Saturday, July 21, 2007

Os papéis

Eu sei que existe um lugar mágico, tipo Disney, onde sou feliz. Não tenho sempre acesso a esse lugar, mas às vezes acontece, com coisas tão simples como um bebé, um sorriso de um estranho, uma pessoa simpática ou uma boa notícia. Um almoço ou um jantar descontraídos, divertidos são também fonte de alegria. Muitas pessoas conhecem a via rápida que as levam a esses sítios felizes que existem dentro da cabeça. Outras pessoas não conhecem via rápida, vão pela via mais longa. Outras não chegam lá nunca. Outras já lá estiveram, vieram embora e não sabem como voltar.
A felicidade é um dos maiores mistérios da humanidade. Talvez o maior. Ao contrário do que pensamos, a felicidade é responsável por imensas criações geniais, imensos recordes batidos, imensos quadros pintados, imensas paixões.
A maior parte das pessoas diz que quando era criança era tudo mais simples, ou na adolescência. Eu acho que sempre fui uma pessoa complicada. Não me lembro de alguma coisa ser simples. Fosse chatices, fosse inveja, fosse ganância, fosse abandono, fosse excesso de super protecção, tenho ideia que sempre tive consciência de que tudo isso na minha casa era um ensaio para o mundo onde haveria de viver um dia. É verdade que o mundo onde vivo hoje é ainda mais complicado, mais cheio de ambiguidades, com muito mais reentrâncias do que eu poderia supor.
No outro dia li um livro com o qual aprendi o que inevitavelmente sempre soube desde menina (eu devia ser esperta): o mundo que vemos é apenas uma representação da realidade. E todos fazemos diferentes representações, umas bem mais verosímeis do que outras. Nessa representação temos um papel. Às vezes cabe-nos um papel injusto que queremos largar: o de vítimas, ou o de violadores, ou o de tiranos e maus da fita, ou simplesmente o de patetas que os outros gozam. Inverter. Toda a nossa vida é uma história, uma luta de inversão contra papéis que não queremos desempenhar e a favor dos papéis que realmente gostávamos de ter. Eu gostava muito de ter o papel de heroína, nas histórias, mas cabe-me sempre um muito diferente desse. As pessoas precisam de mim, ou melhor, algumas pessoas precisam de mim, a minha família precisa da representação fictícia que criou para mim, um papel que eu terei aceite durante anos contra a minha própria vontade.
Os pais. Os pais representam até ao fim da vida o papel de pais, mas outras pessoas conhecem aquelas pessoas, os nossos pais, pelos nomes, enquanto colegas, no trabalho, na amizade, no dia-a-dia. Talvez as conheçam muito melhor do que nós. Os filhos. Os filhos conhecem mesmo os pais? E os pais conhecem os filhos até que ponto? Até ao ponto em que eles representam os papéis que devem representar. Quando saem desses papéis, os pais ficam abandonados àquilo que são de facto: pessoas. Com falhas gigantes, com rupturas emocionais absurdas, com erros tremendos. Abandonados àquilo que de facto são, nem sabem quem são. Todos os nosso erros dependem, única e exclusivamente de uma coisa: o medo de nos olharmos ao espelho, de nos vermos deformados pela vida, longe do paraíso que imaginámos que poderia existir fora das nossas cabeças.
Tenho odiado severamente os papéis que desempenho na vida. Detesto ser tratada como uma garota ignorante que não sabe nada, detesto ser tratada como instigadora de problemas, detesto ser tratada como pessoa passiva, detesto ser tratada como criada que só vive para os outros. Tenho tentado dar a volta a esses papéis todos até àquele ponto em que já não vou querer saber desses papéis para nada, já que são ficções, efabulações, criações da cabeça das outras pessoas. Quando não me importar, sou feliz. Porque a felicidade é também a liberdade de existirmos como queremos, sem os papéis que nos destinaram no guião inicial.








Paulo Post

A expressão latina significa «um pouco depois», mas para mim, neste texto, pode bem significar «o post do Paulo» ou «depois do Paulo» - uma típica tradução que qualquer aluno do secundário (ou mesmo do ensino universitário) faria com gosto e dedicação.
O Paulo é o meu amigo Mongo. Eu sou a amiga Monga do Paulo. Não sabemos bem porque é que nos tratamos deste modo. Sabemos que não há qualquer desprimor nisso. O Paulo chamava-me assim por um motivo: eu era lenta e nunca percebia nada à primeira. Eu chamo-lhe Mongo porque ele me chama Monga – uma espécie de doce vingança. O Paulo é daquelas pessoas com jeito para quase tudo, aprende rápido e bem as novas tecnologias do mundo moderno, com uma destreza muito grande, que eu nunca tive. Ainda trato o Word com as suas funções mínimas e este blogue de moderno e diversificado nada tem (é o Pedro que coloca algumas imagens).
Eu e o Paulo podemos bem dizer «o mundo é um lugar estranho!». Porque é! Todas as pessoas em nosso redor sofrem de crises da mais variada espécie, o nosso cosmos vivencial é certamente um exemplo de diversidade. Conhecemos gente com problemas, com muitos problemas e com problemas extremos. Desde doidos a semi-doidos, todos passam nas nossas vidas, alguns são conhecidos comuns, outros existem na minha vida e eu partilho e saúdo a sua existência com o Paulo. O Paulo também me conta coisas das pessoas que conhece e eu não conheço. De famílias disfuncionais. De pessoas que estão para além do meu olhar e às vezes até do meu entendimento do humano. Eu e o Paulo conhecemos uma galeria tão variada de tipos que temos mais experiência do que muitos psicólogos que se dizem experientes. Vivemos nessa diversidade, não sei eu se por escolha se por acaso, ou se porque somos abertos à diferença e a deixamos entrar, mais do que isso, a espreitamos e queremos conhecê-la. Talvez seja isso. Somos curiosos e estudiosos do ser humano. Por vezes damos connosco metidos nos problemas existenciais dos outros, do outro que somos nós, também. Talvez todos nós tenhamos uma costela de anjo que muitas vezes esquecemos, de tão doloroso que é sair dos nossos próprios umbigos. Para mim é doloroso. Sou muito enclausurada na minha concha. Faz-me bem olhar. Faz-me bem ver. Faz-me bem ajudar seja quem for e como for, desde que saiba que estou a ajudar.
O Paulo é uma espécie de ponto assente na minha vida. É como se estivesse estado sempre ali, à mão de semear. Deve estar a fazer uns dez anos que o conheci, num tempo em que eu era tão imatura que metia medo a mim mesma. E até fugia de mim, tanto como fugia do mundo. Nesse tempo o Paulo já trabalhava para pagar o curso. Nesse tempo eu já gostava muito do Paulo. Não sei se hoje gosto mais porque acho que sempre gostei muito dele, mas acho que hoje sou mais madura – pelo menos um bocadinho – e posso apreciar melhor estar com ele e partilharmos as nossas mágoas mais profundas, as nossas expectativas (ou falta delas), o nosso desencanto com este país e observar a humanidade (ou a falta dela) das outras pessoas. Há uma coisa na vida que deve fazer sentido: as pessoas que escolhemos para estarem ao pé de nós. Como diz o Paulo, se continuam na nossa vida é porque temos uma lição qualquer a aprender com elas.
A Diana costuma dizer que eu e o Paulo estamos unidos por uma ferida aberta que nunca mais vai fechar: a morte dos nossos pais, do pai do Paulo, em 2000, da minha mãe, em 2001, em circunstâncias tão semelhantes que dói só de pensar. Não falamos muitas vezes disso, sabemos que não há nada a fazer senão recordar os nossos pais com carinho, pensar que estão e estarão sempre connosco.
Sabemos que os anos que sucederam à morte dos nossos pais foram secos e áridos, foram anos passados em solidão, introspecção, virados para o nosso sofrimento sem dizer grande coisa a ninguém. Às vezes acontece-nos ficarmos suspensos nesse silêncio, quase a dizer um ao outro «bolas, que azarados!», mas depois lembramo-nos dos nossos conhecidos e amigos que não têm sequer silêncio para se encontrarem consigo mesmos, que desconhecem os caminhos que vão dar ao âmago de si, ou dos conhecidos com vidas tão estranhas que nos deixam boquiabertos e tristes.
José Luís Peixoto tem um livro chamado «Cemitério de Pianos», que eu adorei ler. Quando descreve a morte do pai de uma das personagens, ele diz e bem, que não compreende porque é que o mundo continua, completamente indiferente à perda de pessoas tão importantes para nós. Para mim e para o Paulo é um pouco assim. Andar para a frente tornou-se mecânico e necessário para a nossa sobrevivência. Sabemos que se olharmos para trás ficaremos petrificados, como estátuas de sal. E sabemos que não temos outra hipótese senão a de andarmos para a frente.
O Paulo fundou há pouco tempo um blogue: www.andmyman.blogspot.com, no qual revela o melhor de si mesmo, desde pensamentos, poemas a desenhos, fotografias, escritos e notas várias. Fundou o blogue com o Zé. Neste blogue eu acho que o Paulo revela o melhor de si mesmo, que se traduz na busca constante de quem é, e nos intervalos lúdicos dessa busca, que são afinal parte dela, também.
Tenho centenas de cartas, desenhos e tenho até alguns trabalhos feitos só para mim pelo Paulo. São privilégios que o Paulo dá aos amigos, mas só aos mais chegados. Estou certa de que eu, Monga, sou uma dessas pessoas chegadas, de partilha de silêncios, de partilha de escutas atentas, de uma partilha variada de emoções, de pessoas, de situações. Muitas pessoas se movem no tabuleiro das nossas relações. Estamos todos vivencialmente em permanente movimento. Mas dê para onde der, o Mongo está perto da Monga e a Monga do Mongo.

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Sunday, July 08, 2007

Feliciano

Na Faculdade existiam exemplos de sobrevivência que mais eram fósseis mal amanhados. Velhos desdentados, velhas poeirentas, gente de meia idade ou mesmo a cair para o lado, desde miúdos, dezoito para dezanove anos, que nos habituámos a ver aqueles espécimes todos. Uma que andava com uma muleta cheia de fitinhas era minha homónima: Fernanda, mas Fernanda-da-Muleta, para que nunca se confundisse comigo. Usava uma trança tão longa (e aparentemente sebenta) que ninguém sabia bem onde terminava. Nunca falei muito com ela, porque a senhora detinha um defeito que sempre detestei nas pessoas, sejam velhas ou novas: era graxista. Terrivelmente graxista, de tal modo que era capaz de chorar quando um professor aparecia no Jornal de Letras. Carregando o jornal na mão, enquanto coxeava, era costume dizer: «o professor está aqui e ficou muito bem na foto». Se isto não for graxa…
Havia outra a quem o Jorge chamava de «Esquilo», por causa de um corte de cabelo tão pouco moderno e um cabelo castanho tão ralo que parecia um esquilo. O Jorge geralmente entrava nas salas antes de as aulas começarem e trocava pastas e malas das velhas todas com um sorriso de satisfação. Quando as ditas velhas entravam na sala, ali estava o caos: onde se sentavam agora? Quais eram os seus lugares? O Jorge entrava então e lamentava aquela desarrumação, com um choradinho filho-da-puta ombro a ombro com elas todas. Isto até ter sido apanhado pelo «Esquilo», que furioso, melhor furiosa, o admoestou com um célebre «não se goza com as pessoas mais velhas». A partir daí o Jorge passou a gozar somente comigo, por ser míope, e com a Giana, por ser medrosa como só a Giana sabia ser (tal como eu, a Giana tinha medo das lésbicas, que naquela faculdade caíam do céu). Hoje em dia, o Jorge sabe que aprendeu com estas ditas senhoras mais do que aprenderá em toda a sua vida: sabe dar graxa, ser melífluo, parvinho, sabe repetir a última frase dos professores para lhes agradar e, no final do ano, recebe uma nota valente que, como diz a mãe dele «é dada por pena».
Havia mais espécimes terríveis. Um deles, a «Resistènce Française», chateava a Diana como mais ninguém conseguia e depois ainda vinha pedir desculpa. A Diana era a grande confidente dela, sabe-se lá porquê, de tal forma que a «Resistènce Française» (de nome Sílvia, o cognome fora dado graças à boina que usava, colocada de lado na cabeça) um dia lhe contou que «há muito tempo não tinha homem».
Todavia, ninguém, em todos estes anos, e provavelmente séculos passados, se comparou a essa figura desdentada e imparável: o Feliciano. A mim o nome lembrava-me o poeta ultra-romântico Feliciano de Castilho. Mas qual quê…O Feliciano sempre foi velho. Se ele algum dia tiver sacado de uma fotografia novo, alguém se deve ter rido, porque ele deve ter nascido velho e velho morrerá. Bem, morrer não é bem a especialidade dele. Todos têm uma história com o Feliciano, porque todos já o viram algures, a deambular pela cidade: no comboio, no metro, no Atrium Saldanha, na BN. Por muito engraçados que sejam os anões, o Feliciano suscita a veia cómica que existe em todos nós, porque nos coloca uma questão existencialmente válida: ele está mesmo vivo? Como? Ele fuma que nem um desgraçado, bebe café, esquece-se onde tem os livros, também não se lava, isso já quase todos demos conta. Segundo a Diana, ele dormia nas aulas e odiava ser acordado. Se fosse acordado, ralhava com o pessoal num francês perfeito. Segundo a Paula, ele enganava-se nas salas de aula e não via nada para o quadro (mas isso eu também não e o Jorge gritava que me dava uma palmada que me saltavam as lentes). Todos nos formámos há sete, oito anos ou mais. E o Feliciano foi colega de todos nós. E todos continuamos a ver o Feliciano. É um exemplo de longevidade ou quiçá de como o cérebro, quando é estimulado, também conserva o corpo. Nem sei bem…que histórias se escondem por detrás deste homem? Tanto que eu gostaria de o entrevistar, visto que é uma preciosidade genuína da Faculdade de Letras.



O meu gabinete

Trabalho num gabinete fechado e pequeno, sozinha: é quente, escaldante, arde em brasa no Verão. É gelado no Inverno. No Inverno trago mais um agasalho (tal como o meu colega do lado, que sendo muito menos friorento, também se queixa). No Verão trago uma ventoinha, enquanto destilo com 45º à sombra. Mas adoro. Adoro o meu gabinete desarrumado, estupidamente frio no Inverno e estupidamente quente no Verão, cheio de papéis desarrumados, dossiers espalhados pelo chão. Aqui lancho, falo sozinha, vou comprar revistas que às vezes leio à hora de almoço, telefono a quem gosto e vou de vez em quando ao messenger desabafar.
Este gabinete é um empréstimo. Para o ano, por esta altura, volta a estar vazio, ou melhor, eu não estou cá, mas outras pessoas estarão, com outras teses, outros trabalhos, outros destinos ou simplesmente a fumar um cigarro.
Naturalmente que para eu dizer que este gabinete é porreiro é porque já estive em sítios muito piores, que me deram água pela barba. Todos os sítios que, de início, me parecem impecáveis, são, normalmente, uma grande porcaria. Já tive num sítio lado a lado com a minha casa e não passava de uma cave onde se davam aulas barulhentas. Nunca tive tanto sono e tanta vontade de voltar para casa como quando trabalhei aí. Já estava naquela fase pela qual os professores passam, mais tarde ou mais cedo, sobretudo se tiverem alunos crianças: chegamos a odiá-los pelo simples facto de respirarem tanta burrice, tanta palermice. Perguntamos mesmo porque é que eles não são como no «nosso» tempo, no tempo em que quem nos dava explicações eram os pais e à tarde podíamos ir brincar. Agora há os ditos «centros de explicações», que são pau para toda a obra e se destinam, em primeiro lugar, a sacar dinheiro aos pais e a dividi-lo bem mal dividido entre donos de centros de explicações e professores semi-desempregados (ou totalmente desempregados).
Concorri a tantos centros de explicações, centros de formação, escolas de todo o género, que cheguei à conclusão inequívoca que ou o meu currículo não lhes agradava ou nem o viam sequer. Nos centros de explicações eu conheci o verdadeiro significado da palavra «exploração». Não por trabalhar muitas horas, raramente trabalhei mais de quatro horas seguidas, mas por serem horas péssimas, mal pagas, com más condições, sentada lado a lado com professores de ciências e de matemática; enquanto dava Gil Vicente ouvia equações e fórmulas, enquanto dava figuras de estilo ouvia o aparelho digestivo, enquanto dava Camões e Pessoa ouvia palavrões dos miúdos. E claro que não gostava. Não era só criancice dos miúdos, era criancice dos adultos donos de centros de explicações, que queriam encher o saco à conta desta palerma, que dava 5º ano como dava 8º ou 12º anos. No máximo, eu fazia ali sessenta contos. Raramente ultrapassei essa fasquia, excepto quando havia exames. 300 euros. Para fazer mais do que isso, arranjei alunos fora dali, portanto dali saía para Lisboa ou vinha de Lisboa para ali, ou Linda-a-Velha. Ao final do dia, eu não via nada (e não me refiro à miopia)… Cheguei também a fazer Oeiras-Malveira da Serra noutro centro de explicações para esquecer, onde trabalhei numa vivenda pequena, com três salas mínimas e outra no sótão. Ali cheguei a ser paga de seis em seis meses.
Um dia meti na minha cabeça uma evidência que não é assim tão óbvia: qualquer coisa era melhor do que «aquilo». Quando estamos chateados, zangados, lixados com a vida pensamos assim mesmo. Quando surgiu a oportunidade desisti, e confesso que, se soubesse o que sei hoje, teria desistido muito antes, porque o target de aguentar tudo de todas as maneiras valeu-me um estado de espírito depressivo e um estado físico dilacerado. Não queria mais ver alunos, pais de alunos, outros professores, como eu, piores do que eu, melhores do que eu ou…advogados e engenheiros que também eram «professores» para ganhar uns trocos.
A minha transição profissional para este gabinete não foi simples e muito menos rápida do que eu esperava. O simples facto de receber dinheiro sempre no mesmo dia do mês (coisa habitual para a grande maioria das pessoas) outra vez, como no ano em que estagiei, causou-me espanto…
Sempre achei, perante as pessoas que conheço, que não tinha grande capacidade de sobrevivência. Quer dizer, nunca fui de aceitar qualquer trabalho e talvez isso me tenha estupidificado na célebre arte do «desenrascanço». Mimada, achava que só sabia dar aulas e pronto. Depois conheci as minhas colegas/amigas de mestrado e vi uma realidade muito diferente: desde cedo todas tinham trabalhado para pagar o curso, aceitavam o que calhava e estavam ali a fazer mestrado ao mesmo tempo que trabalhavam noutras coisas completamente diferentes.
Na realidade, há muitas coisas que nos parecem improváveis que, se tentarmos e formos teimosos, até conseguimos alcançar. Demora mais, exige mais treino, esforço, capacidade de sobrevivência e, acima de tudo, vontade. Vontade de ir até às coisas, mas também paciência para esperar por elas.
Hoje não penso muito em como seria a minha vida se desse aulas. Prefiro não pensar, dado os exemplos dos meus colegas professores. Seria difícil gostar mais disso do que deste pequeno e sujo gabinete. É o meu. Pelo menos até ver.

Sunday, July 01, 2007

As ideias que me vêm à cabeça

Hoje veio-me à cabeça uma das maiores diferenças entre vida e escrita. Evidente que vão achar a questão inútil. Vida é uma coisa, escrita é outra. Mas qualquer escritor que goste de escrever chega rapidamente a uma conclusão: não é assim tão diferente, melhor, confundem-se muitas e muitas vezes e nem sempre andam em paralelo. Há casos em que andam em paralelo, mas não me estou a lembrar de nenhum…
O meu caso é duro, por assim dizer. A poesia não é o conjunto de lugares in-existentes onde eu gostaria um dia de ir. A poesia é onde eu estive ou onde eu estou. Uma espécie de respiração que exige treino, prática, ioga até. Por outro lado, na poesia deixo-me ir, perco muito a postura. Ou gostava de perdê-la.
Descobri, enquanto lia vários blogues de outras pessoas, o que difere a minha escrita da minha vida. A ética e a moral. Na vida eu tenho-as. Na escrita estou só a fingir. Gostaria muito mais de descrever o olhar de um assassino, o de uma prostituta de rua, o de uma adúltera, o de um pedófilo, ou simplesmente o olhar de uma pessoa completa e feliz. Mas não consigo porque não sou nenhuma destas coisas e não escrevo tão bem que me permita fingir uma coisa que não sou.
Desde cedo habituei-me a ouvir. Ouvindo pode reflectir-se nas questões e depois acabar um dia por percebê-las. Nesse lapso de tempo, que pode ser a vida toda, pode-se escrever tudo de todas as maneiras. Não há uma conclusão final. A conclusão final é sempre o lugar comum: «corre sempre tudo bem», «há castigo para os maus», «eu até tinha razão», «não merecia isto». Eu também acho estas coisas todas. Mas é quando não escrevo e me disfarço em futura doutoranda à procura de papéis na secretaria tão importantes que me tiram o sono e a visão de futuro e me fazem pensar «mas que mal fiz eu a estas funcionárias públicas?» que eu não sou eu. Quando não me disfarço disto, quando não sou filha, neta, irmã, esposa e nora de alguém, aí, nesse lugar fora deste lugar, eu sou mesmo eu. E não tenho disfarce algum acerca de mim mesma. Portanto, já me perdi de mim, mas voltei-me a achar uma centena de vezes. Perco-me de mim quando tenho dores de dentes, comichão nos olhos, calor ou frio descomunais, quando vou à secretaria e à biblioteca. «Aquilo» não sou eu. Eu sou mais. Muito mais. Uma porrada de coisas a mais. Eu sou eu papéis, dores e cansaços à parte.
Não gosto de manter éticas na escrita. Nem moralizar. Mas como a escrita me acompanha enquanto ser humano, ela vai reflectindo essas nuances pouco a pouco. Portanto, um ser execrável na vida real pode dar um bom romance. Tudo são comportamentos, codificados em ADN ou pertencentes à vulgar esperteza humana. Tenho-me sentido tão sozinha sempre que julgo pessoas e as divido em «filhas-da-puta» e «não filhas-da-puta». É que já ninguém faz isso…
Já em criança havia alguém de quem eu não gostava, ou um rapaz parvo ou uma miúda com brincadeiras torpes. Mas todos dariam óptimas personagens de contos, histórias, romances amorais, imorais, e outras merdas que eu nunca consigo ser. Quem me disse que eu nunca fui amoral ou imoral? Eu própria. Um dia fui à psicoterapia e mandaram-me pensar na minha vida em perspectiva sem julgar os acontecimentos como «bons» ou «maus». Não consegui. Moralizei até ao mais ínfimo pormenor. Sou uma pessoa moral. Não sou fechada, nem pateta. Moral pressupõe «boa intenção para com o próximo». Para mim, claro. Quem não tem está excluído do jogo que é a minha vida. Ou há armas limpas ou não vale jogar. Respeito a minha forma de pensar – que remédio! – mas não gosto. Um pouco mais de trapaceria, imoralidade, optimismo parvo e megalómano far-me-ia bem. Dava logo para ignorar metade das pessoas que conheço num ano de vida.
Sou muito pessimista. Acho sempre que o espermatozóide que chega ao óvulo é aquele que tem mais defeitos, apesar de ser o mais forte, o mais rijo, aquele que chega lá. Acho que poucas pessoas se deitam mesmo na cama que fazem. Acho que é mentira que cá se fazem cá se pagam – nunca vi ninguém pagar, a menos que seja parvo. Acho que temos de lutar imenso para sermos aceites pelas pessoas que, à partida, melhor nos deveriam aceitar e proteger. Acho a vida uma perfeita injustiça sem explicação, que nenhum livro pode realmente explicar…
Há muito por fazer para a vida voltar a ser divertida. Mas há dois caminhos que sei que vão lá dar sempre: a leitura e os amigos. Ler é das melhoras coisas que existe. Consigo ler no metro, no comboio, nos bancos do metro, perspectivar as coisas, distrair-me, rir-me, deleitar-me, ir a correr contar a alguém o que li. Ouvir e observar também é bom, já aqui o disse. Mas os amigos ainda são o melhor que a vida traz. Existe qualquer coisa neles que os faz estarem presentes, «ali», onde deviam estar. Muitas vezes, por questões de educação e até de proximidade, os pais, os irmãos, os avós, não conseguem isso. Por vezes nem temos boas relações com essas pessoas a quem estamos, irremediavelmente, ligados para toda a vida. No fundo, se pudéssemos escolher, escolheríamos mesmo «aquelas» pessoas para nosso pai, mãe, irmão? Por vezes, parecem pessoas estranhas, que nada nos dizem. Por vezes, são pessoas que me enraivecem por isso mesmo. Ficam inertes quando se devem mexer, mexem-se e falam quando não devem. Porque é que as avós estão sempre tão preocupadas se os netos estão ou não mais gordos, mas nunca lhes perguntam se são felizes na vida que levam?
A família é uma questão que me angustia sempre muito, tipo maldição, tipo filme de terror, pela capacidade que tem sobre nós, que é eterna. Na família nascem traumas, tabus, preconceitos, estereótipos, protótipos, problemas de auto-estima, etc. Mas temos de ter família. E se não tivermos, vamos à procura de uma. Está codificado. Organizamo-nos assim, regra geral, e muito poucos falham a este requisito social.
É muito mais fácil ter amigos do que família. Os amigos, se falharem como nossos amigos, podemos sempre arranjar outros. A obrigação que temos para com eles é muito menor (a dívida é sempre mais pequena: não nos amamentaram nem pagaram casa toda a juventude). Podemos estar disponíveis ou não, mas em princípio não seremos tratados como depósitos de frustrações e de furos existenciais. Mas com a família…será que podemos negar as expectativas elevadas que recaem sobre nós? Com a família, o conceito de liberdade é outra fruta.
Eu acho que o segredo da felicidade é este: descobrir em que lugar somos felizes. Se esse lugar for dentro e não fora de nós é porque já somos felizes. Como diria José Saramago «Eu sou feliz, o mundo é que não».

Duas faces da mesma moeda

A revista «Sábado» publicou há bem pouco tempo um artigo intrigante acerca da princesa Diana, que faria em breve 46 anos. A princesa Diana é a 4ª figura britânica votada como personalidade importante, ou seja, no concurso «o maior britânico de todos os tempos». À frente dela ficou, pelo menos que eu saiba, Churchill. Portanto, faz parte da nata que cai no goto dos ingleses: simpática, bonita, boa pessoa, humana, sensível e…muito frágil. Uma mulher com um casamento desfeito, uma vida (e uma morte) a mil à hora, mas um coração despedaçado pelas traições do marido.
Desde há muito que se fala que Diana sabia mais do que parecia, era mais do que parecia, manipulava, abusava da exposição dos media e deitou-se na cama larga que tratou de fazer ao longo da vida. Quando os repórteres começaram a maçá-la, quando decidiu que queria ser feliz (e com quem o queria fazer) foi tarde de mais: morreu perseguida por um bando de papparazzi, que em vez de a socorrerem procuraram «a fotografia do ano»: Diana feia e despedaçada num carro onde viajava com o acompanhante Dodi Al-Fayed. Vieram a lume teses de atentado, de perseguições feita à princesa, que na altura estava de férias em Paris.
Duvido sinceramente que ela tivesse planeado um fim assim, acima de tudo por uma razão: tinha filhos. Que filhos podem alguma vez gostar de perder a mãe? Que filhos podem gostar de uma mãe exposta ao ridículo de uma panóplia de amantes e um pai que nunca largou a amante? Nunca entendi como aqueles miúdos ficaram vivos e de pé, mas custou-me imenso ver o cortejo fúnebre com eles os dois certinhos a caminharem atrás do caixão da mãe, sem esbracejar, gritar, arrancar cabelos. Dois miúdos homenzinhos para quem os pais nunca foram grandes exemplos. Talvez por isso, pai e mãe, quisessem assentar cada um para o seu lado.
A «Sábado» publica o outro lado da moeda. Quem era, afinal, Diana? Uma coitada ou uma manipuladora? Ou uma coitada de uma manipuladora que caiu nas malhas do seu próprio jogo? Mais isso. Chorava que os repórteres a perseguiam, mas oferecia-lhes almoço e combinava fotografias escandalosas com eles. Vingava-se na cunhada, Sarah Fergunson, que odiava, autoproclamando-se mais bonita, pedindo que a fotografassem mais vezes. Chorava que Carlos a traía, mas em diversos momentos importantes tirou-lhe visibilidade e…traiu-o também com diversos amantes a quem intensamente telefonava e oferecia favores. Ficou rotulada de «predadora sexual», rótulo distante da imagem tradicional de mulher boazinha, traída por um marido desinteressado e desinteressante.
A mim Diana parece-me uma mulher perdida e frágil. Hábil na sua experiência mediática de figura pública, inábil a lidar com as suas emoções e auto-estima destruída. Classificou a família real, em diversos telefonemas que fez a amantes como «uma família de merda». Por diversas vezes foi afastada de actos oficiais e praticamente forçada ao divórcio pela rainha. Instável, desequilibrada, sedutora, mas ao mesmo tempo uma figura doce, sensível, humana. Afinal, uma mulher como outra qualquer, que não soube jogar com as regras ferozes da sociedade, dos media, da exposição pública, do olhar dos outros que pesa sobre nós. Mas engraçado…nunca ninguém a classificou como má mãe, aparecia sempre de braços abertos para os filhos, corria para eles, participava despudoradamente em jogos escolares banais, acompanhava-os e mostrava-lhes um amor desmedido. Duvido muito que tenha fingido isso, se não os filhos não se teriam remetido tantos anos ao silêncio e organizado um concerto em homenagem à mãe, com as seguintes palavras «as pessoas nunca saberão o quão boa pessoa e boa mãe ela era». Uma moeda com duas faces. Como todas.


A cama onde nos deitamos

Muitas vezes dou comigo a pensar que deve ser bom ser monge budista. Quer dizer, não me interpretem mal, eu acho que dá um trabalhão ser budista, quanto mais monge.
A vida é um lugar estranho. Por vezes incita-nos a pensar «o que ando a fazer por cá?». Inevitavelmente, se não somos felizes, achamos que merecemos ser, mesmo que isso signifique chacinar alguém. Arno Gruen estuda bem os processos de auto-desprezo reflectidos na sociedade: quem atira papéis ao chão também não parece muito preocupado consigo mesmo. A atitude que temos com o mundo é a atitude que temos connosco, disso eu não tenho dúvida, e a regra é o desprezo pelos sentimentos dos outros, que o mesmo é dizer, o desprezo pelos nossos sentimentos. No fundo, quem não indaga vezes sem conta quem é e porque é, só chega a um lugar: a solidão. Muitas vezes há alguém disposto a dar uma mãozinha, mas enfurecemo-nos porque, na realidade, não está ninguém ali. Está um autómato criado para servir, não um pai, um filho, um amigo.
Pessoas que se odeiam a elas mesmas, vão gostar de quem? Não falo de crises de auto-estima ou tentativas de descoberta de identidade tardias. Falo a sério: pessoas que se desconhecem, que desconhecem os seus erros e o quanto magoam os outros, só têm um lugar onde viver: a dor. Não quero ser má e pensar «é bem feita». Quero sim pensar seriamente numa coisa: todos nos deitamos na cama que fazemos. Por isso eu tenho tanto cuidado.