Tuesday, August 28, 2007


Os nossos pais

Eu e o Paulo Mongo, meu amigo há décadas, descobrimos mais uma coisa comum entre os dois: somos muito sentimentalóides no que diz respeito aos nossos pais. Para mim é uma novidade, uma descoberta daquelas. O Paulo obviamente já sabia que adorava os pais. Mas eu sempre fui desligada dessas coisas e foi preciso perder um deles para perceber que os adorava, a ambos, de formas diferentes, certamente, mas afinal sou devotada aos pais. E não sabia.
Esta minha adoração não veio só com a morte da minha mãe e com a morte do pai do Paulo. Veio com a observação concreta do que é que são bons pais e do que são maus pais. O Paulo é mais sensato e sempre soube que os pais deles eram maravilhosos, dentro das hipóteses que tinham, à maneira deles. O Paulo é mais generoso, também. Eu sou mais pateta, cresci mais devagar (por isso ele me manda sempre correr, para ver se eu cresço mais depressa).
Acho que é bom chegarmos aos trinta anos a sabermos quem são os nossos pais, onde erraram, porque erraram e onde podemos fazer melhor – se é que podemos – enquanto pais e enquanto filhos. No outro dia vi um livro que preconizava o perdão total e absoluto para os pais. Deve ser uma ideia herdada da Bíblia. Dizia o livro que devíamos sempre respeitar os pais, mesmo que eles nos tratassem mal. Acho que é a ideia da minha avó, que sempre viu no pai dela um ser humano bom e genuíno onde eu, pelas histórias que ela conta, só vejo um burgesso mal amanhado. A necessidade de amor distorce as nossas lentes. Passamos a vida a olhar para sombras, para fantasmas, para projectos de pessoas que nunca se realizaram. A minha avó elogia sempre o pai dela, gaba-lhe essa grande qualidade de ter sido pai e mãe (por ela ter perdido a mãe bastante cedo), quando afinal essa era a sua grande obrigação. Nas palavras dela «podia-me ter abandonado». Nunca vi uma expressão de afecto tão desajeitada. Temos de ser agradecidos a carrascos porque são pais. Acho terrível…
Levei a adolescência envergonhada com os meus pais, como quase todos os adolescentes. Não gostava de como se vestiam, de como comiam, dos hábitos deles, não concordava com nada do que diziam ou faziam, criticava-os de alto a baixo. Achava-me recebida com desdém, o mesmo desdém que tinha por eles. Cheguei a adulta com a percepção de que, mesmo imperfeitos, eram bons no que faziam, porque transmitiram força, lealdade de carácter e de princípios, honestidade e algum auto-conhecimento que muito me satisfaz. Ao confrontá-los, fui rebelde e livre na minha opção de não ser como eles (e não sou). Mas apercebo-me hoje de que afinal essas diferenças, que tanto me entalavam em casa, nos princípios «deles», não eram assim tão más, tão insatisfatórias e ao menos eu podia tê-las, dizê-las, sabia-as de cor. Muitos filhos não passam de uma cópia mal amanhada dos pais, um projecto dos pais, e invocam-nos aos cinquenta anos como se tivessem quinze. Pais que não permitem aos filhos a grande desgraça que é serem eles próprios e esbarrarem em obstáculos nunca podem ser bons pais. Nesse tipo de educação ou um filho é rebelde e se faz à estrada ou não há hipótese. Está arrumado no que diz respeito a percepções diferentes da realidade. Fazer uma vénia aos pais é capaz de nem sempre ser bom.
Eu e o Paulinho podemos fazer vénias aos nossos. Foram suficientemente porreiros para nos ensinarem o amor ao próximo, mas também o respeito por nós próprios e pelos nossos limites pessoais. Foram espertos para entenderem que nem sempre nos podem proteger e que, a partir de certa altura, estamos mesmo por nossa conta (o Paulinho mais do que eu, que fui muito mais protegida).
O Paulo diz que eu e ele somos dois seres decepados: ele sem pai, eu sem mãe. Há uma actriz brasileira, a Fernanda Montenegro, que diz que sem o pai estamos sem o tecto da casa, mas sem a mãe estamos sem o alicerce principal. Talvez em dias de chuva o Paulinho saiba que lhe chove em cima, não tem o tecto dele – o pai, talvez em dias de terramotos eu sucumba, porque não tenho a minha mãe e sem os alicerces uma casa entra em colapso. Ao menos sabemos que valeu muito a pena estar com os nossos pais, aprender com eles sem termos de ser como eles. Sentimos que era muito melhor eles estarem cá, connosco, mas que quem ficou continua o seu trabalho deixando a porta aberta sem forçar a entrar, aceitando o destino.

Sunday, August 05, 2007

A minha mãe e eu


O meu amigo Paulinho escreveu um post lindo chamado «Louvor à mãe» (www.andmyman.blogspot.com). Suscitou-me uma resposta. Fez-me pensar seriamente em diversas coisas da minha vida, da minha relação com a minha mãe e de como Freud tinha razão: a relação com a mãe é estruturante da vida, da psique, das relações humanas.
Ultimamente, a minha mãe tem-me feito uma falta danada. Uma falta tão grande, tão profunda, tão inexplicável, que se eu a visse não parava de chorar nunca mais e enchia os vales secos com lágrimas (hipérbole, eu sei, mas merecida). Tão chato perder a mãe cedo – mas a mãe perde-se sempre cedo de mais, foi o que sempre ouvi. Creio que quem a perde mesmo muito cedo, nunca mais sabe bem para onde ir. Conheço casos desses. Sem a mãe, somos seres humanos perdidos, com pouca ou nenhuma biografia. São as mães que tradicionalmente sabem as coisas todas: onde fomos feitos, como fomos feitos e com que objectivo. Pai não se lembra disso e se se lembrar não diz. A minha mãe dizia-me sempre que eu tinha nascido numa fase boa da vida dela, para acalmar o meu irmão, que até aí era filho único. Será que resultou?
A minha mãe faz-me falta em dias de sol e em dias de chuva. Em dias de luz e em dias de trevas. Faz-me simplesmente falta. Durante uns anos vivi em casa depois da morte dela e a presença dela era forte, muitas vezes, era intensa, outras vezes apagava-se. Agora não vivo em casa, e quando lá vou não gosto. Parece uma casa morta, sem energia a fluir.
Como descrever a minha mãe? Aparentava uma masmorra. Era alta, grande, forte, robusta como uma árvore. Por dentro era um baralho de cartas desfeito, rasgado e dilacerado pela falta de auto-estima. Não sei que caminho deveria ter seguido a minha mãe. Não sei dizer. Não me posso outorgar sequer o direito de dizer o que ela deveria ou não ter feito. Não me posso culpabilizar de não a ter ajudado mais cedo. Lembro-me de intuir com força que alguma coisa se passava com ela e de lhe dizer «queres ir ao médico?» e de ela me responder «claro que não. Não adianta nada.» Quando estamos mortos por dentro, ir ao médico não adianta nada. É preciso amor à vida para nos tratarmos. É até preciso amor à vida para saber que estamos doentes. Outro dia ela disse-me «tenho dores no peito» e eu disse-lhe «queres ir ao médico?» e ela respondeu «claro que não. Não adianta nada.». Depois disso esqueci-me de que ela podia estar doente até ela me dizer, grave, séria e a chorar, entre roupa passada a ferro e músicas da Sade e do George Michael, ao som da quais eu estudava: «Tenho um problema num peito, um quisto e agora vou-me tratar. Contar isto era o mais difícil, mas agora já está». Depois disso, eu chorei até me doer a alma. Lembro-me de ter caído na banheira de tanto chorar. Só voltei a chorar por ela dias depois de ela morrer. Depois disso, a vida nunca mais foi a mesma, e naquilo que a vida tem de comum com o antes, que são os meus amigos e a minha família, a vida é boa. Naquilo que a vida é diferente, a vida dói como se a minha mãe tivesse morrido ontem. Porque ela me faz falta. Muita falta.
Numa situação como aquela que vivo, a minha mãe desenvencilhava-se. Já tinha batido nos meus sogros, com toda a certeza, como muitas vezes quase bateu na minha avó, no meu avô, no meu pai, no meu irmão ou quando me deu uma palmada forte no rabo quando eu era menina ou me criticou na faculdade por eu ter saído até às tantas sem avisar ou ter comprado uma camisola cara. Digamos que ela era a força que arrastava tudo, mas era um obstáculo para ela mesma. Com o braço direito dela bateu nos filhos e quase nos sogros, passou a ferro, lavou roupa, fez bolos no Natal, trouxe papelada para casa para centenas de pessoas receberem as suas reformas a tempo e horas, e quando já não tinha forças para fazer isso com o braço direito fez com o esquerdo, retomando tarefa por tarefa tudo o que tinha para fazer enquanto morria devagar.
A minha mãe tinha força. Uma força desmesurada que a irritava e a consumia, mas que era capaz de aguentar tudo à volta. Era a chapada que os desaforados arrogantes mereciam. Era o estalo na hora «H». Era o braço forte de toda a gente. No final da vida, ela disse-me que gostava muito disso, era esse o papel dela: fazer tudo pelos outros. Não viver para ela. Esquecer-se um bocado dela. Disse-lhe que eu era muito estúpida porque não tinha aprendido a fazer nada a tempo e horas. E ela disse que não era assim, que gostava muito de mim.
A vida andou. Até hoje ainda não percebi para onde, em que sentido ou aquilo que aprendi verdadeiramente com a minha mãe e com a morte dela. É como se fosse um eterno retorno e eu revivesse as situações vezes sem conta, a mesma angústia, o mesmo ódio, a mesma fenda profunda cá dentro, que as piores pessoas vêem e onde querem meter a pata. A carapaça que eu tanto sonhava ter está-me a custar conseguir. Talvez seja um treino para aquilo que ainda vou ser um dia. Talvez isto não seja nada senão sofrimento e tortura. Talvez eu esteja a recusar os papéis que me dão. Não sei. Sei que a presença dela me dava muito jeito, que o braço dela me faz muita falta e que a sensação de andar de avião, ficar sem apoio debaixo dos pés é muito semelhante à de a ver morrer, é ser obrigada a largar o que não quero, o que eu outrora achei seguro e largar-me aos espinhos do mundo.