Thursday, September 20, 2007

A vida como ela é

Há dias em que a vida é muito estúpida e dói que se farta. São os dias do diagnóstico e também os dias do fim. Eu explico. Quando uma doença é diagnosticada cai tudo por terra, quando uma pessoa morre cai tudo também. A diferença é que no segundo caso somos obrigados a aceitar a inevitabilidade do mundo e da vida, somos obrigados a perder a esperança.
Quando a minha mãe morreu, eu não sabia nada sobre a morte, tal como não sabia nada sobre a vida. Por não saber nada de uma, nada sabia sobre a outra. Era uma ignorante nestas coisas. Agora sei um bocadinho mais, melhor, conheço um bocadinho mais, porque se soubesse realmente, não ficaria tão chocada com a morte. E ainda fico.
Estes dias tenho pensado na C., na vida que ela tem tido, e bolas!, a vida é mesmo estúpida! Eu já não achava que certas coisas fizessem sentido na minha vida e às vezes custa-me tanto enquadrá-las que choro. Choro com a «anormalidade» dos factos. O que faz isso é uma coisa chamada «expectativa». Não me venham com tretas, todos sonhamos ser felizes, todos temos expectativas. É a expectativa que cria a ilusão e, mais tarde, a desilusão. O ideal seria o estoicismo de nada esperarmos da vida. Mas esperamos sempre alguma coisa, de preferência muito boa. Se não tivéssemos expectativas, nunca íamos a concursos. Se concorremos é porque achamos, mesmo numa hipóteses em um milhão, que podemos ganhar alguma coisa. Assim é a vida. Por isso vivemos. Porque achamos que, de alguma forma oud e outra, vamos ganhar.
Não sei o que espera a C. da vida, mas a regra é não ter nada daquilo com que sonhou, com os piores obstáculos que se pode imaginar. Eu não tenho tudo aquilo com que sonhei, mas tenho muito mais do que há uns anos esperaria ter. Agora a C. tem uma aprendizagem dura, kármica mesmo desta vida cruel que tem levado.
Hoje telefonou-me, e passados segundos de cumprimento, absolutamente normal nela, começou a chorar que o marido tinha morrido e que tinha sido notificada por telegrama. E eu parva (ninguém sabe bem o que dizer nestas alturas!): «a que horas ele morreu, C.?». Como se isso interessasse…e ainda me despedi com outra gaffe histórica «Fica bem, amiga!». Claro, uma pessoa perde o marido, com quem casou há apenas um ano e eu digo-lhe «fica bem, amiga».
Para mim era óbvio que o Z. estava mal, já o tinha visto e o aspecto dele era de uma pessoa fraca, completamente acabada. Eu percebi que era o fim, não é preciso ser mediúnica para se saber essas coisas. Bastava olhar e também perceber o que a C. ia contando, que era grave. Além disso, ela estava perdida. E quando digo «perdida», sei do que falo, perdida nos acontecimentos, na tragicidade do momento, nas correrias de um lado para o outro, no suportar tudo sozinha, no constante virar costas dos médicos…perdida na falta de informação que temos, neste mundo ocidental, do que é a morte, como é a morte, o que se deve fazer. Nos mails ela ia-me dizendo «graças a Deus te conservo como minha amiga há tantos anos!», o que me faz acreditar, todos os dias, que a consigo ajudar, que estou no caminho dela por uma razão e ela continua no meu também por uma razão.
Nestes últimos dias, não tenho contacto com a minha mãe, não lhe consegui resposta, quando lhe perguntei «e a C.? e o Z.?», a minha mãe limitava-se a deixar-me com as minhas intuições. Quando assim é, é porque eu sei que vai acontecer. Então ela não aparece nos meus sonhos. Manda-me apenas ficar no caminho das pessoas, ali onde estou, em lugar seguro, a ver, a perceber, a saber, a apoiar. Será que estou a fazer isso como ela fazia? Será que sou competente? Será que estou a ser boa amiga? A minha mãe diz que sim. Para já, os problemas da minha vida ficaram numa caixa. A C. precisa de ajuda, de muito mais ajuda do que eu.
Esta noite o meu sono foi confuso, era só distúrbios, barulho, coisas partidas e pelo meio viagens para muito longe, lembro-me que sonhei com a Indonésia e depois Polinésia. Lembro-me de pensar que quem morre vai direitinho para a Polinésia, porque tem paisagens lindas…Estará lá o Z.?
A vida é muito estúpida. Mas a minha mãe continua a dizer que faz sentido. Palavra de mãe.



«Declaro-vos marido…e marido»

Confesso que nunca iria ver o filme, achei desde logo que seria dinheiro mal gasto, uma comédia tosca e bacoca. Mas não. Havia duas opiniões, para mim de confiança, a do Paulo e a da Patrícia, que diziam bem do filme. Por isso fui vê-lo, sozinha, numa tarde em que não me apeteceu voltar para casa cedo.
O mérito do filme não é a história, que não me parece extraordinária, mas a mensagem, directa, simples e pedagógica: todos diferentes todos iguais. Um pai, bombeiro de profissão, viúvo há três anos, resolve casar com um colega e amigo de longa data, forjando a sua orientação sexual, de forma a deixar os filhos seguros em caso de acidente ou morte. O amigo, mulherengo convicto, entra na jogada para safá-lo.
O casamento, uma fraude mal encenada, é investigado a pente fino, pelo que os dois homens ficam num dilema: como se comportam os gays? Este é talvez o mito ou o estereótipo que mais domina a história, porque o homem que os investiga chega a dizer-lhes «o vosso lixo não me parece gay». Colocados perante este problema, os dois homens, heterossexuais, tentam entender o que fazem dois gays numa casa onde habitam também duas crianças (curiosamente, o rapaz tem tendências homossexuais), dizendo coisas como «estamos sempre a fazer sexo…sexo muito gay», dando palmadas no rabo um do outro constantemente e mandando piropos ao rabo do carteiro. A personagem de Adam Sandler (desculpem nunca me lembrar do nome das personagens nos filmes) diz «vou buscar os meus discos do Boy George» (fartei-me de rir com essa referência) e arranja um quadro dos Wham nos seus primórdios.
Um dos momentos altos do filme é a festa gay, onde luz, cor, acção, movimento e muita adrenalina se misturam, e em que a personagem de Adam Sandler brinca com as palavras dizendo «estou muito gay» (gay=alegre). Mas a imagem dos gays passa para lá deste estereótipo, quando um dos bombeiros (o mais machão, com cara de mau) assume a sua homossexualidade. Apesar da gestualidade confusa quando se assume homossexual (parece que todos os gays têm de ter trejeitos de fêmea!), alguns mitos caem por terra com esta comédia, mostrando também como dois homens, qual deles o mais alheio à realidade da homossexualidade, assumem a defesa dos princípios da liberdade do ser humano, da liberdade de escolha, da liberdade de ser/estar na vida como se quiser (reparem como termina a festa e a manifestação anti-gay, ou o apoio incondicional da corporação de bombeiros aos dois homens que fingem o casamento). O discurso final da personagem de Dan Ackroyd, o chefe dos bombeiros, diz tudo: «sei que este casamento é uma fraude, embora com boas intenções, mas o que interessa se se é homossexual, heterossexual, transexual, etc.?».
O mundo é composto de gente diversa, essa é a grande mensagem. Também a menina discursa brilhantemente em Tribunal, oferecendo uma vasta gama de espécies animais que praticam a homossexualidade e dando esse aspecto como natural na vida do planeta (quando ela um dia estudar literatura e cultura gregas ainda ficará mais espantada!).
Muito boa a cena de «apanhar o sabonete» nos chuveiros comuns dos bombeiros, mostrando bem o receio estúpido de se ser «violado» por um amigo só porque é gay…
Por outro lado, a amizade dos dois homens sai incólume das diversas peripécias, os dois conseguem rir-se do próprio casamento encenado e fotografado por um chinês míope, cujo discurso base, em inglês achinesado é sempre o mesmo «o círculo representa a união dos opostos, por isso a aliança não é um quadrado, rectângulo, etc.». Serve para recordar a todos os que se casam… Brilhante a parte em que a testemunha principal é um sem-abrigo com um discurso desconectado do mundo real, que esfrangalha o bolo à procura de explosivos e sabe danças russas.
Gostei ainda da advogada, mulher bonita e inteligente, mas emocionalmente frustrada, que na sua ingenuidade abre o coração a uma amizade genuína com um dos elementos do casal encenado. Evidentemente que se apaixonam e ficam juntos, mas fica registada a confiança que uma mulher deposita num homem gay: desde despir-se à frente dele, a pedir-lhe que lhe apalpe as mamas («vê, são verdadeiras e ninguém acredita! Não é silicone, é real!») ou lhe ensine os preliminares do sexo.
Tudo acaba bem, num casamento homossexual que mistura tudo e todos numa alegria contagiante, sem cair no espalhafato. Um filme engraçado e com mensagens positivas.



Os meus porquês


Porque é que, em pleno século XXI…

…nos centros comerciais e sítios afins, ainda há homens a entrarem na casa-de-banho das senhoras com a desculpa «dá na mesma, é igual»?

…ainda há homens a atirarem piropos às senhoras com a sensação de estarem a dizer uma verdade absoluta: «ó tu, que és muita linda, olha para cá!», «dava umas voltas contigo dava!»?

…ainda se escarra na rua como se nada fosse?

…ainda há mães convencidas de que os filhos são propriedade sua e que as noras são as cabras que os roubam de casa e lhes dão cérebro para serem autónomos?

…há pessoas cuja única função no mundo é mandarem bocas foleiras e generalizantes, de preferência aos gritos?

…o apito dos automóveis se transformou numa espécie de linguagem alternativa do seu humano?

…os peões continuam a achar que são sempre visíveis e imortais, mesmo que passem pelo meio dos carros em andamento?

…a Ministra da Educação continua a mandar números fabulosos no plano da Educação, dizendo barbaridades como «cada vez há mais licenciados no país»? E licenciados-desempregados? E pessoal saído de cursos-fantasmas a escrever portunhol e pretoguês, para quem o conceito de pontuação e ortografia são tão abstractos como as equações de segundo grau?

…se continua a dizer que as pessoas saem tarde de casa «porque estão bem em casa dos pais»? Perguntem isso a quem ficou, como eu, na casa dos pais até quase aos 30 anos.

…continuamos a defender a família como instituição quando quase todas são disfuncionais e prejudiciais ao ser humano?

…achamos que o telemóvel é o centro comunicacional da sociedade? Dantes não o tínhamos e ninguém se queixava.

…continuamos a dizer «sempre foi assim» como uma imposição de Deus Nosso Senhor? Células morrem a todos os segundos e não podemos reclamá-las a Deus: «dá-me as células, eram minhas, a minha pele sempre foi assim». Deus ia morrer de rir…

…depois de tantos anos de esforço continuo a viver num circo? Já nem existem poemas na minha cabeça de tão árida e estupefacta que estou.

…algumas pessoas acham que têm sempre razão e a sua verdade é a absoluta? (esta pergunta é um clássico do grupo de perguntas «é que nem tentes responder!»)

…Deus dá nozes a quem não tem dentes? Quem sabe aproveitar o dinheiro não o tem, e quem não sabe tem de sobra. (outro clássico)

…continuamos a achar que a velhice é sabedoria? Os velhos são parvos e esquecidos, doentes e patéticos. Quanto mais cedo ficamos assim, mais velhos somos, quanto mais tarde, mais nos mantemos joviais.

…muitos acham que podem gostar de toda a gente e toda a gente gostar deles, quando essa façanha nem o Dalai Lama consegue?

…tantas vezes na vida discutir não adianta nada, mas nada mesmo?

…achamos que a morte e as doenças foram feitas só para os outros?

…achamos que a doença serve de desculpa para todos os desatinos?

…achamos que se não estivermos ocupados em todos os segundos/minutos/horas do dia não somos úteis à sociedade?

…continuamos a achar que gritando as pessoas nos ouvem melhor?

…ainda há pessoas que acham de uma elegância absurda dar traques na cara dos outros?

…chove sempre quando dizem que vai estar calor e está calor quando prevêem chuva? (ah, desculpem, esta é da lei de Murphy)

…libertam o O.J. Simpson sob suspeita de assassinato mas prendem-no por assalto e depois por…rapto? Pode ser condenado a prisão perpétua. Não, de certeza que não matou a mulher, não era culpado, não havia provas forjadas nem nada. A desculpa destes últimos feitos é igual à dos feitos anteriores: “ Sou O.J. Simpson, acham que iria cometer um crime quando o mundo inteiro tem os olhos postos em mim? “. A resposta é SIM. Só mostra como às vezes o mundo até consegue ser justo com os pulhas (mas é raro, não tenham muitas esperanças).

…ainda dão a oportunidade à Britney Spears de actuar nos prémios na MTV, mesmo acusada de estar bêbeda e ganzada à frente dos filhos? Foi o que se viu, um zombie drogado a tentar mexer as ancas. A minha avó fazia melhor.

Friday, September 14, 2007


Os piqueniques da vida

Já escrevi imensos textos acerca dos meus amigos, quase todos eles elogiosos e representativos da importância que cada um deles tem para mim. Naturalmente que, com o tempo, cada amigo segue o seu caminho pessoal, profissional, social, e até geográfico. Quase todos nós, à excepção do Dalai Lama, damos muita importância ao ego e por isso tornamo-nos possessivos, com as coisas e com as pessoas. Queremos as pessoas connosco, aqui e agora. Se formos razoáveis, começamos a perceber que, se estamos pouco tempo com as pessoas, devemos aproveitar a sua companhia ao máximo. Acho que a vida me tem ensinado a fazer isso de uma forma delicada, a dar importância a almoços, jantares, lanches e piqueniques, caracoladas e cervejinhas. A minha avó costuma dizer que é o que guardamos da vida e levamos no coração. Talvez ela tenha razão.
Há quase um ano que almoço com a Patrícia no jardim ao pé da Maternidade Alfredo da Costa. Ali ficamos com os nossos almoços improvisados ou trazidos em tupperwares, as nossas bananas compradas ou roubadas de casa, os nossos guardanapos, a ver grávidas a passarem, indigentes a ressonarem ou a praguejarem e, em muitos casos, a ver boxers, poodles, bulldogues e cães rafeiros a fazerem necessidades no jardim. Quando chove resguardamo-nos no centro comercial, onde dezenas de pessoas de fato comem à pressa. Muitas sentam-se na nossa mesa a fim de se despacharem. Há tias, tios, gente pateta, miúdas que se vestem como putas finas, outras que não, há conversas fúteis e tolas, outras que parecem sérias. Mas, na maior parte das vezes, existimos nós, a nossa salada de queijo fresco e manga, as nossas empadas de galinha, a nossa sopa, e o nosso passeio pelas lojas de livros, cds e enxovais caros.
Temos uma hora para tudo isto e conseguimos habilmente expor muitos problemas que nos afligem. Ou melhor, eu falo que me desunho, ao contrário da maior parte das pessoas, quando estou calada, na minha concha, estou bem, é porque a harmonia está cá dentro, é porque estou a resolver qualquer coisa com o meu próprio assentimento. A Patrícia é ao contrário, fala imenso quando lhe apetece, mas se estiver em baixo, está muito quieta a ouvir-me, em escuta atenta e silenciosa. É com estas antíteses que gerimos uma hora de almoço que acontece, geralmente, duas vezes por semana, mas que ultimamente se tem multiplicado. Passei uma fase em que pensava «é hoje que a Patrícia já não me consegue ouvir mais e me põe fita-cola na boca!». Era a fase do gato que tenta apanhar a cauda (tenho muitas fases assim!), de angústia, em que falo do mesmo tantas vezes que fico cansada só de existir. Todavia, até hoje, sempre consegui dizer tudo o que me passava pela cabeça sem sanções. Tenho esta sorte divinal com os meus amigos: eles ouvem de tudo.
Apesar de ter já tanta intimidade com a Patrícia, conheço-a há muito pouco tempo, em Dezembro faremos dois anos de amizade. Já trabalhámos juntas (e divertimo-nos a valer) graças ao mítico Padre Manuel Antunes, padre, escritor, filósofo, professor e quase amigo de casa, não desse a sua obra tanta dor de cabeça à Patrícia e à Paula. Depois eu estive em Roma, a Patrícia na Madeira, falámos por messenger e quando a Patrícia voltou retomámos a nossa ligação de amigas, quase irmãs em sonhos, em pensamentos, em escritos poéticos, em cartas e postais. Hoje surpreendi-me com a Patrícia – engraçado como a conheço bem, ou acho que sim, e ela me surpreende tanto – quando ela me perguntou «sabes o que é que eu gostaria mesmo de fazer hoje?», e eu pensei logo «de estar com o Luís Filipe!», mas pensei sem maldade nem inveja nenhuma, porque ela está apaixonada e vai viver com ele. E ela saiu-se com esta «de passar a tarde contigo às compras no Colombo!». É resposta que só uma gaja fixe dá a outra gaja fixe! Não duvido que ela adorasse estar com o Luís Filipe, mas, não podendo, a Patrícia apetecia-lhe dar a sua voltinha de gaja gastadora, como a Elisabete gosta de fazer comigo, também. Um gelado, cinema. Epá, coisas muito boas…o que nós levamos da vida, como diria a minha avó.
Num ano, eu e a Patrícia sofremos modificações nas nossas vidas. Mais eu do que ela porque me casei, saí de casa, tive de me adaptar a um mundo de coisas novas que ainda esperam por ela. No início foi um desespero tremendo, eu achava que não ia mesmo conseguir passar dos primeiros meses de casamento, sentia-me a Britney Spears, mas em versão morena e magra, a casar num repente e a descasar noutro, pedindo desculpa à humanidade por tanta afronta. Todavia, a Patrícia mantinha uma calma inabalável e dizia-me «as coisas vão mudando, mas devagar». Já mudaram muito e talvez eu nem me aperceba, afinal agora grito e esperneio para me defender de afrontas e, apesar do stress e das noites mal dormidas, ainda estou casada, mais do que isso, gosto de estar casada. Zangar-me a sério já fez estragos, mas lembro-me sempre da frase que a minha psicóloga me disse um dia «até Jesus Cristo expulsou os vendilhões do templo ao pontapé!...». Como me diz o Pedro «compreendo que agora és mais tu própria». A responsabilidade é minha por isso, mas a Patrícia ajudou.
Na brincadeira, costumamos dizer que, com tanta perversidade, o Diabo já gosta de nós e nos guardou lugar no Inferno…juntas.
Eu e a Elisabete somos mais de cervejas e caracóis. No outro dia resolvemos fumar. Ali estávamos na esplanada a desrespeitar tudo o que as avós nos ensinaram: uma mulher não bebe, uma mulher não fuma, uma mulher não deixa o seu gajo sozinho, uma mulher não está ao fim do dia numa esplanada de perna traçada…essas coisas bacocas. No tempo do Salazar íamos dentro. Fartámo-nos de palrar, falar, pôr a conversa em dia, longe do Serginho, que é lindo, mas barulhento demais para desabafos entre senhoras. Nestas conversas ficamos sempre com a sensação de que o Atlas só podia ser gaja, porque o planeta estava nas costas dele, e a nós calha-nos isso, o mundo às costas, as pessoas mais manipuladoras e mesquinhas atrás de nós, a negatividade a circundar-nos e nós a mantermos a fé nos nossos valores e princípios de vida.
Gosto muito dos piqueniques. De todos. Quando se fazem aqueles lanches baratuchos compostos por batata-frita, folhados, fritos e sumos com açúcar, como diz a Paula, melhor ainda, arruinamos o esforço de mantermos o peso depois dos trinta anos. No outro dia fui com ela e com a Tembua (as outras mânfias resolveram desmarcar em cima da hora) ao jardim do Inatel, onde gentilmente tivemos de pagar 0,63 euros, uma fortuna que nos permitiu ver a noite a cair, a chuva a cair, alguns raios e fugir a sete pés para a casa da Paula, onde ficámos a beber café fraco, daquele que, como diz a Patrícia, só sabe bem quando é bebido em casa da Paula. Até lá, contei tudo sobre o que me afligia, e claro que as histórias da Tembua, simples, complexas, curtas ou longas, nos fizeram rir. Voltei para casa debaixo de uma tempestade e um céu violeta assustador, mas valeu a pena o piquenique.
Alguns psicólogos que estudam o optimismo e os mecanismos da felicidade sabem que mais de metade dos nossos problemas e da nossa infelicidade são causados por nós, pela nossa percepção das coisas. Os budistas dizem melhor, por vezes percepcionamos afrontas onde não as houve. A minha opinião, ao longo deste ano, mudou: acho que, se há afronta – imaginária ou não – tem de haver resposta. Naturalmente que «responder» não é perseguir ou ser mal intencionado, mal educado, responder é por vezes nem estar ali, naquele lugar, à hora marcada, com o corpo, ou com a cabeça. Não podemos viver só para os outros, devemos viver com os outros, e essa relação deve ser paritária. Esta foi uma das muitas coisas que aprendi nos piqueniques da vida. Palpita-me que o Dalai Lama não ia gostar de me conhecer, mas por agora os meus amigos dos piqueniques bastam.