, mas tive sorte em fazer o que meia dúzia faz (é mais de meia dúzia, cinquenta múmias logo pela manhã). Com o tempo passa a ser rotineiro, normal, até mesmo ver gente mais jovem do que eu. Esse também é outro dos argumentos que mais me ludibria, uma pessoa ser demasiado jovem ou demasiado velha para fazer alguma coisa. Por tradição, documentos velhos é para gente velha. A imagem do historiador de barbas que enlouquece à procura de segredos nos documentos parece ser um dos estereótipos preferidos até dos mais velhos, ali no arquivo. As pessoas mais jovens, ali, são mais descomplexadas. A maior parte está em doutoramento, portanto a investir na carreira universitária, no seu país ou noutro.
Todavia, o elitismo consegue ser horrível, tanto em Porugal como em Itália, e não favorece um país, culturalmente, porque desaproveita uma série de cabeças pensantes que se dirige para outras áreas completamente diferentes. Só aqui em Roma conheci diversas pessoas formadas em História que não exerce nada que se pareça com História. Em Portugal, nem falo dos inúmeros casos de pessoas acumuladas em prateleiras à espera que o seu curso lhes renda alguma coisa. Acredito que muitas pessoas trocariam o que ganham por menos para poderem exercer o que realmente gostam. Eu acho secante o que faço, mas também vejo muitas compensações que não são monetárias: viagens, alguma liberdade de horário, trabalhar sozinha. Por isso, não me importava de continuar, desde que viajasse, já que o trabalho na universidade é repetitivo e intragável.
O elitismo é a noção de que alguma coisa é para poucos, uns quantos privilegiados que conseguiram alcançar «aquele patamar». Parece pôr de parte uma certa luta, uma certa garra, uma certa sanidade que nos coloca à procura de subir de degrau na escala dos conhecimentos. Se não pertencermos a essa elite, temos poucas chances de sobreviver. Pode ser uma elite de dinheiro, uma elite de poder, uma elite de conhecimento. Sem um attachement qualquer a uma delas, ficamos desasados.
Eu acho que não pertenço a nenhuma elite, todavia estou inserida nesta, portanto acabo por fazer parte de uma, ou dar essa ideia ao exterior. Como muitos outros sítios que habitamos, este é uma oligarquia: quem manda nele, senão o poder (político, religioso)? Quando esse pensamento me ocorre, não me agrada mesmo nada. Não sei como cada uma das pessoas chegou a «investigador», mas há certamente um processo complicado, e como há ali muitos estrangeiros, deve variar consoante cada país. Uns estarão ali com bolsas, como eu. Outros com carreiras universitárias. Outros porque conhecem alguém. E há o clero, que tem uma espécie de livre-trânsito para as catacumbas.
O trabalho parece um mito. As mais variadas pessoas já me disseram as coisas mais estranhas: se posso pedir tudo o que quero, mexer no quero, procurar à vontade. Mas não. Nada disso. A disciplina ali dentro é militar. Há horas para tudo, os documentos estão guardados numas caixas putrefactas que eles vão buscar e levam exactamente 20 minutos a chegar. No caso dos documentos mais podres, a pessoa é obrigada a sentar-se nos reservados – é o meu caso – e a pedir um máximo de 3 caixas por dia. Creio que noutro tipo de documentos é possível pedir-se mais.
Creio que o elitismo, por norma, estraga muito as pessoas no trato humano e social. Cria-lhes a ideia totalmente fictícia de super-pessoas, super-bem-relacionadas e super-bem-equipadas-para-a-vida. Mas a visão é em túnel, com palas nos olhos, muito estreita. A prova é que ali as pessoas são geralmente porcas, arrogantes e muito solitárias, ou então relacionam-se e tomam café com quem lhes interessa. Outras têm uma relação de amor quase erótico com os documentos e afeiçoam-se a eles como se fossem pessoas. Comigo também acontece isso, confesso. Sempre que tenho de entregar uma caixa, vêm-me lágrimas aos olhos, ou porque li os documentos que tinha para ler ou porque finalmente me vou separar da «minha» caixa sebenta. Todavia, tenho muita pena da minha mudez, de não falar italiano (e admiro imenso que as pessoas aprendam quando ali vão, mesmo com sotaque inglês), sobretudo porque me retira em grande parte a humanidade. Como as palavras são importantes…
Curiosamente, a área de leitura de texto antigo – que nunca supus agradar assim a tanta gente, mas toda a gente me diz que «é giro» - nunca me interessou até ao momento de vir trabalhar exactamente nisso. E parece que nunca suscitou interesse a ninguém até…eu vir trabalhar exactamente nisso. Já ouvi as coisas mais disparatadas e tolas que se podem ouvir: que podia tirar fotocópias dos documentos (então para que é que ia a Roma?), que podia ter arranjado «outra coisinha melhor que não me separasse do meu marido» (não interessa a qualidade do trabalho), que podia tirar férias enquanto estou aqui (ó meus amigos…), que não faço nada com isto no futuro (é um clássico bem conhecido), que deve ser giro passear (experimentem apanhar com os turistas quando têm pressa para chegar ao arquivo), que é um trabalho fixe (imenso, mas experimentem levar com oito horas diárias dele). Visto de fora isto parece o paraíso. Mas nunca se pode esperar recompensa nenhuma deste tipo de trabalho: quando regressar a Portugal, vai estar tudo mal, será pouco o que fiz e é preparar-me para grandes e sonoros desgostos. Mas enfim…amanhã é novo dia e os bispos, núncios e missionários esperam por mim. Mais as múmias elitistas dos arquivos.

O gueto

Diz-se que é um fenómeno cultural. Um gueto é uma espécie de espaço isolado, afastado do mundo, com gente da mesma raça ou da mesma espécie. Geralmente é um fenómeno social, económico ou simplesmente cultural. Dar protecção aos iguais pode também ser um fenómeno de nacionalismo. Muitas vezes o gueto não se mistura com o exterior, daí o nome. Os chineses que vêm para Portugal ou para a Itália parecem-me iguais. Os árabes, os indianos, os romenos que estão aqui, em Roma, são em tudo parecidos aos de Portugal. Aprendem a língua, falam com sotaque, entre si usam a língua nativa, vivem juntos e fazem negócio.
Depois há o gueto cultural, também protegido por embaixadas ou institutos. Aqui há o Instituto Português, como deve haver albergues espanhóis, ingleses, alemães e alguns mais. Aquilo que o gueto tem de bom é exactamente o problema do mesmo: encontramos um bocadinho do nosso país aqui. Sentimo-nos em casa, por um lado estamos bem, mas vemos os defeitos da «nossa» casa à lupa. O que me faz pensar que todas estas pessoas, já híbridas de tanto falarem italiano e viverem em Itália, são, essencialmente portuguesas, em costumes, tradições, modos de vida e, acima de tudo, modos de pensar. O pensamento é tudo.
Assim que aqui entrei vi-me em Portugal em ponto pequenino. Aqui as obras são feitas por italianos e há uma certa mistura de línguas, os italianos falam um pouco de português e os portugueses sabem (quase todos) falar italiano com correcção (parece-me). Todavia, as empregadas são analfabetas, algumas extremamente incorrectas, coscuvilheiras, o sacristão é preguiçoso e o padre que gere tudo isto, pessoa certamente culta, tem modos distantes, afectados, altivos, de autêntico burguês que gere um palácio. Ele gere um gueto, mas não sabe, ou se sabe não mostra, porque é esperto. Esta «espertalhice» é tuga, é nossa. Aqui está o Eça de Queirós narrado, com todas as melhores personagens. Estas são as criadas do Eça, as que vigiam a Luísa nos seus encontros fortuitos com o primo Basílio e espalham as notícias rapidamente umas pelas outras. Os padres e os sacristães são iguais aos do Eça: inúteis, corrompidos, larvares.
Quem não gosta de se ver no seu país, de ouvir a sua língua? Eu gosto. Mas aqui evito com alguma veemência os portugueses. É bom ouvir português, mas posso sempre ouvir a Amália no MP3. É bom conversar em português, claro que sim. E ter costumes portugueses. E vir de Lisboa (apesar de as empregadas daqui virem todas de Viseu). Mas de resto não. Estar isolado tem as suas vantagens e tem os seus males, bem sei, mas se uma pessoa quer conviver com portugueses fica em Portugal, não se desloca a Roma, nem arranja um trabalho que exija deslocações. O bom das deslocações é a mudança de hábitos. Algumas mudanças custam, como estarmos habituados a companhia ao fim do dia, ou ouvir notícias em português ou almoçarmos com amigos. Mas algumas não custam. Estar sozinho é semelhante a estar em paz, quer dizer, claro que os problemas existem, claro que a minha vida não é aqui, mas agora, neste momento, é. E eu sou obrigada a estar presente, dentro ou fora do gueto, eu mantenho-me eu. Há uma vida em Portugal à minha espera, este é o intervalo dessa vida. Portanto, trabalho muito, mas descanso outro tanto. E eternamente me vão perguntar o que vim cá fazer, para que é que isto serve, o que é que isto dá no futuro e acima de tudo vão dizer-me, como já ouvi mil vezes «isso deve ser muito giro».

Saudades

Do que tenho saudades depois de 15 dias em Roma?

…dos amigos todos, mas sobretudo dos almoços com o Paulinho, Diana Frol, Patrícia França, e encontros manfiosos. Dos almoços inverosímeis com as três damas Paula, Estela, Sandra e das piadas mais-que-porcas que mandamos à mesa.

…de não ter de pagar tanto de selos, cartas, Internet para falar com as pessoas. Devíamos ter direito a comunicar de graça em qualquer parte do mundo.

…dos filmes de terror na casa do Ric, de me empaturrar de doces com ele, dar arrotos gigantes, tudo enquanto a Lisabete come saladas e o Pedro tenta dizer palavras em russo.

…de ter nome e não ser só «ragazza», «dotoressa» ou «prima donna» (primeira senhora a entrar no arquivo, ok?). Tenho mesmo saudades é de ser o Bino.

…do Serginho, mesmo quando se baba e dá traques no colo dos tios.

…do pai a discutir com a Helena sempre as mesmas coisas e a mandar piadas que ninguém percebe.

…do Pedro e da nossa cama gigante e mais não digo.

…de Lisboa e do seu trânsito medonho (nada pode ser pior do que Roma).

…do Eduardo aparecer de repente no meu gabinete com ideias de génio.

…de conversar com a Helena, mãe da Paula, e da Bia, sobrinha da Paula, olhar para mim à espera que lhe tire uma fotografia (devo ter cara de japonesa).

…das piadas do Paulo Vicente, mesmo as de carácter sexual (absolutamente medonhas).

…de beber café em qualquer lado, ser bom, vir «normal» sem estar a chávena vazia (italianas? O que é aquilo? Poupança de água ou de café?) e pagar 0,55€!!

…de poder lavar a roupa na minha casa, sem andar com um saco gigante às costas (qualquer dia dão-me esmola).

…de ouvir português sem ser turistas brazucas ou velhas religiosas a tentar comprar terços no Vaticano.

…dos almoços como deve ser na cantina da Católica.

…de falar a toda a gente dos meus problemas familiares: aqui falo com quem?

…de não ir no elevador com padres e frades medonhos e investigadores mal-cheirosos com sobrancelhas à Grinch (só me pergunto quem é que pega naquilo!).

…de nunca saber por onde passar, o Vaticano abre e fecha as entradas e saídas sem avisar.

…de o Pai Natal não me pedir esmola (nunca vi isso em Lisboa) e ser simpático com as crianças.

…de conseguir ouvir mais a língua do país do que outras.

…de não sonhar em italiano e latim (é verdade, sou um fenómeno, uma freak!).

…de não me doer tanto, tanto, tanto as costas, pernas e pés.

…de ter alguém do meu lado a fazer seja o que for sem ser ler documentos podres com lupas especiais e sorrisos amarelos.

…de a meio da manhã comer qualquer coisa diferente do costume (o café do arquivo é igual aos documentos: há sempre o mesmo).

…de não me abrirem todos os dias uma janela nas costas porque os documentos (ou as múmias que os lêem) são perigosos.

…de não encontrar bocados de tangerina no livro de assinaturas do arquivo (é nojento, mas é verdade).

…de não ter de andar num metro sujo, mal iluminado, pequeno, e em autocarros a abarrotar fora das horas de ponta.

…de não ter de atravessar à espera que me deixem passar por milagre e ser obrigada a enfrentar os carros, de não ter motas a fazer rasantes e bicicletas em sentido contrário ao do trânsito.

…de para ir à Internet não ter de entrar em sítios mal cheirosos, suados, quentes, com árabes a ouvir músicas em altos berros e mexicanos a discutirem que não querem pagar as chamadas para o México.

…de não me sentir uma surda-muda-autista quando falam comigo e saber responder. Já agora, cada vez que falo português, nem que seja só uma palavra, a reacção também é a de surdos-mudos-autistas. Ao menos estamos de igual para igual.

…de não ouvir sempre as mesmas músicas (é o que tenho no computador e MP3).

…de Portugal.

Tão neutro como a Suiça

Se eu ganhasse um euro por cada vez que alguém me diz que se vai manter isento, neutro, tão neutro como a Suiça na Segunda Grande Guerra, eu estava rica. Ouvi tantas vezes o «não me quero meter» que fiquei habituada a uma só coisa: a que ninguém se meta e eu morra sozinha no ringue, na arena, ou seja lá onde for.
É certo que temos anjos da guarda, mas daí até termos alguém que nos defenda, eu acho que vai um grande passo. Alguém que tome o nosso partido sem reservas nem medo. Mais ou menos como o grandalhão que se mete à frente do menino indefeso para ele não apanhar dos matulões lá da escola. Nunca tive isso e cada vez menos espero ter. Talvez cada vez menos precise, vou-me tornando crescida e trinta anos de vida metida em sarilhos na escola, em casa, na família, com pessoas de todo o lado ensinaram-me uma coisa importante: que se eu não me defendo, então ninguém defende. Ganhei mais essa consciência quando a minha mãe morreu. Até essa data, eu vivia numa cápsula, ela é que apanhava com as setas maiores, eu apanhava só com as pequenas, os retroactivos, os ricochetes, eu recolhia as migalhas dos desastres. Hoje em dia a cápsula já há muito se partiu e já sou eu a apanhar com as setas, algumas muito envenenadas.
Este último ano foi péssimo, foi pródigo em apanhar com setas e deixá-las cá espetadas. Algumas sangram mais do que outras.
Não posso pedir que me defendam quando às vezes está em causa mais pessoas, mais sentimentos, mais amizades ou família. É verdade que não, e salvaguardo isto. Mas também não posso evitar o facto de me sentir sozinha. Porque na vida talvez tenha sido essa a minha constante. Não se pode pedir a ninguém que pense como nós, é impossível, ou que concorde, ou que diga o que queremos, ou que nos defenda incondicionalmente. É evidente que quando as pessoas que gostam de nós nos vêem a ir para o abismo, até podem não dizer, mas não nos acompanham, tentam puxar-nos de lá, por isso não vão concordar connosco.
Nem falo em concordâncias. Ter razão acaba por ser uma grande chatice, um grande sarilho. Talvez mais valha não ter nem fazer por ter. Perante a realidade, os argumentos caem por terra. Só acho que mais uma vez a Diana tem razão: o que é estarmos isentos? Se respiramos participamos na vida, não estamos isentos. Nunca. Mesmo quando não fazemos nada estamos a tomar uma posição e a ter uma atitude. Só mortos não agem sobre o mundo – supostamente. Mas nós todos agimos, quando falamos, respiramos, interagimos, passeamos, apanhamos o metro. Poderemos ser isentos, tão neutros como a Suiça?

Thursday, November 08, 2007

Monday, November 05, 2007

O grotesco

Desde que vim para Roma que me pus a pensar em coisas que sempre me importunaram e deitaram abaixo e tirei umas das conclusões mais brilhantes da minha vida: são sempre as mesmas, são invariáveis desta vida. Há pessoas que me incomodam imenso até à distância porque…eu deixo e só penso nisso. Confesso que desde o ano passado que melhorei muito. Não me deixo abalar tanto como dantes pela falta de valores morais das outras pessoas, sobretudo se estiverem perto de mim, sou mais cuidadosa com o que digo e a quem digo, invoco muito o silêncio em locais de batalha, sobretudo por instinto, mesmo quando não parecem locais de batalha e estamos só à mesa com amigos.
Que se passará comigo? Às vezes dou por mim a chorar porque alguém me inveja, diz mal de mim, está pronto a deitar-me abaixo ou simplesmente porque não consigo explicar o meu ponto de vista. Evidentemente que já cheguei à conclusão que só interessa explicarmos o nosso ponto de vista a amigos próximos que nos importem como pessoas. O nosso ponto de vista não interessa aos inimigos, aos conhecidos próximos, às pessoas menos bem intencionadas. Somos o que somos. Se tivermos amigos e a sorte de termos familiares que gostem de nós e de quem nós gostemos (e friso a palavra sorte, porque ela é mesmo necessária) é a eles e só a eles que nos cabe explicar seja o que for sobre o que fazemos, sobre o que optamos por fazer e sobre o que somos enquanto seres humanos. O resto tem esse nome: é resto, excesso ou diferença. Não faz parte dos cálculos.
Este parágrafo supra (dir-se-á assim?) são as minhas palavras, mas nada daquilo que eu faço…Ao menos sou honesta. Não, não faço nada disto. Levo dias a explicar-me dentro da minha cabeça, a achar que vou novamente ser confrontada e ter de explicar, a achar que a esta ou àquela pessoa também posso explicar qualquer coisa, a achar que ninguém percebe o que faço mas tenho de ir explicar. A Diana define este processo com uma boa expressão: eu fico emocionalmente conectada com o que não presta, com o que não me faz falta, com aquilo que não sou, não quero ser e não quero que faça parte de mim. Por exemplo era como levar na minha memória e ficar emocionalmente ligada ao grotesco de Roma.
Comigo trouxe uma mala pesada, um computador portátil e…lixo emocional de toda a espécie. Há o lixo do que me dizem mas não concordo nem acho certo, há o lixo dos maus pensamentos dos outros sobre mim, há o lixo da inveja sobre mim, há o lixo dos obstáculos emocionais como «não podes», «não deves», «não és capaz», «não voltarás a fazer isso tão cedo porque…», há o lixo da chantagem emocional dos que choram e berram para se fazerem ouvir e querem à força que eu lhes cumpra os sonhos de vida, há de tudo…É como se eu fosse um íman gigante de mentirosos, falsos, gente sem escrúpulos, gente vazia, gente que nunca se encontrou mas se acha perdido por causa de mim, doentes mentais, chantagistas, manipuladores. Será que as minhas emoções são um pub ordinário de esquina onde há tareias todas as noites e as meninas usam meia vermelha de liga? Serei um circo de freaks cá dentro de mim? Como manter essa diversidade de seres gritantes e ordinários fora de mim? Como não me envolver com o grotesco do ser humano?
Roma ainda me faz rir do grotesco. Mas os acontecimentos da minha vida já não me fazem rir. Todos somados dão um resultado um bocado triste e insatisfatório, um balanço altamente negativo com as pessoas. Eu tenho problemas até com quem ninguém tem. A Paula diz que está sempre a esbarrar com gente fixe nas coisas mais pequenas, comigo é exactamente o contrário: eu esbarro com mânfios, mentirosos, maus caracteres, mas muito mais do que isso, esbarro com manipuladores e chantagistas em todas as esquinas da minha vida. Estou a ser cruel e a esquecer-me (lá vem a minha atracção pelo grotesco) das pessoas boas que fui encontrando pelo caminho. Na verdade não as esqueço, só que não são elas o problema. Nem as pessoas do piorio. O problema sou eu.
Ao mudar de casa e ao casar-me eu achei que pelo menos metade dos meus problemas estava morto: já não queria mais viver em casa, nem ter a vida que tinha, nem estar com as pessoas que estava e tudo isso ia mudar. De repente senti-me entalada em problemas muito piores, era como se eu tivesse subido um degrau acima na escala da dor e do razoável. Em vez de me livrar de um problema, criei um monstro muito maior à minha volta, que obviamente não soube gerir. Acho que toda a minha vida tem sido uma perfeita desgraça por causa de uma só pessoa: eu própria. Pareço um daqueles bêbados que se embriaga, vai a um bar e cria confusão com toda a gente só porque está bêbado. O que difere são as minhas motivações, que penso não serem gratuitas.
Nos arquivos eu tenho de estar em silêncio para ler. É como uma oração. Para se fazê-la e se receber a graça (que católica estou eu) o silêncio é essencial. Mesmo assim tenho dificuldades em não ouvir as vozes do grotesco.
Aqui já devo estar mais gorda, como bastantes doces, gosto muito de alguns que há por aqui pelos supermercados (nos cafés nunca pedi nenhum, excepto no café do arquivo, mas devem ser os olhos da cara), de chocolates sempre gostei. Talvez o portátil às costas me faça manter a forma, e também as dores nas costas, e por alguns momentos esquecer…

Roma

Semprei gostei da palavra e agora que a palavra ganhou um correlativo objectivo, ou seja, uma correspondência visual e conceptual, a palavra encheu-se de significado. Roma ao contrário é Amor. Que romântico…
Este texto só vai fazer sentido para a Diana Frol, que acha Roma tão romântica quanto eu. Desculpem, mas vou desfazer o mito nas vossas cabeças. Roma não tem nada de romântico, excepto o barco que vai para Trastevere, cujo barqueiro deve ser neurótico e grita com as pessoas. É romântico por causa da paisagem…ao longe. Ao longe o Vaticano é belíssimo, a cúpula é uma maravilha. Ao longe e à noite, quando não está lá ninguém, excepto os japoneses a dispararem os seus flashes incessantemente. Como eu digo sempre, o Vaticano já foi mais fotografado do que o cu da Princesa Diana ou a… da Paris Hilton. Tirando o Vaticano, alguns monumentos sumptuosos e muitas ruínas, Roma é suja e grotesca. Tem uma quantidade de imigrantes ilegais que provoca arrepios da espinha.
Em Roma, quem são os romanos? Ninguém sabe, até porque aos fins-de-semana eles escondem-se noutras casas de férias, pelo menos os mais ricos, um velho hábito romano, pelo que sei. Eu sou sempre confundida com uma romana, não por usar casacos de pele ou botox na boca, mas porque atravesso como as velhas romanas, olho zangada para os carros e depois ignoro-os, enquanto praguejo, corro sempre e reparo sobretudo nas motas, que são perigosas porque se esgueiram por entre os carros. À noite, esta míope tem muito medo das motas, confesso. Raramente petrifico numa passagem de peões, mas às vezes acontece. E os condutores praguejam. É uma cidade cheia de gente mal-educada, incivilizada. Como diria o irmão da Paula, é uma cidade badalhoca. Muito mesmo.
Da primeira que cá estive fez um Inverno rigoroso, usei barrete todos os dias, o guarda-chuva foi necessário e fazia tanto frio que eu nunca pensei ser possível haver tantos turistas num sítio tão gelado. Mas havia e eu achei excepcional, visto que aqui não se pode esquiar. Da segunda vez o Inverno foi menos rigoroso e estava sol, pouco usei o guarda-chuva. Havia tantos turistas que eu nem conseguia chegar ao Vaticano. Lembro-me de uma vez em que os japoneses eram tantos e atravessavam à balda num dia de chuva, que eu fui o caminho todo a praguejar até à porta dos arquivos. Ainda bem que ninguém percebia…Comecei a fazer o caminho mais comprido até ao Vaticano – portanto a levantar-me mais cedo – e acabei por tirar uma nova e brilhante conclusão: havia ainda mais turistas e eu chegava sempre atrasada. Posso dizer que esta é a terceira vez que venho e ainda não descobri nenhum caminho sem turistas aos magotes (estamos a falar de excursões daquelas em que há pessoas de cadeiras de rodas e bebés a bordo, portanto em que tudo é possível). O que significa que aqui o turismo devia encher os bolsos dos cofres de Roma, e possivelmente de toda a Itália. Mesmo assim, os donos das lojas são empertigados, convencidos, irritantes e facilmente irritáveis (basta que não se saiba falar italiano, o que é o mais comum).
Se eu vivesse aqui dava em doida. Lisboa consegue ter muito mais espaço do que Roma e eu em Lisboa envergonho-me de ver turistas a assistirem a más educações, conduções perigosas, buracos e obras mal sinalizados, aqui ninguém parece importar-se.
Roma é interessante, sem dúvida. Tem sempre coisas para visitar e eu faço muitas vezes viagens peregrinas, como sair em cada uma das paragens de metro e ver o que há para ver. Claro que nem tudo é perto do metro, mas há sítios circundantes com igrejas, basílicas e monumentos diversos. Há também locais a temer e a evitar, como o Termini, que tem o maior número de pessoas bêbedas e feias por metro quadrado, com ruas de lojas chinesas e indianas. Aqui ainda não se renderam aos centros comerciais e é raro encontrar um.
Os italianos parecem ter um carácter volátil. Ou são muito bem dispostos ou muito agressivos. É difícil classificá-los sem ser com um palavrão. Cada vez mais me apercebo que são racistas e completamente alheados dos turistas, o que é estranho, tendo em conta que a cidade é povoada de turistas (deve ser o hábito).
Tenho os dois lados da moeda romana: as coisas boas para visitar e as menos boas para aturar, como em qualquer cidade onde se viva. Gosto na mesma, não vou dizer que não, o Vaticano tem sempre a sua beleza, de manhã, ao entardecer, à noite. Roma é sempre bonita, apesar da tremenda confusão. Apesar de tudo, é uma cidade a visitar no roteiro turístico e que viverá no meu coração para sempre, por outros motivos, pessoais, inomináveis, adversos, simpáticos, oportunos e inoportunos.

A inveja

Caros amigos, queria dizer a todos que, mesmo em Roma, ainda não descobri «the meaning of life». Como naquele filme «A vida, o amor e as vacas», em que a personagem de Jack Palance reclama existir uma única coisa que importa na vida, mas nunca chega a dizer o que é, anunciando que cada um de nós sabe e só tem de ir à procura. É simplista q.b., quase como no Principezinho, mas…não será verdade?
Aqui em Roma estou sozinha, por isso em Roma ou na Conchinchina (que por acaso existe e consta nos documentos do Vaticano) os problemas seriam sempre os mesmos na vida de uma mulher trintona que viaja sozinha, que deixa o seu gajo e os seus amigos em prantos (vá, deixem-me brincar…), que só tem TV italiana (por acaso muito má, pior do que a portuguesa), o seu PC – que é salvação do mundo, se isto se estraga acabou-se a minha vida – e sabe que, durante muitos e muitos dias será assim mesmo. Cozinhar sozinha, viver sozinha, passear sozinha, escolher locais a visitar sozinha, lavar a roupa sozinha. É a vida de muitas pessoas, não tem nada de mais, não fosse a estranha investigação que me traz cá, desculpem mas não vou dizer qual, o blogue é público.
Serei digna de inveja? Em muitos aspectos estou certa que sim. Para já, porque viver sempre no mesmo sítio e fazer sempre os mesmos percursos, para a grande maioria das pessoas é uma seca. Há excepções, claro. Tenho um amigo que diz que onde houver uma Fnac está a salvo, seja em Portugal ou noutro sítio qualquer do mundo. Para ele, só está fora de questão países sem livrarias, cinemas, teatros, cultura. Portanto, países de terceiro mundo seriam a ruína dele.
Mas ultimamente pus-me a pensar. Foi tão difícil conseguir este trabalho, foi uma batalha tão dura. Na primeira vez que vim foi tão complicado que chorei no primeiro dia, coisa que raramente me acontece (houve circunstâncias muito próprias, digamos muito romanas, que levaram a isso, claro). Sempre que vim deixei situações complicadas em casa. Sempre ouvi comentários da minha avó completamente tortuosos, que quanto a ela lhe saem sempre involuntariamente e «não têm mal nenhum», mas que para mim são palavras com longo alcance. Na primeira vez deixei o pai sozinho, era tudo perigoso, uma menina sozinha (trinta anos, amigos, trinta anos e ainda sou tratada como se fosse o Capuchinho Vermelho na floresta), à segunda e à terceira vez é o marido. Pois claro, um marido ficar sozinho…olha que coisa! Que raio de trabalho fui eu arranjar, que porcaria. Soubesse ela que vou tentar compor a minha vida profissional com muitas e muitas mais viagens, porque isso me enriquece, como pessoa e no trabalho. Sempre esbarrei com comentários destes. Parece que sempre que avanço alguém me segura na camisola e manda voltar para trás, me puxa para uma vida dita «normal». Isto não é inveja, é simplesmente não perceber que, eventualmente, o mundo pode ter mudado e as mulheres já serem capazes de fazer alguma coisa por ele.
Depois, há as pessoas que detestam uma vida «normal». Há uns tempos esbarrei com uma atitude (feminina, e desculpem o comentário, como quase sempre) que me fez ficar muito irritada. Uma daquelas pessoas para quem a vida sorriu a sério, em termos pessoais e profissionais, mas que acha a sua própria vida um «tédio», ficou petrificada quando percebeu o que eu fazia (se é que percebeu, porque a pergunta que mais oiço nos dois últimos anos é «afinal o que é que vais fazer a Roma?»). Era mesmo o que ela queria. Bolas, e escapou-lhe esta belíssima profissão de investigador pobre a ganhar setecentos euros por mês. Só olhamos para a ponta do iceberg. Eu fiquei dois anos à espera desta bolsa, trabalhei muitas vezes de graça, e aqui em Roma, apesar de não ser uma desgraçada, tenho de controlar bem o que gasto, tenho de andar sempre carregada, e o turismo chateia-me tanto que fico maçada só de pensar que tenho de passar no adro do Vaticano para ir trabalhar e às oito da matina ali estão os fotógrafos de serviço, as excursões do costume, e os acotovelamentos necessários para conseguir passar sem arranhões. Estou certa de que muita gente ficaria farta nos primeiros dias para o resto da vida…e o trabalho? É interessante, mas fica-se pela leitura e resumo de textos. A isso convencionou chamar-se «investigação». Mas a máxima investigação que existe consiste em ir ao dicionário procurar palavras. Quando há dúvidas na leitura, paciência, estou sozinha. Trabalhar sozinho também tem as suas vantagens, que é desenvolvermos a capacidade de sobrevivência, o célebre desenrascanço.
Estou certa de que muita gente me arrancaria isto das mãos sem pestanejar nem que fosse para vir passear a Roma. Mas palavra que se arrependeria…passados uns dias estava a dizer que a cidade e o trabalho são igualmente «entediantes». O tédio é uma coisa que achamos sempre que desaparece, ou que pelo menos se dilui, se mudarmos do local onde vivemos, se mudarmos de trabalho, etc. Mas o tédio existe muitas vezes dentro de nós, outras vezes no facto de fazermos o que não gostamos o dia todo. Então cobiçamos, dizemos «era ali que eu devia estar». Acho que é humano. Eu também fazia isso quando via que alguém tinha conseguido um lugar para o qual eu tinha capacidades. É muito estranho como por vezes as pessoas ficam nos trabalhos que outrora achámos perfeitos, mas um dia chegamos à conclusão, quase absurda, que ainda bem que a nossa vida deu outras voltas.
Eu e a Paula estamos sempre a dizer isso. Nunca conseguimos dar aulas nem formação. Mas conseguimos fazer outras coisas de que gostamos mais. Foram descobertas do acaso, foram oportunidades que surgiram e eu acho sempre que tive sorte, e essa sorte aliada a capacidades dá algum resultado, que não sendo perfeito é alguma coisa.
Não sei explicar às pessoas que estas mudanças custam. Que chegar a casa e ela estar vazia custa, sobretudo quando se é casado. Que andar sempre carregado custa, ganha-se bolhas, varizes, dores horríveis nas costas. Que para comunicar para Portugal temos de entrar em sítios com Internet absolutamente medonhos que cheiram a chulé e mexer em teclados sebentos. Que o trabalho custa imenso a fazer, está sempre atrasado, é sempre para ontem. Que passar todos os dias várias vezes no Vaticano custa. Que a cidade é suja e cruel com as pessoas, incivilizada, grotesca, mal educada, que passados dias achamos isto um horror, um pesadelo e ninguém faz esforço para entender um estrangeiro excepto outro estrangeiro. E…que deixamos em casa situações muito complicadas, sem resolução à vista, que por um lado preferiríamos vir mas por outro não, queríamos estar perto do nosso amor a dar-lhe apoio. Nada disto é explicável, sobretudo para quem pensa que vimos aqui dar uma de grandes investigadores e viajantes dos quatro cantos do mundo. A quem cobiça isto, eu ofereceria de mão beijada um bocadinho do pior que Roma e este trabalho têm, sobretudo o compromisso de fazermos um trabalho de jeito quando é mesmo impossível…
Não quero pintar o cenário de negro, só de verdade, ou da verdade que eu vejo, porque sou eu que viajo e sou eu que faço este trabalho, não os outros que falam dele. Eu sei que nem todos temos as mesmas chances de viajar e que muitos gostávamos imenso de fazer isso – outros não gostam mesmo e assumem, como a Paula, que é muito sincera. Não nos acomodarmos ao que temos é um bom princípio para a mudança estrutural. Mas por vezes as melhores opções são mesmo as mais simples, as que estão ao nosso alcance. Como diz a minha amiga Estela, sempre que olha em volta percebe que vive no paraíso…acho que é isso. Muitas vezes acho que me entregaram em mãos uma empresa de grande valor e eu não tenho capacidades para ela. Mas outras vezes sei que se isto aconteceu no meu caminho é porque tinha de ser, é porque tenho algo a aprender. Por isso vou tentar aprender nos próximos quarenta dias em Roma.