Monday, April 16, 2007

As aulas de Pilates

Por vezes sinto que realmente não sou muito igual às outras pessoas. A Patrícia Torres diz que eu e Tembua, se não existíssemos éramos inventadas. Eu também acho que a Patrícia teria de ser inventada, nem que fosse para regrar os hábitos de cozinha desenfreados em gordura e açúcares que temos. Mesmo no bolo de noiva, a Patrícia divide o que é bom e o que é mau cuidadosamente, de modo a comer o miolo e deixar aquela capa de açúcar medonha com que enfeitam os ditos «alimentos» (lol). Eu e a Tembua somos as duas únicas mânfias com coragem para ir a um casamento de vermelho (ela com sapatinho vermelho e tudo), quais pérolas de uma ostra sem mais nada para fazer do que cuspir estas duas belezas.

Das duas uma: ou a mim e à Tembua acontece tudo ou somos nós que somos muito observadoras. É que até a minha aula de Pilates tem que se lhe diga, quase tanto como as turmas de formação da Tembua.

A turma de Pilates era muito pequena no início, basicamente pessoas que já se conheciam e que conheciam a professora, tudo gente na casa dos cinquenta e dos sessenta. Por razões que desconheço, as pessoas mais velhas gostam imenso de discriminar os mais novos. É uma coisa que não se percebe bem, porque durante anos a queixa era que os mais novos não queriam saber dos mais velhos, que os deixavam a um canto, que não os queriam ouvir. A minha perspectiva é sempre distinta: quero aprender o máximo possível com eles, até o que não presta, para não repetir os mesmos erros. Acho que está bem. Agora a questão é: quem, dos mais velhos, está disposto a ensinar alguma coisa a esta «jovem»? Socialmente falando, não sou jovem coisa nenhum: sou velha para tudo, nesta sociedade.

O que fariam estas cotas do Pilates há trinta atrás? Certamente já teriam parido um ou dois filhos, iam no primeiro casamento, antes do segundo (e algumas do terceiro, pelo que sei), tinham um emprego para o resto da vida, ou viviam à conta dos maridos. Não sei. Pelo que oiço, já foram à Tailândia, Macau, Nova Zelândia, Brasil, Barcelona, etc. Em suma, viajaram. E com aquelas idades podem ir ao Pilates, à natação, ao shiatsu, às massagens. Já têm filhos criados, casados, netos. Podem viajar, ler livros, apanhar sol. Está bem, não têm o meu corpo, não sou eu que digo à laia de ser convencida, são elas que dizem. E depois contrapõem «Há muitas meninas mais novas pior do que nós, e que andam por aí cabisbaixas». Ó amigas, é assim: hoje em dia um jovem não tem por onde se safar. Emprego é mentira, o pessoal trabalha a recibos verdes anos e anos a fio, a ganhar misérias, a descontar balúrdios. Os que ganham bem, não têm vida pessoal. Filhos é mentira, ninguém quer crianças, as escolas levam metade dos ordenados e não há disponibilidade para os criar.

Não perco tempo a dizer-lhes isto. Cheguei aos trinta anos com uma convicção que me parece sensata: não vou perder tempo com pessoas que não sabem ouvir. É que ouvir – como hei-de explicar? – é mesmo essencial. Ninguém cresce sem ouvir os outros: mais novos, mais velhos, assim-assim, homossexuais, travestis, crianças, pessoas da nossa idade, o homem do talho, da mercearia, a cabeleireira. Todos têm alguma coisa para ensinar, nem que seja pela negativa. Até os malucos dos autocarros. Se não soubermos ouvir, vamos achar que estamos certos e sabemos tudo. A questão é que nem sempre estamos certos. E ninguém sabe tudo. Nem os mais velhos.

Os velhos mais felizes que conheço fazem duas coisas: exercício físico e querer aprender mais. Se assim não for, estagnam, ficam a boiar à tona, a pensar «no meu tempo é que era bom», mesmo que tenham vivido miseravelmente. Ou então vão dizer «queria era ter trinta anos outra vez». Até compreendo, as articulações nem doíam tanto, tinha-se melhor vista, fazia-se tudo com mais flexibilidade. Mas essa perspectiva também está inquinada. Nada volta para trás. Temos de ser felizes para a frente e se possível sem comparação com «os mais novos». Também é prudente pensar que nem todas as pessoas novas são felizes, estão bem consigo mesmas e alcançam da vida o que desejam. Muitas pessoas não são elas próprias até serem velhas. Outras nunca são elas próprias e o resultado são velhos amargos e infelizes, cujo fulcro dos pensamentos se centra na doença. Os budistas dizem que a doença é um sinal para prosperarmos: do-in. Dentro de mim próprio. Proteger o interior exige um treino muito maior do que ir ao Pilates. Pode começar aí. Pode começar noutra coisa qualquer.

Para a Patrícia Torres proteger-se é não comer carne, ser vegetariana e parece-me uma decisão inteligente. Para a Patrícia França é ir às massagens, à depilação, namorar. Para a Paula é pintar bonecos. Para o meu marido é tocar guitarra portuguesa. Para mim é escrever. Todos temos estratégias e dispomos de outras, muito ricas e brilhantes que nos fazem evitar a do-ença, o desfazamento interior, a capitulação à raiva, ao desespero, à tristeza. Fico muitas vezes surpreendida como num dia consigo mudar de estado de espírito por coisas de nada. Por exemplo, ontem vi o meu sobrinho e fiquei muito contente, mesmo com ele a tentar boicotar a minha festa de anos, podre de sono. Mesmo que me partisse a casa toda, a companhia do bebé, da mãe, do pai eram suficientes para a minha animação interior. Outras pessoas têm a capacidade de me arruinar o dia, a disposição, até a alegria de viver, sobretudo pelo que representam, pelo que pensam de mim, pela coisificação do outro, que apenas lhes «serve» como uma roupa. E os outros são tratados como roupa fixe, de todos os dias, roupa reles, que vai para panos do chão ou roupa de gala, que lhes assenta como uma luva nos dias de festa.

As aulas de Pilates e qualquer ginástica que eu faça (nem que seja andar a pé) têm a capacidade de me animar, acho mesmo que é científico, quer dizer, estimulam a sorotonina, libertam endorfinas. Portanto, depois de um passeio vigoroso, a raiva esvanece-se. O meu período mais raivoso e triste sempre foi de manhã. Deve haver uma explicação científica, porque os psiquiatras dizem que, regra geral, quem adoece de depressão tem dificuldade em acordar, em levantar-se, em enfrentar um dia novo. Para mim as manhãs sempre foram um pequeno tormento, mas às vezes conseguem ser ricas em acontecimentos cómicos. Hoje por exemplo estava um homem sentado no meio na estrada, em Oeiras. Porque sim, porque lhe apeteceu. Ora toma. E os carros tinham de se desviar…Este tipo de narcisista eu ainda não tinha visto.

Os velhos não sabem tudo, mas padecem de um mal muito comum, achar que sabem tudo. Acham que têm as doenças todas, as dores todas do mundo dentro da alma. São uma espécie de relicário de porcaria. Parecem ter recalcado coisas inacreditáveis, parecem ter feito um registo de todas as vezes que foram espezinhados para poderem espezinhar os outros com requintes de malvadez. Deste tipo de velhos ou simplesmente da meia-idade o discurso típico é «Vais ver quando cá chegares», «Não sabes nada», «Quem te dera a ti saberes o que eu sei», «Se eu tivesse o teu corpo…». As minhas colegas do Pilates dizem que na idade delas vou ser gorda, vou «ranger» as articulações (expressão que me fez rir, lembrei-me das portas com dobradiças sem óleo), que os jovens não sabem nada (mesmo não sabendo o que eu sei). Quando olho os corpos delas, percebo o que é a «acumulação» de coisas negativas, o que é comer mal, beber pouca água, ou fazer o que os outros querem em vez do que nós queremos. Todavia, elas têm sorte: têm saúde, podem viajar, têm dinheiro, filhos que estão bem…e o terrível problema de não serem jovens. Portanto, de um lado da barricada estou eu, jovem e estúpida, do outro lado estão elas, velhas e sábias. Vou dar a ideia à TVI para mais um programa culturalmente rico…

A concha

Há aqueles dias de sol em que não apetece nada. Deixem-me ficar. Estar assim. Não me chateiem. É um bocado esta norma que é difícil seguirmos e os outros seguirem também. Parece que só estamos felizes se nos intrometermos na vida dos outros, se fizermos um – nem que seja um – comentário destrutivo. «Estás mal vestido», «Estás gorda», «Pioraste muito de feitio», «Assim não vais a nenhum lado». As pessoas somam coisas negativas umas contra as outras para ver de deprimem, se achincalham, quando podiam perfeitamente ser assertivas, dizer simplesmente «Não concordo contigo porque…» com voz calma, dizem antes «Não tens razão! Não acho!», numa interrupção abrupta, com má fé, com a intencionalidade de dar o gritinho narcisista do costume, «Eu estou aqui, olhem para mim».

As pessoas não têm medo de se afirmar pelo pior de si mesmas. Quantas colegas de faculdade eram assim? Imensas…Tinha uma colega cuja principal actividade era dizer o que os outros deviam fazer, mesmo em actividades que ela não sabia fazer. Dizia raivosamente «Porque é que começaste a fumar? Acho uma estupidez…», mas fumava imenso, justificando-se com «Ah, mas eu fumo, tu não fumavas…». Que estranho alguém cuja maior estupidez é fumar um maço de cigarros por dia dizer aos outros que são estúpidos porque fumam um cigarro de vez em quando. Outro comentário frequente dela – e de muitas pessoas que conheci ao longo da vida – era o célebre «porque é que não conduzes?». Mas desde quando – desde quando? – existe alguma lei que obrigue as pessoas com carta a conduzirem, a terem carro? As pessoas não podem preferir ir de transportes?

A maior parte de nós vive no meio de dogmas que tenta impor aos outros, mesmo que sejam dogmas sem fundo de verdade ou qualquer moralidade como cenário. Conduzir ou não conduzir não tem nada de moral ou imoral ou amoral (a menos que não se tenha carta ou não se veja bem), no entanto achamos que sim, que faz falta aos outros porque nos faz falta a nós.

Até questões como os sentimentos provocam mal entendidos. Para mim o amor é essencial. Acho impossível estabelecer ligações íntimas com as outras pessoas sem que a base seja a afectividade. É verdade que não temos afectividade por todas as pessoas com quem nos relacionamos, mas ter inteligência emocional compreende saber gerir isso. Todavia, cheguei a esta idade a perceber uma coisa: é um dogma meu. Há pessoas para quem amor e afectividade são relativos e dependem das circunstâncias que lhes são favoráveis. Não sei muito bem como se gere uma vida interior desse calibre, mas deve ser apenas pela superfície. Que fundo de verdade pode existir nessas pessoas? O que podemos esperar delas? Nada, basicamente. Não devemos sequer ir à procura do que não existe. É pura perda de tempo.

O que se passa na cabeça das pessoas é realmente um mistério, mas há coisas que hoje em dia são comuns e que acho profundamente erradas. O enraizamento da ideia-chave de que a franqueza e a sinceridade correspondem a «dizer tudo de todas as maneiras» na cara das pessoas, e de igual modo «mostrar bem que não se gosta, frisando o carácter» é gerar o caos na ordem pré-estabelecida de que respeito mútuo é importante, conter ideias, palavras e sentimentos pode até ser útil. Não vejo nada disso como hipocrisia, mas se lhe quiserem chamar assim, então está bem, chamem. Eu devo ser uma perfeita hipócrita por achar que tratar bem algumas pessoas pode ser altamente compensador para mim, pessoal e profissionalmente, ou mesmo simplesmente não arranjar problemas no alheio. Mas não. Hoje em dia institucionalizou-se a norma de que pela frente diz-se tudo para libertar maus fígados. Vejam estes exemplos.

Uma amiga minha entra numa loja de fatos de banho e a empregada diz-lhe: “ Para si, só se for feito à medida! “, olhando-a de alto a baixo. Portanto, para esta empregada, que deve achar-se o cúmulo da franqueza (nada hipócrita, portanto) dizer na cara das pessoas o que pensa é uma expressão de sagacidade. Será que é inteligente ter perdido uma cliente? De ontem para hoje aconteceu-me três vezes este tipo de sucedido. O primeiro foi ontem, a seguir ao almoço eu e a Patrícia comprámos dois gelados, e a empregada, passado meia hora e depois de ter tirado dois cafés (porque pensava que queríamos dois cafés) lá me disse, na sua máxima sinceridade: “ Esse gelado é enjoativo, tem muito chocolate “. Ai que espontânea! E como diria a Patrícia, alguém lhe perguntou alguma coisa? A seguir entrámos num café. Noutro, para não «enjoar» mais a empregada anterior…Um café daqueles tipo de esquina, soturno, numa cave, cheio de gente mal encarada. Peço um café, sentamo-nos as duas, eu e a Patrícia, e um empregado olha-nos de alto a baixo: “ As mesas são para almoço “, resmunga ele, na sua sinceridade máxima, que, quanto a mim, bem podia ser refreada. Olhamos em volta, e as mesas quase todas vazias. Eu lá digo, muito simpática (que hipócrita sou eu!): “ Se for necessário, saímos “. Mas estávamos a consumir, a pagar, e as mesas quase todas vazias…sair porquê? Ele lá resmunga: “ Podem ficar “, mas muito seco, muito incomodado. Como disse a Patrícia, ficámos a saber de uma vez só porque é que as mesas estavam vazias…

Vamos passar para hoje. À hora de almoço novamente – deve ser a freak time, decerto que sim. Vou a uma loja fantástica que há ali nas Laranjeiras, cheia de enfeites para festas e aniversários, compro as minhas velas de aniversário: 30 anos. E diz logo a empregada: “ Ai a partir daqui é uma desgraça, plim, plim, plim, os anos todos a passarem e nós a cairmos…”. E eu sorrio ao de leve (agora sim, sorriso amarelo ou hipócrita) e apetece-me simplesmente esganá-la. Não só não lhe perguntei nada, como sou uma cliente que ela não deve ver muito por ali, porque a regra é as pessoas não gostarem de fazer anos, muito menos comemorarem com velas e guardanapos os seus 30 anos. Claro que ela percebeu que meteu o pé na poça, porque eu sim, sou sincera, não me rio do que não gosto, e apesar de adorar a lojinha, dificilmente lá voltarei.

Porquê? Porque é que temos sempre uma palavrinha triste e desgostosa a dar aos outros? Porque é que somos tão frios? Porque é que a rapariga, ainda tão nova, se acha tão velha por ter mais de 30 anos, e acha que depois disso, é «tudo a cair»? Se estivesse aqui a Patrícia, diria já «Sim, a gaja é a prova disso». Digam lá se não apetece mesmo responder algo desse género: “ A senhora prova que assim é, que depois dos 30, muito muito depois (deste modo chamava-lhe velha, coisa que as pessoas odeiam), as pessoas ficam amargas e tristes, abrem lojas de enfeites para esconder a desgraça e o vazio interior daquilo que são. Já agora, usa botox e colagénio? É que devia…devia mesmo “. Porque é que as pessoas são sinceras quando não deviam, mas quando devem sê-lo, acabrunham-se tanto? Afinal, a senhora deveria ter dito: “ Já fiz 30 e não gostei nada. Ainda bem que a senhora tem motivos para comemorar…”. Reparem na inteligência emocional e social desta resposta: 1) assume a sua opinião/posição pessoal sem generalizar; 2) não magoa o outro, neste caso o cliente, que não fica lesado na resposta; 3) elogia o cliente, conquistando-o para uma próxima compra. Mais inteligente seria ainda o célebre e antigo «Obrigada e volte sempre». Dantes era só assim que se despedia do cliente. Agora não. Agora vem à boca o fel e a amargura dos dias que não conquistámos para nós e só demos aos outros.

É por isto que gosto tanto de fazer anos. Sou mais eu. Digo a mim mesma: “ Viva! Mais um ano! E está sol e não vai ser Domingo de Páscoa, por isso posso até convidar o pessoal para junto de mim…”. Não vou pensar que estou mais velha, ai as rugas e que porcaria. Afinal saí de casa desde o ano passado, como sempre quis, casei-me, tenho emprego, tenho amigos…vou pensar que a partir daqui é a minha ruína? Que pensamento horrível! Claro que a idade traz alguma nostalgia e socialmente é como uma sombra terrível, há sempre alguém que nos lembra que somos velhos para alguma coisa. Mas seremos?...Fiquem a saber que eu tenho guardanapos da Hallo Kitty, a minha boneca favorita desde menina e não me sinto nada velha nem nada parva por ter ido à procura de guardanapos especiais para a minha mini festa.

Gosto tanto de empregados simpáticos, de pessoas simpáticas. Fazem tão bem ao ego. Não é mentir bem nem nada disso, é serem disponíveis, dizerem que estão ali para ajudar. Há uma certa inteligência emocional nisso. No outro dia fui à procura de um par de sapatos lindos, mas que infelizmente me doíam muito nos pés (e eram caros, embora a dor nos pés fosse pior do que o preço!). A rapariga ajudou-me, fartou-se de elogiar os sapatos e disse que me ficavam bem. Eu não os levei, mas achei-a muito simpática. Acontece um fenómeno estranho, sobretudo com as mulheres, acho eu, que é a empatia com os outros. Saber vender baseia-se muito nessa filosofia. Ser macio, dócil, atribuir qualidades a quem compra «aquilo», como a beleza, o conforto, a aparência. Eu entrei naquela loja como sou: quispo esbranquiçado, mochila gigante, botas, collantes com meias por cima, mesmo com este calor, suor a escorrer-me do rosto. E ela sempre sorridente, sem olhares parvos de soslaios, que nós topamos muito bem quando existem. Só que o produto não se adequava, paciência. Na Baixa entrei noutra loja e a experiência foi antitética: empregada antipática, má cara, olhares de soslaio, do tipo «quem é esta gaja mal pronta?», mas estava lá o par de sapatos que eu queria. É assim a vida… Ainda tentei utilizar o método da minha avó, de ser simpático com quem é antipático, dizendo «Boa Páscoa!», mas a rapariga resmungou algo, não levantou os olhos e foi à vida dela.

Ser sincero não pressupõe necessariamente ser arrogante (é verdade que às vezes é preciso uma certa agressividade como resposta, para delimitar espaço e dizer ao outro «aqui não entras»). A sinceridade é uma espécie de calma interior, não uma imposição ao outro. Não me parece que dizer «não há fato-de-banho que se lhe sirva» ou como me disseram numa loja «O seu marido não vai gostar de nada disso, eles nunca gostam» seja sinceridade, é, isso sim, arrogância pura. Uma pessoa arrogante não é necessariamente uma pessoa sincera, nem vice-versa, uma pessoa sincera não tem de ser arrogante. Estranho como as pessoas confundem…

Arno Gruen descreve, na sua obra «A Loucura da Normalidade» um estranho aspecto: por vezes os loucos são as pessoas que melhor expressam a sinceridade do Eu, visto desconhecerem, por completo, as barreiras sociais e os códigos que nos orientam (eles e muitas as outras pessoas não loucas, por isso é tão grave a situação). Hoje vi um «louco» no autocarro que fazia coisas estranhas. Os loucos assustam-me desde miúda. Muitos não são perigosos, só estranhos, mas depois de ler o livro de Arno Gruen fiquei com menos pena, porque visto que ninguém os leva a sério, podem basicamente dizer o que lhes apetece. Ele lá estava sentado, fazia sons alto, grunhia, agarrava no braço da pessoa ao lado chamando a atenção para coisas perfeitamente triviais, tipo «Olha um prédio ali!» (no Saldanha, que estranho haver um prédio), mandava as senhoras sentarem-se nos lugares vagos e estendia a mão aos senhores. Depois saiu no Campo Pequeno (isto depois de eu ter fugido para os lugares mais recônditos do autocarro, porque como disse morro de medo dos loucos), e mandou o autocarro avançar, como se comandasse o mundo com as suas mãos. Fiquei a pensar em como nós, seres aparentemente fiáveis, somos tão pouco fiáveis e tão mais instáveis do que este homem. Temos medo de expressar quem somos, mas não temos medo de omitir uma opinião que magoe profundamente alguém ou de dizer o que nos vai na alma por forma a deprimir a outra pessoa, a dizer-lhe de uma vez «Que ideia tão estúpida! És mesmo burrinho!» ou «Eu é que tenho razão, esquece a tua ideia!». É terrível como conseguimos ser estúpidos porque estamos magoados com a vida, connosco, como os outros ou…porque somos estúpidos. Conheço pessoas que não me parecem nada «magoadas» e que são muito antipáticas e agressivas. Por isso, acho os loucos muito mais sensatos, interessantes.

Na verdade, até o meu sogro, conhecido por dizer tudo o que pensa, acha insensato dizer tudo o que se pensa. Ele tem razão, ele é médico e com toda a certeza milhares de vezes na vida teve de dosear cuidadosamente a informação que ia dar às pessoas, de forma inteligente e sensível. Não podemos dizer tudo o que sabemos, nem tudo o que pensamos, nem tudo o que somos. Até porque muitas vezes não vale a pena. Cabe-nos estudar-nos a nós, ao mundo, aos outros, tentar perceber quando, onde e com quem devemos (e podemos) falar.

Sunday, April 15, 2007

O dia em que fiz 30 anos…

Queridos amigos:

Há 30 anos, no dia 15 de Abril de 1977, eu nasci. Estou certa de que isso não alterou a maior parte da política internacional e que se calhar já havia, nesse tempo, problemas na faixa de Gaza (desde que me lembro de ser gente que existem…). Alterou, decerto, a vida da minha mãe, do meu pai, do meu irmão, dos meus avós. Portanto, amigos, a faixa de Gaza não mudou, mas a vida de todos estes intervenientes e de muitos outros modificou-se.

Estou a fazer 30 anos e creio que a vida deles se tornou melhor. Por exemplo, a minha mãe diz que fiz dela uma pessoa mais calma, o meu pai divertia-se a levar-me pacientemente ao parque infantil, a minha avó gostava de me fazer totós, e eu estendia os braços ao meu avô. O meu irmão não gostou da novidade, mas hoje em dia creio que fui uma boa surpresa na vida dele. Herdei a sua maravilhosa capacidade de ter mau feitio, de não aturar pessoas malcriadas e de fazer amigos. Digamos que há um misto de ensinamento e vocação própria, porque inegavelmente eu nasci com algumas qualidades porreiras.

O meu irmão atrasou o meu crescimento em larga escala, porque me empurrou muitas vezes contra a parede quando eu era muito pequena (diz a minha avó), fez dos meus triciclos bicicletas com turbo ligado e colocou todas as minhas bonecas e ursos em posições de fazer corar qualquer estrela porno. O bom disto tudo é que eu aprendi a grande lição da minha vida: aprendi que nada ia ser fácil, mesmo que a avó fizesse tudo para eu não descobrir os podres ao mundo, haveria sempre alguém a puxar o meu triciclo, a deitar-me ao chão, a enraivecer-me. Por tudo isto, o meu irmão foi precioso, mesmo sem se dar conta. Estou a ser positiva e a excluir, propositadamente, a quantidade de estratégias ultra-diversificadas (daquelas que só mesmo uma criança pode imaginar!) para me diminuir a auto-estima. Mas quando penso nisso, penso na quantidade de pessoas que ao longo da minha vida tentaram – e infelizmente algumas com sucesso – diminuir em larga escala quem eu sou. Comparado a essas pessoas, o meu irmão foi um anjo da guarda, com ofensas que ainda hoje disfere e cujo sentido só eu consigo descortinar (os comentários ao meu cabelo eram desnecessários…).

Há 30 anos atrás estou certa de que a minha mãe me saudou com um lindo sorriso, até porque eu era muito rechonchuda. 24 anos depois tive de aprender a perdê-la numa morte que todos podemos considerar como «prematura», mas que, dizem as estatísticas, é extremamente vulgar: cancro da mama. A minha mãe marcava assim a parte mais dura da minha biografia, até agora, a perda e a depressão. O convívio permanente com uma realidade assustadora, avassaladora, desastrosa, que afinal está mesmo ao lado e eu nem me tinha apercebido bem foi penoso. Nem todos nós temos coragem para falar do sofrimento e da morte e eu não tenho jeito para Floribella, por isso não acredito que falar com uma árvore me vá ajudar. Também não tenho jeito para coitadinha, foi estratégia que perdi na infância, quando queria que os meus pais castigassem o meu irmão só para me vingar das maldades dele. Saúdo nesta pequena frase quem ainda consegue fazer-se de «coitadinho», incluindo filhos da mãe que se encostam aos outros na vida familiar, pessoal, familiar.

Isto é uma coisa que veio com os 30 anos: o mau feitio, ou, numa versão altamente melhorada «agora ninguém manda em mim». A mim ninguém se encosta, e isso já vem de miúda. Ai de quem me copiasse, eu também não aceitava ajuda de ninguém. Posso dizer que flexibilizei um pouco esse comportamento, mas sem exageros. Portanto, a enigmática frase da minha mãe «coitadinho é corno» aplica-se bem.

Desse tempo de doença, de morte e de depressão a lição foi tirada: acima de tudo, pragmatismo. Os outros irão achar que é frieza, distância, que disferimos golpes misericordiosos ou que simplesmente vamos embora quando a conversa não nos interessa. A questão é esta: um adulto é isso mesmo. É soluçar apenas com quem temos confiança e sabermos, à partida, que esse grupo de pessoas que nos ouve e ama se estreita, é diminuto e que não há lamentações ou contemplações nostálgicas que valham a sanidade de espírito. Portanto, a onda do «gosto de toda a gente» ou «toda a gente gosta de mim» devia acabar de vez quando começa a idade adulta. Há sempre alguém que não gosta de nós, paciência…

Agora vamos à grande dificuldade da minha vida, porque isto não é só força e vocês são testemunhas disso. A moral. Não ando por aí a fazer de objectora de consciências e a moralizar comportamentos, mas acho que, com o tempo e com os vários aniversários que virão, eu tenho de aprender uma coisa: a não me chatear tanto a procurar a verdade dos factos, cada pessoa é um mundo estranho e muitas pessoas representam mundos adversos, incompatíveis com o nosso. Se podemos enriquecer com alguém, devemo-nos aproximar, mas do que sabemos não querer, do que sabemos estar «moralmente» errado (para nós) devemo-nos afastar. Mais uma vez a inclemência pura e dura: não fazermos parte da vida dessas pessoas e colocar uma barreira que lhes indique claramente que não farão parte da nossa. Se tivermos essa capacidade, um dia aprendemos a outra: borrifarmo-nos por completo em quem não interessa.

Os meus 30 anos são muito bons por causa disto: aprendi qualquer coisa. Não me digam que isso é comum antes de olharem à volta. As pessoas aprendem mesmo qualquer coisa? Raras. Muito raras são as pessoas que sabem o que é uma causa e uma consequência, e aprendem a trilhar um percurso «seu», em vez de trilharem o percurso que os outros gostariam. Muitas pessoas também escolhem o caminho mais oportuno, mais fácil. Mas a lucidez e a clareza, que existem para toda a gente, não são caminhos fáceis. Antes de mais, temos de estar preparados para sofrer. Depois, temos de saber sofrer. Depois, temos de aceitar que estamos a sofrer. Depois sofremos. E a seguir concluímos o que tivermos a concluir do que sofremos, do por que sofremos, do como sofremos, e para que ou quem sofremos. Vejam quantas pessoas forem excluídas neste frase. Quase todas. Já não me acho nada presunçosa a dizer isto. É o que concluo nas minhas observações diárias. A iluminação vem com tempo, paciência, mas sobretudo dedicação. Se vivermos à margem ou na superfície, chegamos ao fim iguais. Não está mal para quem não quer crescer, mas para quem desejou ser uma mulher, como eu, não dá.

É altura de falarmos dos amigos. Um por um mudaram o meu trilho, o meu percurso, cada qual com uma qualidade ou um defeito ou um ensinamento, ou mesmo com a abertura de novas possibilidades. Quem era eu quando os conheci? Alguém muito diferente, se calhar melhor, se calhar pior. Diz-me a memória que todos tiveram comigo a sua história e com cada um desenvolvi uma capacidade diferente. Com uns fiquei mais tagarela, com outros mais cuidadosa, com outros mais esperta, e com muitos desenvolvi capacidades de auto-estima, de trabalho, de dedicação, de partilha e também de grande alegria e cumplicidade. Com outros aprendi a sabedoria maior da vida: sabe-se sempre muito sobre qualquer coisa e quase nada sobre outras coisas. Todos me ajudaram a não estreitar as vistas, a não olhar sempre do mesmo modo nem para o mesmo lado nem para as mesmas coisas, a ser mais ou menos flexível ou dura. Todos me ajudam ainda, sem vacilar. De nenhum dos meus amigos recebi um «não», a não ser por motivos de força maior, ou qualquer espécie de cobrança pela sua dedicação à minha pessoa. Mas acredito que o meu percurso é ainda incipiente, está muito no início, por isso venham daí…

Beijinhos.

Thursday, April 12, 2007

A gaffe

Toda a gente conhece gaffes, umas maiores do que outras. Algumas dão mesmo origem a mails compridos que recebemos nas nossas caixas de e-mail, outras diluem-se no tempo e no espaço. Em português, gaffe corresponde a fífia ou, como diria a minha mãe, meter o pé na argola, dar uma argolada, meter os pés pelas mãos também pode corresponder. Lembro-me sempre de um caso clássico da faculdade. A história começa com uma colega a quem chamávamos «Carlona» porque era gorda e um bocado arrogante, mas que era chamada assim secretamente (ou nós achávamos, porque nunca ninguém primou muito pela descrição e contenção desse juízo de valor). Um dia, outra amiga nossa, distraída, ouve o nome «Carlona» e, não associando à pessoa, pergunta bem alto «Quem é a Carlona?», e a Carlona, que andava por perto diz-lhe «Acho que sou eu». Rimos todos com esta história, que ainda é contada de forma mítica.

A minha gaffe de ontem também não foi má. Por vezes quando me perguntam direcções também esqueço que o universo existe, chego a nem saber responder a questões relacionadas com locais que povoam o meu dia-a-dia. Mas ontem foi uma gaffe inocente, um tanto ou quanto melhor do que estas mais usuais. Há uns dias encontrei uma amiga, muito preocupada, que me disse que a Tembua estava desempregada novamente. A Tembua é uma amiga comum que trabalhava num sítio cujo nome vou omitir, fazendo algo que nada tem que ver com os nossos cursos, como a grande maioria das pessoas com cursos de letras, história, geografia, psicologia e outros tantos pré-destinados a trabalhos mal pagos e não especializados. Relendo a frase, parece que a Tembua foi trabalhar para a Passerelle, mas não é nada disso…

Concentrados na velha máxima, «ter um emprego fixo é que é bom», os nossos pais e avós nunca entenderam que o canudo não é para brincar aos espadachins, é mesmo para ser utilizado a nível científico, de conhecimentos, mas a sociedade não está devidamente estruturada ou preparada para empregar tanta gente com estes cursos que não são técnicos e nem são considerados científicos. Tantas e tantas vezes ouvi na vida «para que é que serve esse curso?». Sempre me apeteceu responder vivamente «para meter no cu». Porque quê dizer «não serve para nada»? Mesmo pessoas com estes cursos dizem isso. Se não serve, então é pôr a servir. Como diz o meu amigo Eduardo, se querem fazer disto um produto de vendas, então vamos por aí. Não desvirtua nada a literatura e a história, ao contrário do que possamos pensar.

A minha avó nunca percebeu que curso tenho. Diz «és professora», mas não sabe mais nada. Um dia perguntou-me se as crianças iam bem, portanto cheguei à conclusão que ela acha que sou professora primária e «sei muito de matemática e francês». Onde é que a minha avó foi buscar isto, eu não sei…mas dá para contar às amigas velhotas dela que eu tenho um curso e é isso que é importante para ela. Não dou aulas, mas ela também nunca vai entender esse lado da questão. Acho que ela também nunca entendeu que uma mulher pode ganhar o mesmo ordenado – ou um muito melhor – do que um homem. Infelizmente, nunca cheguei a essa fasquia, a fim de lhe provar isso.

Se eu atendesse telefones, provavelmente a minha avó não via isso como uma injustiça, até porque podia continuar a dizer que eu tinha um curso (uma boa verdade) e era professora (uma grande mentira). Acho que depois de sabermos que o Sócrates teve o diploma de curso em 1996 e é Primeiro Ministro, posso confiar na minha licenciatura, que por acaso tirei em 1999, apenas três anos depois dele. Se ele chegou onde chegou e formado pela Independente, porque não eu? Muitas coisas na vida dependem, essencialmente, do carisma. Nem é da inteligência. E muito menos do carácter. Não gozem…há muitos colegas com cursos de letras que não têm razões de queixa. Muitos foram direitinhos para professores universitários, apesar de as universidades andarem sempre perto da falência.

Tudo para chegar à Tembua. A Tembua é daquelas pessoas a quem faço a vénia da compreensão e do entendimento. Arranjou trabalho fixo para pagar a casa. Como muitas e muitas pessoas. Mas para quem anda de metro e de comboio, a cara das pessoas é como aquele anúncio do algodão: não engana. As pessoas andam infelizes. De acordo com alguns estudos de psiquiatria e sociologia, dantes as pessoas passavam pelo triplo das dificuldades com metade das depressões que têm hoje. Hoje, há uma certa tendência a ter tudo facilitado, mas ao mesmo tempo, tudo é muito complicado: as distâncias, a vivência comum, o dinheiro, que se gasta em tudo e mais alguma coisa, tudo parece diminuir o prazer que temos em estarmos vivos. Depois o cruzamento entre o nosso mundo e o mundo das outras pessoas, que para uns parece taxativamente fácil e para outros, como eu, é sempre complicado.

Eu e a Tembua somos um bocado parecidas, levamos a vida como espectadoras, dos outros e de nós mesmas, e vamos paralelamente escrevendo piadas acerca de tudo. Observar a burrice medonha de algumas pessoas dá imensa vontade de rir, todavia a burrice de outras mexe até com o fígado mais inócuo do universo. Conheço pessoas burras que são tão burras como espertas, isto é, na verdade são burrinhas, não saem dali, daquele ponto, mas obrigam que outros se verguem a elas, trabalhem por elas. São uma espécie de bivalves, de medusas que se fingem de mortas na areia das praias: a pessoa tem de se desviar ou apanha uma alergia do caixão à cova, todavia ocupam espaço, respiram, chateiam, estão ali. As medusas são o contrário de mim e da Tembua: não têm sentido de humor, acham que basta a sua existência sem mais nada, os outros que se mexam que há-de vir a onda certa que as leve dali.

A Tembua saiu do local onde trabalhava para ir para uma coisa que gostava, mas menos segura, pois claro, mal paga, pois claro, a recibos verdes, pois claro. E diz-me a Tricia um dia destes em pânico: “ Ai que ela não arranjou turmas para dar formação! “. E eu fiquei naquele desespero que só um bom amigo pode ter (desculpem ser convencida, mas se não fosse boa amiga não me tinha chateado muito), a pensar, coitada da Tembua, agora que vai fazer ela? Óbvio que não a via a dobrar cartas ou colar selos em casa, como pedem aqueles anúncios do «Aumente os seus rendimentos» ou a ler tarot como a Florbela Queirós para ganhar uns trocos. Mas via a rapariga desesperada e achei que essa coisa de não lhe darem turmas era uma grande treta, para não dizer uma grande merda. Pensava eu na injustiça deste facto que é notório na nossa sociedade, o tal sapatinho sujo de que fala o Mia Couto, mas no qual acredito piamente, o de pensarmos que só os trolhas, os arrogantes e as más pessoas é que ganham nesta vida, quais putas disfarçadas de donzelas inocentes a precisarem de protecção. Ora como a Tembua não é nada assim, precisa apenas de ser protegida da sogra quando joga o Sporting, fiquei a matutar que talvez pudesse fazer uma daquelas acções tipo Paula, de ir à procura de empregos fixes para os amigos. A Paula é uma espécie de âncora dos amigos, podia perfeitamente trabalhar a arranjar emprego para o pessoal à comissão. Quando pode ajuda.

Como a Tembua já tinha falado com a Paula, segundo a Tricia (mulher é assim: comunica tudo, nem que seja por sinais de fumo!), eu pensei que o desespero era mais do que grande, era gigantesco, era catastrófico, era avassalador, tipo tsunami na vida da Tembua. Imaginava-a a apanhar (verbalmente, claro) do marido, da sogra, do pai, do irmão, de alguns amigos, e até dos avós: “ Ai que trocaste uma coisinha certa, que sabias que pagava a sopa, por uma porcaria que agora não te dá meia dúzia de trocos! “ . A esta altura a Tembua está a rir, porque ouviu mesmo isto de certeza. Eu por acaso é coisa que nunca ouvi, porque nunca tive emprego nenhum, só trabalho, portanto, ao longo dos anos, tenho-me sentido entre o sem-abrigo e o pedinte, com tempo livre mas sem direitos nenhuns. A minha avó passou uma fase belíssima (ironia) lá em casa em que me presenteava com comentários muito entusiasmantes, explicando que para uma mulher eu tinha tudo o que queria: um pai que me sustentava. Realmente, não sei porque é que almejei mais do que isso…

Resolvi que, mesmo estando o casamento da Lina à porta, podia enviar-lhe uns sites de empregos e dar-lhe o meu apoio, confessando, obviamente, que tinha apanhado a informação pela Tricia por mero acaso (para não dar uma de coscuvilheira). E dizer-lhe que, mesmo quando trocamos o «certinho» pelo «caos» às vezes estamos no caminho certo, e quem são os outros para dizer que não é assim…No outro dia de manhã era a gaffe. A Tembua telefona, enquanto eu deambulava por Lisboa, a rir-se e a dizer que estava tudo bem, ganhava mal mas não era grave, tinha as turmas, sim senhor. Portanto, eu tinha apanhado mensagem deturpada e dramatizado ao mais alto nível. Ainda bem! Porque sinceramente não me agradava nada que a minha teoria do caos falhasse agora, logo com a Tembua.

Monday, April 02, 2007

Os bebés

O meu sobrinho é ainda muito pequeno, tem pouco mais de um ano. Portanto, não sabe bem quem é a tia, ainda não tem discernimento para saber qual é o carácter da tia. Por isso é tão bom lidar com ele, porque ele trata as pessoas consoante o que vê, sem qualquer implicação de maior ou maldade. É natural que os pais estejam na sua lista de eleição em primeiro lugar, visto que precisa mais deles, brinca mais com eles, são eles que o ajudam a vestir, calçar, tomar banho, ser gente pequenina. A tia não. A tia, esta tia, é mais para as brincadeiras, assiste ao seu crescimento apenas, participa devagarinho, embora quando o bebé fica longe uns tempinhos, pareça um adulto no encontro seguinte. Há sempre uma novidade, seja na quantidade de baba produzida (que geralmente representa mais um dente a nascer), seja naquilo que come (e consequentemente, a mudança da cor daquilo que caga), seja no tamanho dos sapatos, uma palavra, um novo andar.

Não escondo que nunca fui muito de crianças. Não vou com a cara delas, desculpem a sinceridade. São porcas, malcriadas, brincam com o que não devem, mexem em tudo o que é perigoso e abusam muito dos adultos. Na verdade, depende muito da educação que lhes é dada. A minha avó tem o lema que a criança pode e deve fazer tudo porque é criança, mas qualquer pai ou mãe (ou professor) que se preze sabe que não pode ser assim. Têm de existir regras definidas à partida como «certas», e têm de se afastar daquilo que é errado. Esta tarefa nunca acaba. Mãe é sempre mãe, mesmo que venda um filho, dê para adopção. No caso de o pôr no lixo, largado à sua sorte, já tenho dúvidas que seja mãe, porque não é bem um ser humano. Um ser humano não faz isso a outro completamente indefeso, isso representa não dar nem uma chance ao recém-nascido. Por sorte, imensos são apanhados a tempo e criados por quem os ama.

Num programa da Oprah, ela mostrou o caso de uma mulher cujo passado era desconhecido. Tinha sido adoptada após uma enfermeira a ter descoberto num carro abandonado. Era incrível, a história. Numa noite de Inverno gélida, cheia de neve, ali estava a bebé num carro todo partido. Evidentemente quem faz isto pouco valor dá à vida. Não vale dizer que «estava drogada», há muitos drogados que largam a droga exactamente por terem descoberto uma razão para existirem: os filhos. Fala-vos uma mulher totalmente despreparada para ser mãe, ou quiçá preparada, mas sem saber. Dantes os filhos vinham tão cedo, e as mães sabiam cuidar deles com primor na mesma. Não posso mesmo acreditar que mulheres e homens sejam iguais nesta tarefa. Pode ser que haja homens que sejam honrosas excepções, mas não acredito que eles de repente comecem a ser pais como nós começamos a ser mães. No fundo, estamos sempre preparadas, mesmo quando não sabemos, o que é a menstruação senão isto mesmo, a lembrança de que, naquele mês «é que podia ter sido e não foi».

Um bebé é um ser incrível. Baba-se, é muito porco, não tem maneiras à mesa, estragando e partindo tudo com um à vontade que mete nojo. Um bebé não quer saber da etiqueta, chora onde lhe apetece, caga quando lhe apetece, quer mimo quando estamos distraídos ou ocupados. Mas por isso mesmo um bebé é tão precioso: somos nós sem a ganga social que deprime, oprime e chateia tanto em alguns dias. Poucos de nós farão birra quando têm sono ou fome, mas ficamos irritados, com vontade de dar um murro em alguém. Não rebolamos no chão, não fazemos fitas, mas isso é porque não podemos. Até faríamos, em certos dias, mas «parecia mal». Para um bebé nada parece mal…para nossa completa vergonha.

Quando os bebés fazem certas coisas que os adultos também fazem têm muito mais graça: um sorriso de um bebé vale mil palavras de um adulto (sobretudo se for parvo). Nos filmes «Look who’s talking!», «Olha quem fala», ouvíamos os pensamentos do bebé na voz do Bruce Willis, e eram os de um adulto que faz stand-up comedy. Não tem nada a ver com um bebé…um bebé é simpático porque lhe interessa ganhar alguma coisa, porque provoca uma reacção positiva no adulto (como outro sorriso) ou porque lhe pegam ao colo. Há uma teoria que diz que os bebés detectam as pessoas bonitas, graças à simetria do rosto, mas tenho as minhas dúvidas, se não poucas avós teriam direito a algum sorriso.

Quando o meu sobrinho começou a sorrir para mim, e nessa altura já sorria aos pais, foi uma emoção sem par. O meu coração iluminou-se, lamento a lamechice, e eu pensei cá para mim, muito convencida «Agora eu sou uma pessoa importante! Alguém que mal me conhece sorriu-me ternamente e estendeu-me uma mão pequena e sapuda!». No outro blogue que eu tinha, fartei-me de dizer isto, um bebé é um conquistador nato. Nasceu para vencer, está-lhe na massa do sangue. Ninguém se meta com ele. Agora que o Sérgio está mais esperto, está também mais chato. Quer os fios, as tomadas, as jarras de vidro, as maçãs, os dvd’s, os sacos de plástico, as teclas do computador, os comandos todos, em suma, tudo o que não pode ter, porque um bebé corre sempre riscos: o de se afogar, de se aleijar, de partir, de sufocar, de cair.

Apesar de não saber o que é wrestling, o meu irmão atira-o às almofadas, simulando uma luta feroz. Ele acha graça, não porque queira lutar, mas porque cair nas almofadas lhe dá alegria e prazer. Ainda se desdobra todo e chega aos pés, fazendo coisas que só a Madonna faz depois de anos de prática de yoga. Atira coisas ao chão com violência e ganas de as ver partirem-se em estilhaços.

No dia em que o Sérgio foi a minha casa, ela tomou novas feições, uma decoração ultra-fashion, de maçãs espalhadas pelo chão e bocados de pão de todos os tamanhos agarrados, literalmente, ao tapete e depois às solas dos nossos sapatos. Depois de termos estado uma tarde na limpeza da casa, mais uma vez para «parecer bem» aos nossos convidados, percebemos o seguinte: o Sérgio não quer saber, onde ele está é onde brinca, e consequentemente suja com as suas mãozinhas sempre cheias de qualquer coisa gordurosa e peganhenta. Também se ri de maldades puras, como puxar o cabelo à mãe, agarrar-se às pernas do pai, atirar os óculos da tia ao chão ou puxar a barba ao tio. Tudo tem graça, mesmo que a nossa expressão seja de dor e de sacrifício. Um bebé é um explorador nato. Se está ali alguma coisa, então é para mexer, conhecer, arrancar, partir.

Debaixo de qualquer mesa o Serginho é um coitadinho atormentado, perde todo o seu poder e auto-controlo. Fica preso, chora, bate com a cabeça mais de quinhentas vezes nos tampos da mesa, e quando consegue sair ou quando o puxam, volta a fazer o mesmo vezes sem conta. Depois faz o mesmo debaixo das cadeiras.

Outra brincadeira é o esconde-esconde. Porque raio os bebés gostam tanto de apanhar sustos, mesmo que fingidos? Esconder atrás do sofá, da mesa, do candeeiro, da porta, tudo é de uma diversão sem par para ele. Parece ver as nossas caras com prazer, sorrindo calorosamente. Um bebé pode ser chato porque exige uma hiper-vigilância 24 horas por dia, sem podermos respirar fora da existência dele durante muito tempo, só que quando estamos com ele revela novos mundos ao mundo, ou se calhar mundos dos quais já estaríamos esquecidos há muito. O mundo dos sentidos, da vida, da espontaneidade, da falta de lógica racional, da tentativa de descoberta à maneira de cada um e não «à maneira dos outros». Um bebé não é um ser autónomo, sozinho morria, mas é o fulcro, o âmago, o centro de todos nós, o começo do que somos hoje. Um bebé recorda-nos a nossa trajectória e história de vida, se calhar por isso gostamos tanto deles. Somos nós, menos a nossa mania de ter defeitos e virtudes e de sermos socialmente aceites. Já viram algum bebé a tentar ser socialmente correcto e aceite pelos outros bebés? Só no anúncio das fraldas…

Tenho saudades dessa espontaneidade nas pessoas, do genuíno, do puro, do sorrir só porque sim, porque apetece, sem medo de se ser julgado e atraiçoado logo de seguida com comentários infelizes. Não podemos dar cabo da auto-estima de um bebé, pelo menos até certa idade, porque ele só faz o que lhe apetece. É evidente que é condicionado, pode ter razões e saber bem por onde está a puxar. Mas se dissermos a um bebé «és estúpido!» ele tanto pode arrotar como rir. As pessoas adultas têm sempre implicações no que fazem e no que dizem, têm consequências, têm – supostamente – consciência. E isso dói. Um bebé também nos recorda como ficar sozinho e não ser abraçado pode trazer infelicidade. Recorda-nos o desamparo pelo qual tivemos de passar, pelos vistos recalcado e fruto de todos os nossos problemas. Sem dúvida que, vistas as coisas deste modo, um bebé tem imenso poder sobre nós.

A responsabilidade

Às mulheres são atribuídos os papéis mais difíceis e custosos deste mundo. Para já, porque uma mulher pode ter filhos, logo, tem de ter dores: menstruais, corporais, físicas. Dizem mesmo que as mulheres têm mais resistência à dor do que os homens, ora a natureza sabe bem o que faz, e mulher que não resista à dor não se vai meter numa de ter filhos, a menos que peça logo a anestesia (no entanto, corre sempre riscos). O meu amigo Eduardo tem uma perspectiva acerca das mulheres que eu gosto muito: vale sempre a pena dar-lhes uma oportunidade. São organizadas, decididas, trabalhadoras e, além disso, conseguem fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Enquanto um homem compra um cacho de bananas, uma mulher faz as compras, leva as compras a casa, limpa a ranhoca dos filhos e faz o jantar.

Uma mulher é um ser multifacetado. Bem, algumas…Muitas estão destinadas a fazer o que melhor sabem, o papel indesejado que ao longo dos séculos tiveram na sombra dos homens: manipuladoras, estrategas, falsárias, larápias, aproveitadoras baratas (ou caras), intriguistas. Casos como Cleópatra, Mata Hari, Lucrécia de Borgia mostram a força da mulher pelo lado pior. Muitas vezes se atribui a Yoko Ono a separação dos Beatles, que ela ainda hoje desmente. Mas será que os homens conhecem bem este poder das mulheres? Será que eles percebem a sua posição de fraqueza, mesmo quando são colocados perante a suposta «fragilidade» das mulheres? Às mulheres são atribuídas responsabilidades enormes: Eva é responsável, ou co-responsável pelo pecado no mundo, por isso não começámos bem, começámos por sussurrar aos homens que tínhamos melhores ideias do que eles, o que nem sempre é verdade.

Vemos sempre uma mulher manipuladora de forma estilizada: exuberante, bonita, muito maquilhada, malévola, inimiga de qualquer outra mulher que rapidamente não se una a ela. Vê nos outros escravos que vivem ao sabor dos seus gostos mais perversos. Todavia, quantas mulheres desenxabidas não serão manipuladoras? Quantas de nós, no melhor e no pior, não conseguimos o que queremos com armas muito menos exuberantes, bastando no fundo existir e ficarmos sentadas à espera que eles se atirem? Há um mito que diz que as mulheres são espertas e os homens parvos. Naturalmente que em parte concordo. Há uma dose de burrice muito grande num homem apaixonado, que loucamente saliva por sexo, atenção e reconhecimento (reiteração) da sua masculinidade. Com armas adequadas, qualquer um destes homens se compromete e dá tudo à mulher. Parece que enquanto alguns deles sentem vontade de dominá-las por ódio a si mesmos (Arno Gruen, novamente), outros sentem vontade de as proteger, como forma de reiteração do facto de serem homens e quererem assumir esse velho papel desde o tempo das cavernas. Os homens não percebem uma coisa: as mulheres não precisam disso, existem bem sem eles. Quando elas dependem deles é porque estão mesmo mal, ou porque estão a manipulá-los sem dó nem piedade. Também há a versão da coitadinha, da mulher preguiçosa que não quer aprender a fazer nada.

Sou uma pessoa amarga no que diz respeito ao amor. Continuo a achar que as relações durarem mais ou menos tempo não tem a ver com isso. Há gente que se casa para toda a vida e vive na mentira e no erro. Acho que a durabilidade dos casamentos depende da verdade, do querer ou não viver com a nossa verdade, aceitando a verdade do outro. Talvez se viva mais feliz na mentira, não invoca tanto sofrimento. Talvez pessoas frias e desapaixonadas sejam as mulheres «ideais»: elas ficam à espera de terem tudo o que querem, eles ficam à espera de lhes darem tudo. No fundo, o objectivo de vida é exactamente o mesmo: enganarmo-nos a nós próprios. A dependência, o apego e a manipulação afectiva são bem mais hábeis e seguros do que o amor, que é volátil, etéreo, irónico até, porque muitas vezes nos faz perder a noção do concreto e cometer a loucura de nos casarmos. Tudo isto é uma grande responsabilidade, mas a responsabilidade está no domínio da consciência, e essa sim, vai escasseando.

Em sintonia

Mais do que empatia, simpatia, utopia, sempre gostei da palavra sintonia. Parece mais terra-a-terra do que utopia, mais rebuscada do que empatia ou simpatia. Já agora empatia é profunda, porque pode ter ou não simpatia à mistura, mas tem muito a ver com sintonia. Sintonia lembra-me sinfonia, música, arranjo musical. Tem a ver com algo muito lato que me é extremamente caro: a coerência. Se vivermos em coerência com os nossos valores, pode ruir o mundo, podemos estar tristes, mas sabemos, à partida, que somos nós próprios, que não existimos só para agradar aos outros, que temos um dom não partilhado com a grande maioria das pessoas: há um trilho que só nós percorremos, sozinhos, sem ninguém nos ajudar, mesmo que em todos os outros percursos tenhamos tido ajuda. O percurso do eu. Isso é fundamental. Sem isso, não há coerência, e claro, não há sintonia, nem connosco, nem com as pessoas, nem com o mundo.

Não sei quem eu teria sido se tivesse seguido tão somente a educação que me foi dada. Um misto dos meus pais e dos meus avós parece-me coisa ruim. Mas sem eu própria cá estar era isso que tinha acontecido. Há muita coisa que nunca teria sido como é, há muitas pessoas que eu não teria encontrado no meu caminho. Se eu tivesse levado à letra algumas palavras que me proferiram, eu não estava casada, nem fora de casa, nem a fazer investigação. Houve uma pequena parte de tudo o que fui ouvindo que fez de mim uma pessoa bastante desconfiada: afinal, o que querem os outros? Parece que há pessoas que vivem permanentemente apoiadas nos nossos ombros, a achar que assim é que estão bem, e se lhes desviamos um bocadinho o ombro somos considerados maus filhos, gente com mau feitio, gente fria e severa. Não podemos viver a sorrir, porque essa confiança representa o fim de nós próprios, mesmo que, bem lá no fundo, sejamos simpáticos e tenhamos vontade de ajudar.

Foi sempre isto que senti com muitas pessoas, mesmo da minha família: estavam ali, expectantes, à espera de mim, mas pior do que isso, achavam que eu tinha de ser «assim», naquele formato pré-definido. Há pessoas que lembram os animais, se vêem comida arfam, babam-se e vêm a correr ter connosco. Todavia, se um dia aparecemos de mãos vazias, ali vêm na mesma, pousam à frente dos nossos pés, esperam um bocadinho e depois vão embora. Com as pessoas é diferente, porque as pessoas criticam. Acham que se éramos de uma maneira (provavelmente imaginada por elas) não lhes podemos frustrar as expectativas nunca. A minha avó ainda me cobra as coisas que eu fazia e que eu pensava aos dez anos. Eu tenho trinta. Em vinte anos não podemos mudar nada do que somos?

Estar em sintonia é muito difícil porque compreende o frágil equilíbrio entre o social, o pessoal e o familiar. Mas acima de tudo exige que sejamos coerentes connosco, com os nossos desejos, crenças e sonhos mais profundos. Exige que façamos o luto daquilo em que não acreditamos e das relações pessoais que nos frustram e que passemos à fase seguinte: a fase em que nós temos de ser nós, a fase em que temos dúvidas mas só as expomos a quem as merece ouvir, a fase em que bocas foleiras deixam de nos afectar e em que finalmente pensamos que há pessoas para as quais o maior castigo é serem como são, mas que infelizmente não há Justiça Divina que nos ilumine o caminho e puna os que consideramos prevaricadores. Estar em sintonia é não precisar de mais informações se não as que gostamos de ter, de ouvir, de saborear, de escrever, de partilhar. É dar aos outros o lugar que eles merecem: alguns pertinho de nós, outros bem longe. É só termos e sermos aquilo que realmente precisamos, e não nos importarmos nada que nos chamem orgulhosos, presunçosos ou maus feitios. É ter a certeza que não estorvámos ninguém na hora errada e pedimos ajuda na hora certa, e não nos arrependermos disso. É estar preparado para ser estorvado na hora errada, mas também para ajudar na hora certa. É aceitar os nossos erros e falhas. Eles cá estão para nos lembrarmos que somos humanos, e sobretudo que é muito difícil estar em sintonia, exige anos de treino rigoroso, e que, como qualquer atleta que preza sua forma física, devemos treinar o espírito e a consciência.