Monday, October 15, 2007

As revistas cor-de-rosa vs. Vida real

Amigos, vou-vos contar um dos meus hobbies favoritos, meu e da Elisabete. Ver revistas cor-de-rosa. Aquilo é so glamour, perfume, sensualidade, famílias perfeitas, casamentos perfeitos, divórcios perfeitos. Todavia, há a outra parte. Quando a TvGuia e outras tantas revistas exploram a raiva, o ódio, a ofensa, a torpeza humana. E vêm pais enxovalhar filhos e filhos enxovalhar pais. E irmãos, como Carolina e Ana Salgado que «não se perdoam». E a «Floribella» (Luciana Abreu) desmentir que disse mal do pai ou foi abusado em pequena. E os casais a declararem casamento, divórcio, custódias legais e ilegais, pessoas desavindas e outras coisas mais.
Gostamos disto porque não nos aproximaríamos disto nem que tentássemos. Temos vidas monótonas: trabalho-casa-casa-trabalho. Temos filhos muito giros mas iguais a outras crianças giras, que para nós são especiais porque são nossos filhos. Não temos todos os dias coisas para contar. Exceptuando algumas pessoas. Eu, por exemplo. Não me posso considerar assim tão turbulenta em amores como uma Elsa Raposo, tão frustrada da vida como o Zé Maria do Big Brother, nem tive um casamento com pompa e circunstância que devesse ser anunciado numa revista destas. No entanto, entre a minha vida e essas das revistas há tantas similaridades que nem posso aqui falar de todas por questões pessoais. Sou daquelas pessoas a quem só falta um processo em cima, e é melhor não falar muito nisso ou apanho com um.
No outro dia lia numa revista qualquer acerca de uma rapariga que participa num programa: «é uma vadia». Este tipo de afirmações, assim num contexto que só aquela pessoa sabe, soa mal e porcamente. Parece mesmo cheirar a esturro. Então uma pessoa aproveita uma revista para dizer uma coisa dessas?
Eu pensava que esse tipo de linguagem telenovelesco não fosse próprio de uma vida tão recatada como a minha. Não vou dizer uma vida fácil ou linear. Mas palavras como «cagalhão», «puta», o diz-que-disse-que-disseste-que-dizias pensei que nem tivessem espaço para existirem na minha vida. Não por ser «boa pessoa» - eu isso não sei se sou (mas o Paulinho Mongo e a Diana dizem que sim e eu acredito neles, ok?) – mas por ser recatada, nada show-off, nada borderliner, nada «I will survive» (grito de sobrevivência da Gladys Night).
Sou discreta. Tento passar ao de leve, oiço tudo mas não sou de responder e só enfrento em último caso. Não sou nada de saltar do cavalo para atacar touros, mas desta vez parece que sim e se calhar a minha vida é isso, agora entendo melhor o Salgueiro (não sei se é bom exemplo, afinal ele ficou inconsciente…). Sinto-me com o mesmo desamparo que sentia quando largava a mão da minha mãe na escola e ficava entregue aos miúdos, numa barafunda e num caos que não era a minha maneira de estar na vida. Aquilo não era eu. Eu queria era brincar com bonecas, ler livros, pintar. Mais tarde passei a gostar de filosofia, por exemplo. Tudo coisas calmas. Nada de fugir dos meus pais, mentir, chegar tarde a casa. Dava sempre o telefone das minhas amigas, que também gostavam dos meus pais. Nada de «toma lá na cara porque me provocaste». Agora, pateta nunca fui, nem parva, nem mansinha. Era calma, pelo menos não exteriorizava raiva – porque tinha alguma – muito selecta nas minhas relações e muito pouco ligada à opinião do próximo. Quem me dera ser tão inteligente como era nessa altura.
Por essa altura eu tinha uma amiga chamada Leonor, que era o meu oposto (não sei se ainda é): caótica. Um dia mostrou-me os cortes que tinha nas pernas e nos braços e eu não via razão para aquilo. Era uma turbulência interior, acho eu. Ainda hoje ela me inquieta, porque éramos diferentes na expressão exterior do mundo, mas ambas tínhamos um interior desinquieto, turbulento, avassalador.
Houve um tempo na minha vida em que fui esperta o suficiente para saber que se me suicidasse nunca ia chegar onde eu queria: ser escritora. E portanto, tal como Janet Frame, não morri graças à escrita. Porque nunca fui pessoa de cinzentos, e se tentasse a morte morreria certamente. Mas depois pensei numa coisa muito parva, muito fútil: o meu irmão sem mim ficaria mais egoísta e os presentes de Natal eram só para ele. As amêndoas da Páscoa eram só para a minha mãe. E o pessoal, mal ou bem, nunca mais se endireitaria sem mim. Mais tarde até fui precisa, por isso raciocinei bem na altura. Além disso, nunca gostei de sofrer e portanto calculava que, numa ínfima hipótese de sobreviver, ficaria vários dias numa cama de hospital e teria de ir a um psiquiatra. Por último, gostava de viver e, na minha ignorância, vencia pelo menos uma batalha: era a melhor aluna da turma e uma pessoa inteligente. Os meus professores gostavam de mim. Continuei.
Cheguei aos dias de hoje com a sensação de vitória. Sobrevivi e até vi morrer as pessoas que nessa altura me fizeram estar viva: a minha mãe, o meu avô. É uma vitória com alguns amargos na boca, alguns desamparos e desequilíbrios. Não acho nada raro as pessoas pensarem em suicídio. Acho é que as pessoas não confessam isso a si mesmas, quanto mais aos outros. Acho outra coisa: é preciso ser-se inteligente para se pensar em suicídio e, em certa medida, lúcido. É como a miopia: excesso de visão desfoca. Por vezes há problemas cuja lucidez acerca deles seria dispensável, e isso desfoca, faz-nos pensar «que tolice viver!».
Quando penso no meu passado, penso em quanto o meu presente se assemelha a ele, e também a forma como fui «preparada» para esta vida um tanto ou quanto insólita, nada monótona, toda revisteira e rosa-quase-choque (não fossem as cores cinzentonas de quem a amargura tanto…). Na altura, quando era adolescente, eu lia muito Platão, gostava muito da Caverna, aplicava aquilo a sangue-frio à minha vida, à vida de quem me rodeava. E ainda faz sentido, mas tanto sentido que até dói na alma. É a velha história: a literatura é reflexo da realidade ou a realidade é reflexo da literatura? No meu caso, eu já não sabia bem e ainda hoje as confundo, ao ponto de um livro me saber a pouco porque «aquilo» que ali estava, escrito não por mim mas por outro ou outra qualquer, aquilo é que era eu.
As entrevistas das revistas são das coisas mais parvas que podemos ler. Destacam palavras soltas das pessoas, retiradas de perguntas tolas. Como disse um dia a Rita Ferro Rodrigues (de quem não gosto muito), não vale a pena tentar ser inteligente numa entrevista, sai sempre borrada. E é mesmo. O Lobo Antunes parece-me ser o melhor/o pior nas entrevistas, não só ludibria os jornalistas, respondendo exactamente o contrário do que esperam dele, como subverte todas as regras do «vamos ver se transmito a grande pessoa que sou, o grande carácter que tenho, a minha família fabulosa». Ele está-se a cagar para tudo isso. E é maravilhoso por isso mesmo. O Lobo Antunes é a antítese da revista cor-de-rosinha-choque. Nessas revistas, as famílias são perfeitas, os filhos só dizem coisas inteligentes aos pais, até as casas são imaculadas. Quem acredita naquilo? Eu não. Mas acho piada.
Depois há a outra linha mais baixa das revistas cor-de-rosa, as tais que expõem tudo e mais alguma coisa de qualquer maneira. Eu vivo nessas. Há sempre alguém a dizer muito mal de mim, pela frente, por detrás, pelo lado, por mail, por telefone, por conversa. Não tenho as orelhas lá muito fresquinhas. Com a vida, tive de tomar uma decisão competente e sábia que já há muito deveria ter tomado: paciência! Ninguém é obrigado a gostar, a aceitar, a achar que sou inteligente e digo coisas bem pensadas ou com graça. Todavia, eu também não sou obrigada a aceitar as piadas dos outros que considero estúpidas só porque outros as acham «engraçadas».
A maior parte de nós é vítima de intrigas. Basta que se exponha a isso. Estou a tentar resguardar-me o mais possível, mas por vezes, tantas vezes, eis-me ali nas revistas cor-de-rosa. Por vezes somos discretos e apanhamos na mesma, é azar, mas acontece. A vida não é muito previsível nesse aspecto. Há pessoas cuja vida é feita de conflitos, mas há pessoas que, mesmo fugindo dos conflitos eles vêm ter com elas. Eu tenho dos dois. Sou imensas vezes centro de conflitos (nem sequer sou um dos lados…). Isso deve ter uma explicação, mas aquela que arranjo é esta: dou demasiada confiança a pessoas cuja estranheza me espanta. Se me espanta, é melhor não dizer nada. Quando eu assimilar posso falar, enquanto houver essa barreira é de desconfiar.
Nas revistas circula o maior número de mentiras à face da terra. Aliás, nunca se sabe o que é ou não verdade. Lembro-me de a Priscilla Presley ter contado no programa da Oprah que quando lhe disseram que a filha, Lisa Presley, se tinha casado com Michael Jackson se tinha rido às gargalhadas. Estava habituada a tantos boatos que não ligou àquele…que era mesmo verdade. Isto prova que um boato pode ser tão verdadeiro como uma verdade assumida pode ser falsa. É nessa incerteza que permanecemos, a olhar para as sombras da Caverna de Platão. Que remédio!



A estupidez

A estupidez é humana. Completamente humana. Nenhum animal é tão parvo, tão tolo, tão estúpido, tão doente mental e tem ideias tão patéticas quando o homem. O homem deixa muito a desejar na evolução da espécie. A prova disso é a televisão. Parece que regredimos completamente. Já tivemos programas de entretenimento inteligentes, mas já não nos lembramos de nenhum. Hoje em dia temos quatro canais a dar porcaria às horas de maior audiência num Domingo (um dia já por si tão depressivo). Não fosse o Gato Fedorento na RTP1 e íamos todos alugar filmes ao clube de vídeo, ou ler ou fazer as tarefas de casa. O Domingo é uma pasmaceira. É o dia da semana em que mais apetece tomar anti-depressivos porque no dia a seguir é Segunda-feira. Depois passa.
A Sic ontem estava a apostar numa espécie de gala das Famílias Superstar. O que são famílias superstar? Ninguém sabe bem, nem as próprias famílias, nem a Bárbara Guimarães e muito menos o Tozé Brito, a Clara de Sousa ou os Anjos. A Fátima Lopes diz que a ela ninguém lhe põe moeda para chorar, mas naqueles Anjos tenho impressão que alguém põe uma moedinha. Ou isso ou são surdos que nem uma porta, ou então…choram de tristeza (a Paris Hilton ambém chora copiosamente quando ouve os próprios discos, mas percebe-se a razão). Ontem percebi a vontade de chorar, naquele programa e em tantos outros. Não há paciência…um a cantar mal é mau, mas uma família inteira é demais. Basta. O Tozé Brito tem uma carreira espantosa, sobretudo como produtor de música, mas ouve vozes de cana-rachada e bagaço e diz «tens futuro» certamente com a mesma convicção que o terá dito à Ágata, na altura Fernanda, quando ela cantava a Abelha Maia com pronúncia lisboeta e dizia «abalha» que ela tinha futuro. Ágata teve efectivamente futuro, mas voz para cantar, isso nunca teve. Gosto para vestir nunca ganhou e o bom gosto em atitudes faltou-lhe sempre. O Tozé Brito só teve culpa no que diz respeito à voz dela. O resto é culpa da própria.
A Clara de Sousa não sei o que percebe que música, mas tem tacto, postura. Mente um bocadinho, certo? Uma jornalista não pode ser surda. Dizer «és boa pessoa» é uma coisa, dizer «sabes cantar» é outra. Os Anjos está visto que além de não saberem cantar não sabem ouvir (pois, tem tudo a ver). Mas têm justificação. Desde pequenos que cantam para a avó deles e a avó deles, como todas as avós, devia ser surda, senão nunca lhes teria dito «são uns anjinhos!». Eu mandava-os ir jogar ao berlinde, à bola, cantar não. Muito menos todos de branco. Mania…a Ágata, Roberto Leal, Anjos. Bom, o branco é luto, por isso é que o Raul Ouro Negro o vestia. Assim faz sentido. Estão todos de luto pela própria voz.
Ontem a célebre gala apostou em juntar vozes conhecidas da mesma família. Eu sou franca. Não é porque a mãe ou o pai cantam que os filhos cantam. Está bem que há casos assim, como a Liza Minneli, a Judy Garland (a mãe) dava-lhe uns toques; como a Natalie Cole, filha do Nat King Cole, a Maria Rita, filha da Elis Regina. Mas são casos raros. E as vozes não são a mesma coisa. Agora não me venham com histórias…nem sempre filho de peixe sabe nadar e vice-versa. Quem disse que pelo facto de haver crianças cantoras os pais são tenores? Espero que a Floribella nunca convide os pais para cantar com ela.
Todavia, ontem a Sic fez o mais improvável dos improváveis: colocou lado a lado as irmãs Adelaide e Mila Ferreira, o Roberto Leal e a filha (cujo primeiro nome não me lembro e o último também não, mas não é Leal). No primeiro caso deu-se o desastre esperado. A Adelaide Ferreira é fantástica: quem a ultrapassa? Tem um poder vocal raro – ontem exagerou, gritou um bocado. Não foi amiga da irmã. Cantar lado a lado com uma advogada palhaça não é desafiante. A pobre Mila queixava-se «nem me ouvia ao microfone, os directos são assim, também não interessa». Completamente humilhada e sufocada pelo talento da irmã cantora. Na realidade, ninguém a ouviu. Nem ela própria. Mas toda a gente sabe que ela tentou, anos a fio, entrar para a televisão e ser cantora, mas que graças a Ediberto Lima isso não passou de um sonho (único mérito do senhor, que com cara de trolha das obras, somou e andou com o Big Show Sic). Mila gritava de tal forma na televisão que ninguém podia com ela. Tem postura de vencida da vida. A Adelaide é o contrário. Venceu há muito tempo, também pela mão do Tozé Brito, a quem agradeceu. Mas o mérito foi sempre dela. Pelo menos não se veste como a Ágata, evoluiu no visual.
Quanto ao Roberto Leal…a filha tem melhor voz. É capaz de não ser um grande elogio, visto que a filha não é cantora. Ao menos é afinada. Ele é insonoro e sensaborão como sempre foi na vida. Dantes copiava o «rei» Roberto Carlos, agora nem deve valer a pena, porque Roberto Carlos já se perdeu há muito. O Roberto Leal nasceu perdido. Não tem jeito para cantar, nem vestir, nem pintar o cabelo (já usou cores piores, agora anda na onda do Herman), e, sinceramente, devia aprender português. Está aqui há tanto tempo que faz pena ainda cantar em brazucunhês ou portugaleiro. Aprenda uma das duas: português ou brasileiro. E pare com aquela merda do «no Brasil sou português e em Portugal sou brasileiro», já não pega ele achar-se o «rostinho» da Lusofonia, que nunca existiu.
Só mais uma coisa…porque é que vestem a Bárbara Guimarães como se fosse a Jessica Rabbitt, a dizer as mesmas coisas que a miss Universo? Ao dizer «Mila, cantaste muito bem que eu ouvi e o Tozé Brito também acha» está a gozar com quem?
TVI. Um gajo tem de ver alguma coisa. Desculpem. Não sei o que é aquilo. É sobre casamentos, tipo Big Brother, dá todos os dias, mas também tem uma gala, com padrinhos e sogras famosos. Não percebi. Mais vale não perceber. Ali está a Júlia Pinheiro, cuja brilhante carreira terminou onde começou: na Noite da Má Língua. A Júlia Pinheiro pode ter uma voz de fugir, mas parece-me uma pessoa inteligente. Algures na vida deve ter percebido a fórmula certa de ganhar dinheiro: adular os tolos. Faz pena. Mas que haveria ela de fazer? Ser jornalista? Não. Rodeou-se daquelas figurinhas tipo Nuno Eiró (Serginho, Cláudio e Daniel Nascimento fazem parte do mesmo grupo de bichas tontinhas que acham que não são bichas e fingem que são heterossexuais, amando mulheres como quem gosta de flores para enfeitar jarros) e outros tantos que até são jornalistas mas não têm emprego. Júlia é destemida. Com a idade que tem vestem-na como se fosse uma garota de programa e ela goza consigo mesma. Ontem estava vestida como uma velha gaiteira, não lhe caía nada bem aquele preto todo e os cabelos em pé. Faltava uma bolsa em forma de caixão (eu e a Patrícia vimos um gótico assim em Picoas) ou uma vassoura. Medonha. Bastava a voz para assustar, não?
O programa não tem comentário possível, mas vai buscar aquelas frases feitas sobre casamento que quem se casa acha sempre uma verdadeira comédia negra, nomeadamente «o amor vence tudo». Veja-se esta cena de ontem na gala. Júlia dá o mote que as regras foram desrespeitadas e que agradecia que quem as tivesse desrespeitado avançasse um passo. Dois homens feitos e barbados avançam e todos batem palmas (eu e o Pedro íamos vomitando, foi por pouco) e as respectivas amadas ficam orgulhosas. O que raio tinham feito os moços? Tinham enviado mensagens de amor à socapa. Agora eu pergunto: há câmeras em todo o lado, certo? Repito. Há câmeras em todo o lado, certo? Pois. Era desnecessário. Se foram filmados, não valia a pena mandarem «mensagens escondidas». O meu avô e a minha avó, que namoraram à socapa dos pais, sob duras proibições, iam achar isto uma ofensa.
Justificação de um dos rapazes «saudades» e a Júlia-Bruxa-Má «e as regras?». O segundo «disse à minha noiva que iria sempre dizer-lhe que a amava, estivesse onde estivesse». Mas o gajo foi para a guerra combater? Como é que há homens que gostam tanto de ser tratados como meninos? E mulheres a comportarem-se como meninas? Nunca vi. Ali há choro todos os dias. Alguém morreu? É uma constante frustração com a vida que ninguém percebe. As pessoas fecham-se numa casa porque querem, a ganhar uma verba diária, por isso é um concurso, um jogo, um programa. Quantas pessoas deste mundo vivem fechadas numa casa sem ganhar um tostão? Meu Deus…que se passou com aquela gente?
Ontem salvou-se o Gato Fedorento, aliás como sempre. Vi das coisas mais hilariantes da minha vida, que nunca tinha visto, que nunca esperei. Um dos Tesouros Deprimentes da década. O toureiro João Salgueiro, com vinte anos de carreira tauromáquica (esta profissão estará registada? Haverá fundo de desemprego e seguros para quem leva cornadas?), resolveu fazer das suas. O malandro desafiou um touro de 602 Kg porque, e cito o próprio toureiro «chateei-me com o touro, ele marrou no meu cavalo várias vezes, fiz aquilo num gesto de coragem, não foi programado». Em primeiro lugar, damos todos graças de não ter sido programado…olha se fosse! Em segundo, vamos a votos. O touro foi provocado muito antes, certo? É sempre assim. Chama-se «tourada», significa que ou o touro marra ou nada feito. E aquele até estava manso na arena até se irritar a sério. O cavalo não tinha a culpa, e Salgueiro até devia ter descido do cavalo antes, a ver se apanhava directamente com o touro. Porque será que nunca tenho pena dos toureiros e acho sempre que apanham pouco e tarde demais? Acto de coragem? Que brincadeira é essa? Burrice não é coragem. É burrice.
Os fundamentos tauromáquicos (?) são, no mínimo, constrangedores. Em primeiro lugar, só se luta de igual para igual. Por exemplo no boxe há categorias pelo peso das pessoas, pelo sexo. Olha porem-me a lutar com um gajo de 80 Kg? Portanto, a luta homem-touro é desigual. Como é que o homem resolve isto? Pica o touro, dopa o touro, confunde-o, cerra-lhe os cornos. Porra, não. O homem é que devia engordar até aos 600 kg, ganhar força e depois sim, touro dos bons, cornos bicudos, beiços peganhentos, força no homem. Lembram-se das arenas romanas? Os homens lutavam com os leões, mas tinham músculo, preparavam-se para isso. Não se vestiam à tolinhos, em cima do cavalo (a ver se o cavalo é colhido primeiro, excepto no caso do «corajoso» Salgueiro, que desce do cavalo para o proteger!), com umas varas pontiagudas cheias de fitas (tipo Fernanda da Muleta). Finalmente dão umas «estocadas» (termo técnico para um nortenho designar «quecas»).
Acabo de me lembrar de algo que me daria um desgosto enorme. Um filho chegar-se a mim e dizer «mãe, quero ser toureiro!». Bolas, que pensamento mau.
Os tipos do Gato Fedorento ainda disseram outra coisa estupenda: quem se veste daquela maneira parva que os toureiros se vestem? Resposta: a Vivianne Westwood depois de meter alguma cocaína nas veias. Tenho de ler sobre touradas. Nunca percebi nenhuma. Calculo que faça parte da estupidez humana.

Sunday, October 14, 2007

Tiros no Escuro

Em todos os filmes de terror e de acção que vi na vida, as personagens mais estúpidas – normalmente destinadas a morrer sem grandes dramas – são aquelas que dão tiros no escuro. Dar tiros no escuro é, antes de mais, gastar balas que poderiam vir a ser úteis numa outra ocasião e também correr o risco de acertar algures, nenhures ou…num amigo, num familiar. Por isso, dar tiros no escuro é das coisas mais estúpidas que se pode fazer.
Corremos todos esse risco, essencialmente porque, na vida, queremos sempre ter razão. Mas às vezes ter razão implica descobrir coisas chatas nas quais acreditámos toda a vida e que, no presente, deixam de fazer sentido. É sermos rendidos pelas evidências. Quando percebemos alguma coisa acerca de alguém, queremos provar à força a nossa tese de que, se essa pessoa se dá mal connosco, só pode dar-se mal com o mundo. E não é verdade. Conheço uma boa mão cheia de pessoas que não têm empatia comigo mas têm com outras pessoas, ou vice-versa, pessoas aparentemente difíceis que comigo se dão bem. A vida não é preto no branco. Aquilo que para mim é estúpido e inaceitável, parece ser bastante razoável para outras pessoas. E há coisas que me parecem bem estranhas…
Durante uns tempos gastei as minhas forças, quase obsessivamente, a denegrir mentalmente uma pessoa que me perturbava. Mais tarde voltei a conectar-me negativamente (utilizo a expressão da Diana) com outras pessoas ainda piores ou um pouco melhores. Porque fico eu agarrada ao que nada tem a ver comigo? Tenho uma certa obsessão pela verdade mas também pela extirpação do mal, do errado. A minha figura favorita é o Arcanjo S. Miguel, que derrota o demónio. Todavia tenho também uma perspectiva positiva acerca do «mal» (chamemos-lhe assim): juntá-lo a mais mal. Parece estúpido e destila veneno, mas se juntarmos más pessoas com más pessoas e as metermos no canto delas, não há hipótese de sairmos lesados (só temos é de fugir).
Há uns anos vi uma comédia um bocado amarga com a Roseanne Barr antes da sua dieta. A personagem dela era a de uma mulher que faz tudo pelo marido e pelos filhos mas, traída pelos dissabores da vida, o marido larga-a por uma mulher muito mais nova, bonita, rica e fútil. Ela jura vingança e começa o seu plano diabólico que visa retirar ao marido tudo o que é importante para ele: carreira, casamento, dinheiro, filhos (as prioridades são mesmo estas). Com o apoio estratégico de uma série de colegas e amigas, ela consegue colocar o caos na vida do ex-marido ao ponto de ele ser preso. Para além disso, perdoa-lhe mas não o aceita de volta.
Era bom que por vezes arranjássemos planos e estratégias deste tipo, tendo em vista a desconstrução e a reconstrução das nossas vidas, mas nem sempre mandar ao fundo os outros é uma glória. Acho que o sofrimento dos outros só agrada aos sádicos, daí serem sádicos. Não tenho muita pena do sofrimento que as pessoas infligem a elas mesmas, muitas vezes é uma escolha para se fazerem de «coitadinhas», andarem a penar, fazerem dos outros gato sapato. Enquanto isso vemos pessoas corajosas que são de facto doentes mas fazem tudo para se manterem de pé. A verdade é que o mundo nem sempre é justo e temos sempre de descobrir isso por nós próprios, pior ainda, aceitar esse facto como consumado. Aliás, aceitamos bem a injustiça desde que não seja connosco, regra geral.
Voltemos aos tiros no escuro. Ocorre-me sempre aqueles casos (tipicamente americanos), de pessoas que ouvem barulhos à noite, descem as escadas e, sem querer mas porque possuem uma arma comprada no WallMarket (escreve-se assim?) por meia dúzia de dólares matam a mulher, o filho, o cão. Se partissem o enxoval da sogra (provavelmente feio como todos os enxovais oferecidos por sogras abonadas) não era grave, mas matar alguém é. Para além da culpa, que faz parte dos sentimentos do ser humano, que toda a vida acompanha um pai que faz mal ao filho, ou um marido que faz mal à mulher (ou vice-versa, porque as mulheres também pegam em armas), há a injustiça, o impulso. Porque será que achamos que disparar em todas as direcções nos dá poder? No fundo, queríamos matar um ladrão, mas ele não existia, era fictício, acertámos numa pessoa. Por isso, a vida funciona assim: queremos vezes demais «matar» pessoas quando estamos, afinal, a fazer a caça às bruxas de que falei, queremos à força manter a ordem pelas nossas próprias mãos.
O autor Arno Gruen explica estes processos de uma forma magnânime nas suas obras, explicando todo o comportamento humano através dos processos de cisão interior. Significa que muitas vezes estamos a lutar contra um fantasma ou então uma presença interior, intrínseca a nós próprios e não exterior. A forma basilar das relações humanas é esta: não podemos mudar os outros, mudamo-nos a nós, o que não significa submetermo-nos aos outros, mas sim aceitar que não os podemos mudar. Evidentemente que é complexo e a explicação certinha só um médico psiquiatra (dos bons) pode dar.
Se há coisa que sei sobre mim é esta: sou muito honesta. Se tenho problemas e não sou capaz de os ultrapassar, digo que tenho problemas e não sou capaz de os ultrapassar sozinha. Então peço ajuda. Acho que tenho feito o erro supracitado, tenho sido uma parvalhona a tentar mudar o exterior, mas afinal, porque ainda sou jovem ou porque sou inteligente, sou eu que tenho mudado e acho que para melhor. Os problemas não servem só para estragar a vida. Como diria a minha mãe, a cabeça não serve só para ter cabelo e fazer penteados bonitos, serve para pensar. Quando ela me dizia isto, eu sabia que tinha feito o erro maior: pensar pela cabeça dos outros ou esperar que os outros me resolvessem um problema. Na realidade, somos nós que temos de chegar lá. Vemos bem isso quando damos aulas. Há sempre alunos a quem não conseguimos ensinar nada, mas há alguns que percebem que fazer penteados bonitos não chega (são poucos, eu sei).
Dantes eu precisava ainda mais das pessoas. Quer dizer, continuo a falar que nem uma desgraçada, a rir-me enquanto conto infelicidades, mas não preciso que me digam que sou capaz. Cai sempre bem – não se inibam de o dizer. É evidente que, como acredito muito nos meus amigos, gosto que o Paulinho Mongo me diga que eu sou «boa rapariga e boa mulher». São coisas muito boas de se ouvir e ele é credível (apesar de perder tudo em todo o lado…). É bom ouvirmos coisas da boca de pessoas a quem atribuímos credibilidade. Que eu saiba ninguém consulta pessoas cuja credibilidade é duvidosa, e se alguém o faz é por ignorância. Geralmente vou a médicos recomendados por outras pessoas que tenham sido bem tratadas por eles. Tem lógica. Todavia, há imensa gente que acha a sua opinião válida mesmo sabendo que a sua credibilidade é zero. E é dessas que ouvimos mais opiniões, geralmente insensatas. São os tiros no escuro. É desses que temos de nos desviar. Lembra a biografia da Sade, que chumbou em todos os exames vocais, mas que tem uma voz belíssima. Terá ouvido opiniões sensatas e insensatas e teve de chegar às suas próprias conclusões sozinha. É como tudo na vida.
A Faculdade de Letras não tem aquilo a que podemos chamar «avaliações objectivas». Escrever e interpretar tem a sua parte científica, mas a nota é dada por quem lê, gosta, aprecia (ou não), escrutina e ajuiza. Ouvimos dizer tão mal do nosso trabalho, chumbamos numas cadeiras porque não sabemos escrever e passamos noutras porque escrevemos bem. Afinal, onde está a verdade? Temos sempre de discernir o professor que dá uma opinião sensata e construtiva daquele que dá tiros no escuro. Nenhum de nós pára de aprender nunca. Tudo é uma experiência constante de aprendizagem e de domínio de instrumentos de saber. Quem somos e o que sabemos para além da opinião das outras pessoas? Essa é a grande prova de fé em nós próprios.
Eu acho que sei escrever. Mas acho por mim, não acho só pelos outros, e não me sinto enganada. Já me li e gostei. Quando escrevo não me sinto o Zé Cabra-que-acha-que-é-cantor, nem o Emanuel e o Quim Barreiros, que cantam para ganhar uns trocos (mas têm carros de luxo e casas com piscina). Quem sou eu para os criticar? Mas na verdade também não me sinto uma Margueritte Duras ou uma Simone de Beauvoir. Escrevo por diversão mas também porque acho que sei escrever. E acerca da escrita só oiço quem me interessa e não quem manda tiros no escuro. As regras que aplico à minha escrita deveria eu aplicá-las à minha vida, mas nem sempre o consigo com suficiente discernimento. Como diz a Patrícia, por vezes a minha escrita transcende a minha vida, ganha força e balanço e vai mais à frente. É estranho, mas ela tem razão. Não é pessoa de dar tiros no escuro.
Quando somos pessoas inseguras temos duas soluções: ou criamos uma barreira de segurança (que nos permita fazer a destrinça entre as «opiniões a serem ouvidas» e as «opiniões a serem rejeitadas»), uma espécie de «delete» do lixo que ouvimos (e muitas vezes não somos obrigados a ouvir); ou então solucionamos a coisa de uma forma um bocado triste, mas talvez a mais usual, que é engolir e acreditar no que nos dizem e julgar o mundo por esse prisma. Nesse caso, qual a diferença entre uma pessoa assim e uma marioneta? Nenhuma. Curiosamente este é o caminho mais fácil e também o mais seguido pelas pessoas. É muito fácil sermos manipulados e há pessoas que gostam disso, não têm qualquer problema com uma suposta falta de liberdade constituída por não raciocinarem pela própria cabeça (afinal, dá muito mais trabalho fazê-lo).
Todos temos um caminho a percorrer. Creio que o caminho da destrinça entre o que interessa e o que não interessa ouvir/considerar é mais difícil do que o outro, todavia, não sei, porque a falta de autonomia também traz amargos na boca, faz estragos na vida e, em retrospectiva, a diferença entre alguém assim e uma planta é que uma pessoa assim não faz a fotossíntese. Há pessoas para quem o engano é a salvação. Se descobrissem a verdade, morriam de desgosto.



A simplicidade

Só há uma maneira de encontrarmos simplicidade: nas crianças. Os bebés são despreconceituosos ao máximo e também nos ensinam a ser pessoas simples. O Serginho, meu sobrinho, não se inibe de dar traques enquanto come pedaços de pêra ou de maçã, sentado junto aos tios. Os bebés podem fazer quase tudo, são reis e senhores de um universo muito pequeno, porque estão em formação, não têm propriamente uma filosofia de vida que não seja a principal do ser humano: sobreviver. Um bebé gosta de botões como nós gostamos de filmes, mas a razão desse gosto é simples: cor e forma, depois o toque. Por isso eles adoram telemóveis. Aí vem o som. Um bebé gosta de explorar pés, mãos e a boca das outras pessoas. A Beatriz, sobrinha da Paula, coloca as mãos na minha boca com a mesma destreza com que as coloca num urso de peluche – e sem pedir autorização. Um bebé não diz «deixa-me ver a tua boca, posso?». Um bebé não é dentista, é um explorador. Uma boca tem tanta graça como uma tomada na parede, um brinquedo ou um medicamento. Não há a noção de causalidade implícita, do género, «se tomar isto sinto-me mal e posso morrer».
Um bebé vomita, caga, esperneia, grita em qualquer local e não vai para a casa a pensar «que figurinha fiz eu hoje! Coitados da mamã e do papá!».
Um adulto tem uma ganga de coisas difíceis em cima: a moral, antes de mais, a noção de comportamento socialmente aceite e/ou correcto, a noção de consequências, etc. Por isso, se um adulto faz sabe o que está a fazer, ou pelo menos podemos pressupor isso, a menos que haja doença mental grave.
Para nós, a simplicidade é das coisas mais difíceis de conseguir. Tudo passa a ser difícil a certa altura da vida. Essa altura pode ser aos dezoito anos, antes ou depois, pode até ser muito tarde. As coisas deixam de ser simples, ou porque temos de suportar os problemas e já não há quem os suporte por nós, ou porque temos dívidas, ou porque alguém está dependente de nós directamente. Sim, os problemas começam aí mesmo, quando alguém depende de nós.
Simplicidade e burrice são coisas diferentes, naturalmente. Aquilo que escrevi acerca dos bebés nem é simplicidade, é uma aprendizagem muito complexa da vida, que nós, adultos sempre cheios de ideias, achamos simples. Para nós, simplicidade é outra coisa. Acho que se prende com os intervalos do complicado. Quando uma coisa complicada tem um pequeno intervalo, às vezes conseguimos cheirar uma flor, dar um passeio, ter uma conversa agradável, enfim…recordar como é bom cheirar, tocar, lamber, sem haver pensamentos pelo meio. Ler um livro também me parece muito agradável, mas exige mais de nós. Nem sempre é simples. Mas o conhecimento, a filosofia, a pesquisa podem tornar-nos seres muito mais esclarecidos e felizes. Há aqui um colega na biblioteca que diz que descobriu a felicidade desde que se inscreveu num doutoramento e tem quase cinquenta anos.
Alguns dos meus alunos eram burros. Já crescidos, mas com uma incapacidade de abstracção medonha. Como seriam a matemática se eram incapazes de perceber que o Consílio dos Deuses, episódio mitológico de Os Lusíadas era apenas um enfeite do texto e não tinha acontecido mesmo? Aliás, todos os dias eu era surpreendida por perguntas deste calibre: os deuses decidiram mesmo a sorte dos portugueses? As pessoas falavam em verso no tempo de Camões? Não era melhor ele ter salvo a Dinamen em vez do livro? Assim perdeu uma namorada e fez com que a obra dele desse trabalho aos alunos. A melhor observação que tive, essa mais simples e muito menos burra, foi a de um aluno de que me lembro muito bem, volvidos tantos anos, que ficou chocado com o epitáfio escrito a Camões, que o designava como um «grande poeta» mas também como alguém que morrera na miséria. O meu aluno, chocado, saiu-se com esta «isso não é muito positivo, stôra. Se eu morrer prefiro que escrevam: «aqui jaz o Fábio, que curtiu bués e se divertiu à grande nesta vida!». Acho que, para além de simples, é honesto q.b.

Wednesday, October 03, 2007

Um Anjo à Minha Mesa

Há muitos anos, não me lembro quantos, o Paulinho Mongo emprestou-me um dos filmes da minha vida, uma daquelas pérolas cinematográficas que não esquecemos nunca mais. Chamava-se «Um Anjo à Minha Mesa», filme de Jane Campion (1992), baseado na autobiografia da escritora neozelandeza Janet Frame. Fiquei estupefacta. Nunca tinha visto um filme que tanto apelasse à sensibilidade humana, ao mesmo tempo retratando os antípodas: a crueldade dos diagnósticos psiquiátricos feitos à toa, num tempo em que qualquer doença mental dava direito a uma lobotomia (ainda falam da Idade Média). Essa foi a história de Janet Frame, escritora premiada e prova viva de como a criação salva o mundo, recriando-o, sistematizando-o e pode salvar mesmo a própria vida (o prémio arrecadado pela autora aos 28 anos, com a obra Os Cárpatos do Nosso Jardim salvou-a da maldita lobotomia).
Jane caracteriza a personagem de Janet no filme de uma forma magistral: tímida, gorducha, esquisita, anti-social, todavia, brilhante, criativa. Portanto, uma pessoa sensível, pobre, com uma vida difícil, que não suporta olhares nem avaliações externas, por isso mesmo passa de professora primária a empregada de limpeza quando um dia está sob o olhar de um júri e…é incapaz de soltar um esgar que seja, fugindo da sala de aulas.
Este filme acompanhou a minha vida, sobretudo o meu ano de estágio (creio que o Paulo mo emprestou um ano antes, portanto em 1999), com todas as avaliações subjacentes. Senti-me sempre uma pessoa de sorte por ter nascido em 1977 (e não em 1924, como a autora), ter avós e pais a protegerem-me, algum dinheiro para viver nos arredores de uma cidade chamada Lisboa. Tive mais sorte na vida do que Janet Frame, mas muito menos talento do que ela. Achava que a minha vida tinha sido solitária até ver aquele filme e me aperceber do quão enganada estava. Ninguém no filme está do lado de Janet excepto o seu próprio talento criativo. Ali é tudo. Ali basta. O talento é o anjo à mesa de Janet, o seu anjo da guarda, sem ele ficava lobotomizada, desfigurada, desconhecida e passaria na história como mais uma ruiva gorducha que morreu louca num hospício.
Janet tem comportamentos auto-destrutivos que eu nunca me lembraria de ter: empanturra-se de chocolates, arranca os próprios dentes. A dor de se mutilar e odiar acompanha-a ao longo da vida e transforma-se em relações estéreis, timidez obsessiva. Se me tivesse lembrado deste filme antes de me casar com o Pedro, tê-lo-ia compreendido muito melhor como pessoa. Aqui se vê a importância do Paulinho Mongo na minha vida, em me emprestar filmes destes. Eu é que tenho memória curta. É o mal de muita gente.
Em parte também eu sou parecida com Janet Frame, como o Pedro. Em última instância, como diz o Pedro, somos parecidos um com o outro e por isso é que casámos. É o poder do amor e da criação que nos salva da loucura, e já não é da loucura do mundo, mas daquela que nos rodeia de perto. Se eu tivesse nascido em 1924 certamente já estaria lobotomizada com tanta sensibilidade exarcebada a comentários tristes. Diagnóstico da Janet: esquizofrenia. O meu: paranóia ou psicose paranóide. O que há de comum? Nem eu nem ela somos loucas, apenas sensíveis. Quando Janet sai do último hospital psiquiátrico, um dos médicos diz-lhe (a ela ou à irmã, não me lembro bem): “ Afinal não tem esquizofrenia, é apenas sensibilidade a mais “. Olha que bom… A mim dificilmente quem me chamou paranóide irá um dia chegar ao pé de mim e dizer «afinal enganei-me, és só sensível a coisas que eu não sou». Além disso, eu posso mesmo fingir que sou paranóide, ninguém me interna e é capaz de dar jeito no contexto presente.
Há muitas doenças mentais por diagnosticar e outras tantas diagnosticadas que as pessoas não tratam. Mas eu tenho-me lembrado daquele fulano dos Doze Contos Peregrinos do Gabriel Garcia Marquez que fica entalado num hospital psiquiátrico a dizer que quer telefonar e a quem diagnosticam também uma «psicose paranóide» (é cá dos meus), todavia aquilo tem um contexto que justifica essa obsessão, o tipo é normal mas acaba por enlouquecer com tantos dedos que o apontam como louco.
Que sorte eu viver em 2007! Se fosse há uns séculos atrás estava já na fogueira por causa de um boato maldoso e se fosse em 1924 tinha o mesmo fim da Janet Frame. Em 2007 ser louco é uma brincadeira…uma brincadeira de mau gosto. Uma paranóia é uma «psicose de delírio crónico, lúcido e sistemático dotado de uma lógica interna própria» (cito a wikipédia, não é grande fonte mas estava aqui à mão de semear). Diferentemente da esquizofrenia paranóide, não afecta as funções psíquicas externas (portanto eu devo ter a psicose, visto que aqui no trabalho ninguém dá conta de nada e até consigo dar aulas sem se notar). O delírio é amplo e pode estender-se tipo complô, ou como se diz hoje em dia de forma culta, uma «cabala» prejudicial ao sujeito. O sujeito (portanto eu) assume assim «atitudes de defesa e vingança inadequadas e graves, conduzindo a graves defeitos pessoais e sociais». Mais vocábulos fazem parte das definições desta doença, entre eles perseguição, ciúme e megalomania, de que eu obviamente sofro, veja-se o tamanho deste blogue e as suas pretensões dantescas.
Não posso expor no blogue os quês e os porquês todos de ter sido assim «classificada», nem me interessa. Só acho os termos tão subjectivos que só um psiquiatra saberá do que se está a falar ou…estaremos a falar de todos nós num ou noutro momento da vida, quando trabalhámos «naquele sítio» que não gostámos, com pessoas que nada nos diziam nem tinham conversas de jeito e pareciam olhar para nós de lado. De resto, só conheci uma paranóide na vida, a Primitiva, colega da Universidade que, sempre que se brincava com ela gritava «Não roubei o lugar a ninguém!», de olhos bem abertos e esbugalhados. Gosto especialmente da parte dos graves defeitos pessoais e sociais, que, a serem doença psiquiátrica, já não dependem de quem vê e aprecia ou de um odiozinho de estimação, são assim para toda a gente. Digamos, a típica pessoa agressiva e odiosa que se dá mal como tudo e com todos, que não aguenta um emprego mais de dois meses que está a andar à pancada e ser despedido e depois diz «é um complô contra mim!». Deve ser isto que eu tenho, mas é assintomático, ou então é uma espécie de histeria colectiva, os meus amigos sabem que sou assim e nunca me disseram nada com medo da vingança temerosa deste ser tenebroso. Aqui na Universidade o sr. João diz «bom dia, doutora» com medo de levar um tiro e claro que arranjo muitos conflitos com toda a gente, passo à frente nas filas, sigo as pessoas, atiro laranjas podres a vidros, faço telefonemas anónimos…
Provar a minha suposta normalidade seria tão inútil como a Janet Frame provar que não era esquizofrénica nem precisava de choques eléctricos. Fizeram-lhe à mesma o diagnóstico e condenaram-na a duras provações que só lhe aguçaram a escrita. Quem dera que eu seja assim tão rija e que a minha escrita me transcenda. De tudo o que já me aconteceu na vida, só concluo que tenho mais ainda a aprender. Não tem sido fácil esta caminhada longa, aflita e com milhares de risos e de anedotas pelo meio. Nos intervalos estou, evidentemente, muito triste, mas isso é porque sou humana e não consigo evitar. Também não evito «classificar» os outros de forma aguçada, como me fazem a mim, mas nunca numa onda psiquiátrica, há palavras com contexto próprio cujo significado depende em muito da patologia em causa.
Muitos escritores, criadores, artistas têm doenças mentais do mais variado estilo e isso não lhes diminui o talento ou a humanidade. A bem ou a mal, não é mesmo o meu caso. Em 2001 entrei pela primeira vez num gabinete de um psiquiatra, depois no de um psicólogo e o diagnóstico foi demasiado positivo para eu me achar «louca». Sempre me disseram que era sensível e inteligente. Nunca ouvi a palavra «psicose», «neurose» ou outra qualquer maleita psiquiátrica associada à minha pessoa. Cheguei a ouvir «stress pós-traumático» depois da morte da minha mãe ou a palavra «depressão», mas também ouvi «está curada» por diversas vezes. Acho-me demasiado honesta comigo própria para, no caso de ser doente mental, não assumir. Dizem no entanto que os loucos nunca se acham loucos, por isso nunca se sabe.
O caminho nunca acaba e jogar à defesa é essencial. Digo sempre que daqui para a frente é isso que se passará, mas claro que todos os dias erro e tento corrigir. A postura é a da distância do que não interessa e a proximidade do essencial da vida. Tentar provar a minha sanidade mental parece-me um absurdo difícil de conseguir, mas a minha loucura tem acalmado ânimos, que assim suspiram e fazem o controlo dos valores tomados como «certos» (que são, afinal, os únicos possíveis no contexto em causa). É como queimar bruxas na fogueira: fica o mundo isento de pecado. Quer as bruxas o sejam ou não. Pouco interessa para o caso, parece-me, e além disso eu tenho muitos anjos à minha mesa, por isso nada me derrota.

Monday, October 01, 2007

Coisas que gostaríamos que acontecessem aos nossos inimigos, mas nunca fomos capazes de dizer

…carrapatos atrás das orelhas…
…sarna para se coçarem…
…carimbos na testa sempre que dissessem uma asneira/mentira maldosa…
…dançar com uma obesa com pé-de-chumbo…
…ver filmes indianos o resto da vida…
…ouvir programas da Fátima Campos Ferreira…
…transformarem-se em pega-monstros fechados em pacotes de batata-frita...
…ouvirem Zé Cabra…
…reencarnarem num tampão da Linda Reis, mais conhecida pela «pomba-gira»…
…conviverem com gente da mesma espécie…
…existir de repente justiça divina…
…falar com a Paris Hilton mais de 5 minutos seguidos…
…voltar à Idade Média e não ser rico nem pertencer à Inquisição…
…ser um piolho da cabeça do Bob Marley...
...ver a versão dos anos 70 do «Massacre do Texas» (é de ficar surdo)…
…decorar e estudar a fundo todas as frases famosas de Oscar Wilde…
…saber Os Lusíadas de cor e salteado…
…fazer «pranchas» o dia todo (consiste numa posição estúpida, tipo prancha de surf, que faz doer o corpo todo)…
…usar as roupas da Vivianne Westwood (só pra avisar que não cai bem em toda a gente)…
…conhecer pessoas que-nunca-mais-se-calam…
…contracenar com o Matt Damon ou o Ben Affleck…
…viajar ao lado de uma pessoa porca sem poder mudar de lugar…
…ser um burrié do Savimbi (paz à sua alma!)…
…ler o diagnóstico psiquiátrico da sua própria pessoa (é pior do que a sina!).

A casa

Era uma vez uma casa…não posso divulgar a morada porque senão toda a gente que lê o meu blogue vai querer lá ir. Vou chamar-lhe «a casa da Paula», com a advertência de que a casa não é dela, é dos pais, e que este caso tem história, pois dantes havia amigas parvas da Paula (como eu) que se atreviam a ligar para a casa dela perguntando «é da casa da Paula?» e a mãe respondia «não, a casa é minha, mas a Paula não está».
A casa da Paula é o lugar mais habitado e seguro que conheço. Por muito vazio que fique, está sempre cheio. Por muitas pessoas que saiam, mais entram. É uma casa saudável, pelo que me é dado a ver. Não existem casas perfeitas, ou melhor, famílias perfeitas, todas têm problemas, ovelhas brancas, ovelhas negras, avós chatas ou avôs rezingões como eu tive. Eu até tive uma colecção de madrastas ruins e outras tantas que passaram na vida do meu pai mais rápido que fogo de artifício num dia de festa. No entanto, a minha casa sempre foi muito mais fechada e inabitada do que a da Paula, sobretudo depois da morte da minha mãe. Porque depois disso houve silêncio e ficámos sem fala ou palavras possíveis para denominar o momento. O presente passou a arrastar-se para o futuro com muita dificuldade e alguma dor.
A casa da Paula é muito especial por causa das pessoas que a habitam. Por causa da Paula, da mãe dela, do pai, do irmão, da cunhada, das primas, dos sobrinhos e primos e amigos que chegam e ficam na casa de passagem. Lembra alguns costumes africanos, em que as pessoas chegam às casas, tomam as suas refeições e continuam o seu caminho.
Desde sempre que me habituei a ir àquela casa. Depois a Paula casou, saiu de casa, mas a casa ali está, com a mesma dinâmica para a Paula e para os amigos da Paula. Há sempre café e bolachas. Há sempre milhares de conversas, de desabafos, há centenas de coisas a passarem-se em paralelo à casa, ou em diagonal. Há ali boas energias. Os filhos não estão presos aos pais com pregos obrigatórios, a nora é tratada como mais um elemento (de uma família saudável), e os amigos fazem parte da vida. Cheguei a um ponto da vida em que toda esta normalidade me parece tão sensata e doce que quase me apanha desprevenida.
A minha casa sempre foi muito mais anormal do que a da Paula, nas minhas considerações. Mas sempre foi uma boa casa, também. Como diz o meu irmão, pertencemos a uma casta de gente que quando tem problemas se ri e isso é especial. Contamos uma anedota, discutimos o quão parvos eram os nossos pais e o quão chatos eram os nossos avós, e vemos sempre que isso não mudou. A avó continua a achar que a cristaleira nos vai cair em cima a qualquer momento e que temos de comer até rebentar ou morremos magrinhos. O meu pai continua a achar que o feijão verde enfeita a sopa mas não é para comer e que morangos e amoras são exactamente a mesma coisa. A minha mãe e o meu avô resolveram ser anjos antes de tempo e já não nos fazem companhia presencialmente, mas devem andar por ali e rir-se de tantos disparates.
Recentemente a família cresceu e veio a Elisabete, depois o Serginho e depois a Helena. A Elisabete é como uma irmã para mim (sorte a minha, que as cunhadas às vezes também parecem salamandras com veneno pegado às patas), o Serginho (meu sobrinho) parece ser intransigente, ou a cadeira é dele ou nada feito, mas ainda não lhe vemos os traços todos de carácter, é muito pequeno. A Helena veio mais tarde, é a minha madrasta, mas eu prefiro dizer que é a vizinha do 4º direito, porque «madrasta» encerra uma série de cognomes, epítetos, ideias preconcebidas muito desagradáveis, e felizmente a Helena não é nenhum deles. É apenas ela própria e ouve-me com disponibilidade e graça.
Não entro muitas vezes na casa dos meus pais. Os últimos anos foram duros e eu tive de lutar um bocado para me erguer ou reerguer. A casa não tem movimento nenhum, é como se estivesse morta e talvez fique melhor quando eu tirar de lá todas as minhas coisas. Mas dali só saiu gente e o meu pai basicamente vai lá buscar o que precisa, levando pratos, talheres e copos do 4º esquerdo para o 4º direito. Portanto, nada tem que ver com a casa da Paula, melhor, dos pais da Paula. A casa dos meus pais está desactivada. A casa dos pais da Paula é eterna: está lá sempre alguém, está lá sempre a máquina de café e as bolachas, há sempre alguém que vai lá dormir, pernoitar, porque «é muito tarde para voltar para casa e a Paula tem casa em Lisboa», há sempre secretárias, escrivaninhas e computadores para se trabalhar, livros para ler, mesas para escrever, filmes para ver. E tudo isto não está ali morto, a flutuar no universo, tudo isto tem uso, apesar de a Paula e de a mãe da Paula dizerem sempre que «está tudo cheio de pó».
A vida ali existe também pelas boas relações que nós, amigos da Paula, mantemos com os pais e restante família, e vice-versa. Creio que a Paula sabe que são relações que já a transcendem, quer dizer, já gostamos deles para além da existência dela, mas isso a mim parece-me bom, um dia quando for mãe (se conseguir ter coragem para tanto) quero permitir isso aos meus filhos, a possibilidade de eu fazer amigos através deles. Deve ser fantástico…
Não posso dar a morada da casa da Paula, senão vocês iam todos para lá. Mas fica mais ou menos no final do arco-íris, tipo pote de ouro. Perguntem à Ângela (o morzito), à Patrícia França, à Patrícia Torres, à Sofia, a mim e a muito mais gente que já por ali passou, pernoitou, bebeu café e comeu bolachas (embora eu jure que já lá comi muito mais refeições variadas!). Dava um prémio a alguém que encontrasse uma casa como a da Paula, perdão, como a dos pais da Paula.

As cartas da vida

Este foi um ano de muitas mudanças. Para mim, para muitos amigos meus, muitas amigas minhas. Há quem diga que 2007 é um ano de mudança e 2008 um ano de estagnação, do ponto de vista cósmico. Para mim 2007 foi sempre a andar, a mexer, a fazer, a destruir, a construir, a sistematizar e…a conseguir perceber alguma coisa da vida.
Em Agosto deste ano deu-se uma mudança radical na minha vida. Comecei a acreditar. Considero que isso foi uma das coisas mais positivas que aconteceu em toda a minha vida, porque há uma diferença grande na qualidade de vida de quem acredita em relação a quem não acredita. E quando digo acreditar digo acreditar seja no que for: em nós próprios, em Deus, no cosmos, na natureza, na vida. Sempre fui céptica e ateia. Até aí tudo bem, se isso tivesse alguma coisa a ver com o que sonho, com o que sinto, com o que sou. O ateísmo tem a ver o exílio de Deus, em quem deixei de acreditar e confiar há muito tempo. Mas o cepticismo, esse, não posso mais aplicá-lo à minha vida.
Tive e tenho grandes dificuldades em dar crédito a algumas das minhas intuições, sentimentos e emoções, mas de repente, no encontro fortuito com cartas de tarot, dou comigo a pensar: ali estou eu. O Pedro acredita nas cartas como espelho objectivo do pensamento. Eu simplesmente acredito nelas, ou porque o coração me diz que sim ou porque escolhi acreditar. E porque não? E se for uma escolha? E se as cartas forem uma espécie de talismã da sorte, um placebo escolhido? Porque não gostar delas, acreditar nelas na mesma?...
Este aspecto marca toda a diferença numa vida. Se acreditarmos em alguma coisa – e não falo em viciar-me em leituras de tarot – pelo menos temos um ponto de apoio. E sou franca: sempre me faltaram pontos de apoio, filosofias positivas de vida, optimismo ou crédito seja ao que for.
As cartas dão algum optimismo, mesmo quando são más e as leituras saem corrompidas pela negatividade das nossas mãos e das nossas energias, são caminhos apontados, soluções possíveis, passíveis de mudança, como nós. As cartas conferem dignidade a pensamentos que recalcamos porque muitas vezes sabemos ir ter problemas com as nossas decisões.
Descobri que é bom acreditar em alguma coisa: cartas, anjos, tarot, astrologia, ciências ocultas, xamanismo, etc. Talvez isso não enfraqueça o ser humano, o raciocínio lógico, mas o estruture de forma a enquadrar-se no mundo. Tenho ainda grandes dificuldades em acreditar na reencarnação. Acho sempre que as pessoas que morreram são como feixes de luz, ficam transformadas num ponto de luz no Universo gigante. É assim que vejo a minha mãe e o meu avô também. Transformados. Mas de reencarnação não percebo muito. Tenho vindo a aprender.
A coisa que mais gosto nas cartas é sentir-me perto da minha mãe, como se ela vivesse nesse feixe de luz que eu imagino e me fizesse companhia quando eu quero. Somos muito possessivos – queremos as pessoas que amamos ao pé de nós. A maior prova de humanidade (e de amor) é saber perder as pessoas, deixá-las ir, entregá-las ao universo. Durante uns tempos, as pessoas exercem determinados papéis no mundo, de pai, mãe, irmão, marido ou mulher. As pessoas largam esses papéis quando morrem, mas nós que vivemos nunca mais nos esquecemos deles. Queremos as pessoas de volta, mas sobretudo queremos os papéis exercidos pelas pessoas. Quando tenho saudades da minha mãe sou egoísta: não é tanto do ser humano que ela era que eu tenho saudades, mas sim do papel que ela exercia, porque me habituei a esse papel protector. Todavia ela, que já morreu, diz-me que ainda me protege. Portanto ainda exerce, noutro domínio do universo e de outra maneira completamente diferente, o mesmo papel de mãe. Cabe-me a mim saber lê-lo e é essa a aprendizagem a que me dedico agora.

A Igreja

Não gosto de missas. Acho-as mecânicas, repetitivas, chatas. Mas esta foi curta, não me posso queixar, com meia dúzia de pessoas daquelas que conhecem a missa de cor e sabem logo quando hão-de falar. Assim é bom ir à missa, nem que seja pela igreja, pela compenetração humana, pela oração. O padre era daqueles que resumia a missa em meia hora, coisa simples. Rezava na profundidade da alma, apesar da mecanicidade dos gestos.
Lá estava o pessoal do bairro, reunido há um ano atrás numa festa barulhenta, com arroz à mistura. Era o mesmo pessoal, mas agora chorava copiosamente a morte do Z., marido da C. E eu na fila da frente com ela, entre ela e a mãe, a fingir que rezava, mas no fundo compenetrada em que a alma do Z. ficasse a habitar um lugar calmo, seguro, pacífico, pedindo protecção ao meu guia espiritual, a minha mãe, para a C.
Gosto muito de viver. Não por ser uma obrigação, mas porque há pessoas que valem a pena. Quanto mais amigos perdemos, vemos morrer ou até sofrer, mais devemos dar valor à vida. É preciosa q.b., como açúcar num bolo que não seja para diabéticos.
Ao meu lado esquerdo a C. segreda-me «quando quiseres vai embora, não estás presa nem faças frete»…como a C. é compreensiva e boa rapariga! Todavia, não vou embora, oiço lágrimas, oiço suspiros, mas a C. aguenta-se com a sua cara risonha, mas muito triste e as suas olheiras gigantes, toda vestida de preto, que não lhe cai nada bem. Custa-lhe a leitura das epístolas, aí hesita uma lágrima porque está perante todos. No final, algumas pessoas vão cumprimentá-la e a mãe dela diz-me à parte «obrigada por tudo, minha querida». Fico feliz. Fiz pouco, quase nada mesmo, mas estive ali, tão perto quanto podia.
A igreja respira calma e harmonia, contrastando com a minha ansiedade interior. Chego a casa e fico banzada: com vidas tão tristes como a da C., ainda há gente que se preocupa em ofender o próximo, em denegrir a minha imagem? Fico a pensar que tenho mais que fazer na vida, nomeadamente ajudar a C., que precisa de companhia. É por isso que a vida vale a pena.