Thursday, February 22, 2007

As metáforas

Já devo ter dito algumas vezes, no outro blogue ou mesmo neste, o quanto gosto de figuras de estilo, ou figuras de pensamento ou recursos estilísticos. Não é bem a mesma coisa, mas digamos que aprecio tudo isso por diversas razões: uma delas é o facto de expressarem a capacidade linguística de um falante e a inesgotável fonte que é a língua. A outra é o facto inequívoco e indesmentível de que a humanidade é complexa, que os comportamentos humanos são por vezes enigmáticos e indescortináveis. A língua expressa mesmo isso: a susceptibilidade, a fragilidade do que é ser-se humano.
De todos os recursos, realmente adoro a metáfora. Era a grande eleita da minha professora da faculdade, Maria Lúcia Lepecki. A metáfora é uma senhora, como ela dizia, juntamente com a ironia. Também gosto da ironia, mas a mim parece-me que a metáfora abarca os significados todos do mundo.
Na Bíblia, quantas metáforas existem? Centenas de milhares. Umas expressam-se de um modo e outras de outro. Chegam à alegoria, à parábola, que são metáforas trabalhadas em conjunto e numa grande parceria que engrandece a vida. Caim mata Abel, o seu irmão, cheio de ódio e raiva desesperante. Job sofre humilhações sucessivas nas mãos de um Deus inclemente. Noé é o escolhido para salvar o que resta da humanidade e retomar de novo a humanidade. Sara ri-se quando Deus lhe diz que ela vai ser mãe depois de velha. Abraão propõe-se imolar o filho em troca do amor a Deus. E há ainda a história do homem das estátuas de sal, cujo nome não me lembro, mas que não pode olhar para trás. Há ainda a história mais mitificante de todas: Adão e Eva. Ele o bruto, o parvo, o tosco, o imperfeito. Ela a espertalhona que se faz de parva e tenta o companheiro. Tudo ensaios de Deus para um mundo melhor. Ou não. Andaria ele a brincar com o barro este tempo todo? As histórias bíblicas definem uma moral de partida: sofrer para agradar a Deus. Tudo o que saia fora das leis Dele, sai fora do que é aceitável.
A questão da moral e da ética foi trabalhada ao longo dos séculos, dos dois milénios mais sete anos que contámos até aqui. Contamos os anos e temos um calendário para nos organizarmos. Na altura de Deus não havia agendas. Ele lá mandou umas tabuinhas ao Moisés, mas as gerações vindouras não as souberam conservar. Eu adorava ver os mandamentos…seriam mesmo dez? Seriam mesmo aqueles? Quem disse? Foi das primeiras legislações que conhecemos. A lei a definir e a organizar o mundo dos vivos. E a mentira a tomar conta de nós: a Igreja disse - é porque é. Na Bíblia do Velho Testamento não há espaço para o livre arbítrio. Mas na do Novo Testamento aparece aquela figura fantástica, contada, definida, traçada pelos apóstolos: Jesus Cristo. Ele vem dar nova alma à Bíblia, porque ensina, com algum rigor, que a pessoa pode escolher não acreditar em nada, desde que saiba as consequências disso, essas sim miseráveis e tormentosas. Mas ao menos pode-se. Não se deve.
Tanto tempo passado, eu diria que muita desta moral sobreviveu. Ai, ai, lá estás tu a prevaricar: a cobiçar, a ser invejoso, a matar, a não amar os teus semelhantes. Deus não previu algumas excepções, mas elas felizmente já entraram na lei: matar em legítima defesa é um pecado à mesma, mas tem menos peso do que premeditar um assassinato. O que fazer às almas dos soldados que combatem nas guerras, tantas vezes obrigados a essa triste função com um fim fatídico? Suscita-se até o ódio ao próximo por razões absolutamente inexplicáveis. Veja-se em alguns filmes americanos o ódio ao vietnamita, ao chinês, ao russo, ao cubano, etc. O inimigo tem cara: uma cara diferente da nossa, uma história diferente da nossa, interesses diferentes. Como muitas vezes esse rosto parece desumanizado, encarnando, alegoricamente, o mal (que reside sempre na diferença), é preciso matá-lo, extirpá-lo, retirar-lhe razão e sentimento. O inimigo é sempre feio, porco e mau. Porque….?
Eu sou uma metafórica à antiga. Garanto-vos que dava para psiquiatra. Sou estupenda a encaixotar, emparelhar, comparar, analisar, prescrever. Um psiquiatra não é, obviamente, um metafórico. Não vai olhar para um doente como se este encarnasse o mal, vai olhar para a sua diferença e torná-la plausível, explicável, através de uma doença ou de uma acontecimento traumático. Nenhum doente deve ter escrito «violado na infância» na testa ou «neurose histérica» ou «psicose». Nenhum representa cada um destes casos. Mas eu, que gostaria muito de ser psiquiatra, mas que, como vivo rodeada de casos estranhos e paradigmáticos de doença mental excusei a profissão (não fosse gastar todas as minhas energias pessoais a categorizar noite e dia, dia e noite), sou bastante dada a ver nas pessoas uma encarnação de qualquer coisa de bom ou de mau.
Em criança não me parecia nada assim, não tinha muito a noção do preto e do branco. As coisas eram bem difusas. Nem tive nunca a sensação de os meus pais terem toda a razão do mundo, porque na maior parte das vezes eles pareciam mais confusos do que eu. Nunca gostei de adultos, nem mesmo quando cheguei à idade adulta. Mas pior do que um adulto, é um adulto armado em criança em coisas de adulto, porque também as há, lá estou eu a encaixotar. O amor, por exemplo, é universal. As crianças sentem, os adultos, os velhos. Atravessa a vida. Todavia, muitos de nós não temos a capacidade de perceber onde ficou a criança e onde está o adulto. Damos origem a uma disfuncionalidade que já considero típica dos adultos Peter Pan: se eu não lhe der tudo não sou ninguém. A identificação com o «outro» é por demasia patológica, mas típica de, vá lá, uns quinze anos mal feitinhos (isto sem livros à frente).
Quando eu era criança havia coisas que eu odiava nos meus pais. Uma delas era o facto de sorrirem a quem não gostavam. Aquilo parecia-me medonho e terrivelmente insatisfatório, de um ponto de vista emocional. Eu sou uma pessoa com muita dificuldade em sorrir a quem não gosto. Deve ser por isto. Outra coisa que me irritava era eu não me poder comportar como uma criança – coisa que só mais tarde vim a perceber, porque eu nunca soube como era uma criança até entrar na escola – e ter de estar sentada, absorta, sem perceber patavina das conversas em que não me podia meter. Quando entrei na escola tive o maior choque psicológico de que me lembro, acompanhado de chá preto nos intervalos, que a minha avó me levava «para eu não desmaiar porque não comia». As crianças corriam, batiam-se, caíam, aleijavam-se, eram porcas. Eu só fiz duas coisas durante os primeiros tempos de escola: encostar-me à parede ou pedir para não sair da sala de aula (a minha mãe chegou a fazer esse pedido especial, graças à minha insistência). Tudo, menos conviver no meio daquilo que eu própria via como uma violência sem igual. Em casa, a minha avó morria de medo que eu na escola morresse à fome, à sede, ou que partisse a cabeça, ou que me batessem. Também tentava fazer os meus exercícios da escola ou dizer-me como se escreviam as palavras num ditado. Além disso, a contínua estava comprada pela minha avó, e por isso vigiava o que eu comia.
Sempre fui uma mulher de livre-arbítrio. Devo ter nascido assim. Eu e o meu irmão ludibriávamos os sistemas de vigilância todos. Cheguei a oferecer o meu lanche às crianças que tinham fome, só para dizer a mim própria «eu posso, quero e mando, não mandam em mim». Hoje rio-me desta sabedoria aos seis anos…Todavia, essa luta, ao longo da vida, foi implacável e determinante no meu carácter. Acordava vezes sem par da minha sesta depois de almoço com peras e maçãs cortadas aos pedaços, «para não morrer à fome», normalmente porque «tinha comido mal ao almoço». De uma pêra (comida ou não comida) passava a outra, «mais bonita». Com tanta insistência e tantas vitaminas, cheguei à adolescência bem gordinha, o que me causava um desgosto danado. Então começou a luta ao contrário, porque passei a ouvir que estava gorda.
Não sei bem do que é que a minha vida será metáfora. Com uma biografia destas, eu podia ter sido uma atrasada mental, convencida e arrogante, afinal, sempre tentaram respirar por mim. Só que, por carácter ou por escolha, desde pequena que faço o percurso contrário. Da minha vida também podia ter saído uma suicidária, estou certa disso. Aos treze anos eu tive a sensação nítida de que não aguentava mais e que queria morrer. Lembro-me de ter fixado prazos para morrer em função da minha escrita. Dizia a mim mesma «depois deste livro estou completa e mato-te». Mas como era uma perfeccionista, não me matava e fazia outro livro melhor. Farto-me de romantizar a minha vida… Ficou-me sempre um certo amargo na boca deste tempo, porque voltei a uma situação de angústia vezes sem conta, e ainda hoje escolho a angústia como uma companheira nocturna incomodativa. Ficou-me a ansiedade, que é pérfida. O stress incomum com coisas incomuns. Ficou-me o som e a batida da régua nas minhas mãos quando fazia erros no ditado. E a certeza de não conseguir, nesse tempo e nesse espaço, ser eu própria como sou neste blogue.
Há pessoas que são metáforas. Como na Bíblia Caim encarna a maldade e Eva o pecado. Há pessoas que encarnam tudo aquilo contra o qual lutamos. Estou-me agora a lembrar de um dado muito curioso: só os meus amigos não são metáforas más, daquelas «contra as quais eu luto». Há muitas pessoas nas quais não consigo enxergar uma réstia de humanidade (não tenho mesmo jeito para budista…). E desde pequena que vejo bem isso: a ausência de um sentimento bom, profundo, sensível, conectado com o interior das pessoas. Porque será que as pessoas acham sempre que se podem disfarçar em cinismos, falsas simpatias, hipocrisias, conquistas, contornos falsos? Porque será que as pessoas acham que podem mentir acerca de si mesmas sobre coisas que lhes estão cravadas na epiderme, às vezes tatuadas na testa, outras vezes diluídas num falso brilho nos olhos? Há um dia em que deixamos de ser rebaixados por este tipo de mentira, quer ela seja consciente ou não. Há um dia em que nos tornamos pragmáticos (ou metáfora do pragmatismo) e olhamos para estas pessoas de soslaio, dizendo-lhes com um só olhar «porque mentes, trolha?». Os outros inconscientes que sejam enganados, na sua desconexão e imaturidade interior. Fui eu obrigada a comer maçãs e peros na infância, chegar à adolescência gorda com tendências suicidas para agora me dar uma de fragilidade e inconstância em relação a seres medonhos com mau fundo?…
Quer queiramos quer não há uma moral em todas as histórias. Eu ainda não descobri a minha (mas os leitores podem aventar hipóteses, até mesmo categóricas), talvez seja mesmo o pragmatismo, mas sem exageros, porque um bocadinho de subjectividade nunca fez mal a ninguém. Agora, moral tem de haver sempre. Não me lixem o juízo com as merdas do mais ou menos, das zonas cinzentas, do aceitar as diferenças todas. Não, não. Há perversões morais que custam anos de vida. Como não acredito na moral católica, também não acho que haja castigo propriamente dito, Deus está sempre distraído para o que não deve, anda sempre a fazer terramotos e cheias nas zonas mais pobres do mundo. Também não acredito na reencarnação kármica, senão haveria muitas pessoas a reencarnar num cagalhão ou numa pedra. Só há uma alternativa: acreditar no percurso de per si. Não esperar grandes conquistas nem um pote de ouro ao fundo do arco-íris, mas acreditar que um percurso limpo, uma consciência limpa, uma vida limpa deixa de lado o que não interessa. Custa e é moroso, mas não vejo em que mais poderei acreditar.
Não espero que por causa de mim deixe de haver corrupção, maldade, manipulação. Não espero que corruptos, manipuladores e gente mal intencionada perca o jogo – já deixei de estar à espera disso, tal como uma mulher fértil quando está farta de tentar engravidar e não consegue (quando ela sossega o espírito, então engravida). Do mesmo modo, se eu não esperar «castigo», talvez ele exista. Não do modo exemplar e telenovelesco que sempre estamos à espera: de vermos as pessoas corroídas pela vida, derrotadas, postas de lado. Há sempre alguém que dá a mão a um mentiroso, há sempre alguém mais frágil lá à frente para enganarem. Duvido que um manipulador durma sozinho. Dorme, isso sim, mal acompanhado, sem um frémito de paixão, de amor, de compaixão pela humanidade do outro. Que maior derrota pode haver do que esta? Mais tarde ou mais cedo um parasita morre, mesmo que não seja por falta de hospedeiro. Morre por dentro, morre por fora, morre para os outros de quem não se alimenta. Não é a morte uma certeza da humanidade?

O pragmatismo

Há muito tempo que não ouvia esta expressão na boca de alguém, apesar de todos os meus amigos e amigas me recomendarem como sendo a solução «ideal» para o meu problema familiar e emocional. Se na vida houver uma coisa que temos de fazer é ir em frente. Se na vida houver diversas opções, temos de escolher a «nossa» opção e não a dos outros e concentrarmo-nos nela e apenas nela, independentemente das consequências. Isso é pragmatismo, mas mais do que isso ser-se pragmático é uma arte que demora a aprender, e que por vezes leva anos e anos a interiorizar. Por vezes a vida prega partidas funestas e obriga-nos a olhá-la com essa mesma atitude. A morte, por exemplo, desafia-nos nesse sentido. A olharmo-nos, a sentirmos «isto sou eu, eu sou mortal», a perceber que sofremos e que isso é normal, não é nem especial nem tétrico.
Há pessoas pragmáticas que me surpreendem na sua franqueza. Há outras que me surpreendem na sua falsidade, porque disfarçam o pragmatismo com boas intenções que não existem. Em suma, há dois tipos de pragmático: o que se assume como tal e que se vê que é, e o manipulador, que sendo pragmático traça apenas objectivos para conquistar e reinar até encontrar poiso melhor.
Tento muitas vezes ser pragmática em coisas que não sou, por natureza, nada pragmática. Digo-me «isto não te interessa», «esta pessoa nada te diz», «isto aconteceu por mero acaso, esquece». São talvez as minhas expectativas exageradas acerca das pessoas (consequência do exagero de exigência em relação a mim própria) que me levam a concluir que não sou nada pragmática. Acho mesmo que, mesmo sem Deus existir na minha vida, os acontecimentos e as pessoas fazem algum sentido no cômputo geral do universo. Portanto acabo por dizer a mim mesma, bem lá no fundo, «isto afinal interessa-te», «esta pessoa está aqui a ensinar-te qualquer coisa», «isto não aconteceu por mero acaso, foca-te». Essa perspectiva nem sempre é a melhor, sobretudo porque implica um sofrimento adverso aos nossos próprios objectivos. Implica até uma observação suplementar da realidade, a qual nem sempre nos agrada. Implica também aceitar a nossa percepção extra, se a tivermos, em relação ao mundo, sabendo bem que nem sempre estamos a observar o melhor dele.
Mas ser-se pragmático é uma exigência da vida e um modo de vida claramente objectivo. A mim falta-me objectividade. Não podemos ser fundamentalistas em relação àquilo que é objectivo, a vida não é só matemática e até a nossa matemática sai furada. Deixarmos os acontecimentos fluírem é inteligente, todavia, é bom estarmos atentos. Há muitos afluentes num rio, e a vida é um rio gigante. O máximo do pragmatismo é sabermos que a nossa passagem é curta, que temos de vivê-la o melhor possível com o que temos, e saber que vamos simplesmente desaparecer, morrer, fenecer, como qualquer elemento natural vivo (até uma pedra vai sendo destruída pelo vento). Também temos de saber que pelo meio se mete o amor, a tristeza, a paixão, a subjectividade, a incerteza, a cisão, o fragmento. Há acontecimentos na vida que solicitam o nosso pragmatismo elevado ao quadrado, normalmente as grandes mudanças como um filho, o casamento, emprego, etc. Convém concentrarmo-nos no principal. Com o principal a descoberto, o supérfluo não tem lugar. O resto passa a adquirir uma faceta de inutilidade transversal: algo que tem de atravessar a vida mas que nem nos pode tocar. Quem dera que tudo fosse tão simples quanto estas palavras…

Thursday, February 15, 2007



A normalidade

Há uns tempos atrás, quando existia o GNT, dava uma sitcom com o nome de «Os Normais». Era a história de um casal totalmente disfuncional e anormal, cujas relações com os outros se pautavam pela imbecilidade. Começo a achar, com muita franqueza, que a imbecilidade é mesmo o normal, o aceitável, o frequente, tão frequente que se tornou dejà vu. As obras do psicanalista Arno Gruen são estudos eficazes de como o «errado» se tornou completamente inevitável e aceitável aos olhos de quase todos nós.
No outro dia, no programa da Ana Sousa Dias (na RTP2), o actor brasileiro Pedro Cardoso falava das implicações de ser assaltado por meninos de dez anos no Brasil, dizendo que todos nós, enquanto sociedade, somos literalmente culpados disso. Que poder de decisão tem um menino de dez anos com uma família desestruturada? Por isso, este estado de coisas a que chegámos, em que ser malcriado está na moda e assenta bem, em que o disfarce ganha pontos em relação à verdade, deixa-me, ainda, estarrecida, provavelmente porque, tal como me diz a Patrícia, eu digo que não acredito na humanidade das pessoas, mas acredito e tenho expectativas demasiado altas. Só uma pessoa com expectativas altas pode ficar desiludida com os outros. Está na cara que somos todos tão diferentes como os queijos franceses (comparação mal cheirosa, mas pronto). Porque andarmos em stress com a atrasadice mental de energúmenos malcriados? Eu explico.
Em primeiro lugar porque não vivemos sozinhos, portanto a vida exige um convívio mínimo. Desse convívio tanto podemos extirpar as coisas más, como não. E por vezes fica-nos esse amargo na boca de que realmente fomos injustiçados pelos outros, quer seja pelo seu trato agressivo quer seja pelas considerações que fizeram de nós. Deveríamos, num estado de espírito calmo, não nos interessar pela opinião dos outros. Mas será que na nossa interacção diária isso é mesmo possível e exequível? Até certo ponto sim. Não é por nos chamarem incompetentes que o somos, não é por nos chamarem más pessoas que o somos, não é por dizerem que somos fracos que o somos. Então porque ficamos (ou porque fico eu) tão abalados com isso?
Na realidade, «isso» também são relações humanas. Infelizmente. Devemos ajuizar bem o que queremos. Se queremos uma conversa ou se preferimos discutir a sério ou jogar à defesa. Cada pessoa se presta a uma coisa diferente. O normal oscila muito consoante as situações e as pessoas, isso eu sei. Mas também há muitas coisas que me parecem estanques e, tanto quanto possível, deveriam ser mantidas assim, sem andarem de um lado para o outro. Parece-me universal considerarmos a verdade um bem supremo, o respeito por nós e pelos outros também. Parece-me bastante razoável não passarmos tempo com quem não gostamos. Acho até um desperdício, tendo em conta o tempo que passamos com quem gostamos mesmo, que é sempre pouco. Porque é que no pacote da vida têm de ser vir estes presentes envenenados?
O Miguel Esteves Cardoso tinha um texto maravilhoso (agora já não me lembro do nome) que falava do absurdo de perdermos tempo a discutir com o homem do autocarro em vez de estarmos com quem realmente gostamos. Depois chegamos perto de quem gostamos absolutamente frustrados porque discutimos com o homem do autocarro. E isso é que é a vida. Lembro-me bem de, quando a minha mãe morreu, o meu pai ter dito que a vida era extremamente estúpida: afinal, tínhamos passado horas em bichas até Lisboa a discutirmos uns com os outros quando tudo se resumia àquilo que é mais óbvio: nascemos para morrer e ponto final. Devemos considerar isso não uma ameaça, mas uma evidência coerente. Quem vê pessoas a morrer todos os dias sabe isso muito melhor do que as outras pessoas, embora possa passar à indiferença com alguma facilidade.
Será que damos como normal as características humanas, todas elas, ou só seleccionamos as que nos interessam mais? No fundo, é tão normal gostar como odiar, mas reprimimos a segunda e repreendemo-nos amargamente por sentirmos a miséria humana dentro de nós a florescer. Reprimo-me muitas vezes por não conseguir ser uma pessoa positiva. Mas não me reprimo por ser justa, recta, sensitiva e intuitiva, e talvez por isso experienciar muito antes da alegria o horror à miséria humana. Talvez porque veja muito primeiro aquilo que é mau e não tenha dó nem piedade a julgá-lo.
Parece-me, como Arno Gruen diz, que aquilo que apelidamos como «normal» não passa de um disfarce mixuruca que temos, daquilo pelo qual queremos fazer-nos passar. Conquistamos muitas pessoas deste modo sem sequer nos apercebermos (ou sim, apercebemo-nos bem) de que estamos a ser desonestos até com nós próprios. Como será o despertar deste longo sono? Haverá esse despertar? Para alguns de nós sim, há redenção, mas lamentavelmente para outros não. Deus que se encarregue disso, se houver Deus. Se não houver, como eu acho, estamos um bocado perdidos.
Muitos aspectos originam a nossa noção de «normalidade»: educação, experiência de vida, profissão e, acima de tudo, carácter. Sou daqueles sonhadores que acha que, para alguém de carácter, tudo pode ser adquirido pela experiência de vida e de convívio com os outros, de preferência pessoas diferentes de nós, para percebermos como balizar o mundo. Muitas vezes acho que toda a gente percebe o que é a diferença. Mas não é verdade. Estou a ser preconceituosa quando julgo o mundo assim. A diferença tem muito que se lhe diga. Há muitas gente aparentemente «normal» que não é, e vice-versa. Ninguém pode ser julgado pela aparência de normalidade…nem tudo o que brilha é ouro.

Tuesday, February 13, 2007


Os manipuladores – parte II

À medida que o tempo passa, mais me vou surpreendendo com o comportamento humano. Conheço pouco os estudos de psicologia e de psiquiatria, mas há coisas que, vistas à lupa e depois a uma certa distância, fazem todo o sentido. Têm um padrão, uma escala, aquilo «bate certo» ou «encaixa», como por vezes dizemos. Lidei toda a vida com manipuladores da pior espécie: os chantagistas emocionais. A minha avó chorava baba e ranho se eu não comesse o lanche quando ela achava que eu tinha fome, era mesmo capaz de fingir um ataque cardíaco. Acho que, na minha vida e até bem mais à frente, todos os meus dias foram uma grande desgraça.
Cheguei a uma certa idade em que desisti de muitas coisas, mas, por motivos que desconheço, não desisti nunca de combater as pessoas manipulativas. Mas devia. Devia, em primeiro lugar, porque lutar contra elas é lutar contra todas as pessoas que não percebem que estão a ser manipuladas, e ao fim ao cabo é dar pontos ao manipulador, que logo se fará de vítima e se queixará que não merecia aquilo, que a louca sou eu. Na realidade, sempre que os ambientes são de manipulação, eu afasto-me, caso possa, mas raramente consigo fingir que não vejo ou que não quero ver, porque me é duro, na pele, o processo manipulativo contra o qual combati toda a vida, às vezes com muito insucesso e mesmo depressão. Sempre que eu tinha qualquer boa nota pedia por favor à minha avó que fosse eu a contar aos meus pais. Mas raramente consegui esse intento, ou porque ela lhes ligava a dizer, ou porque ligava e queria que eu dissesse o que ela queria, ou porque simplesmente estava com eles e lhes dizia. Isto tudo apesar de me jurar a pés juntos que não o iria fazer. Depois, dizia o que sempre disse toda a vida «fiz para teu bem» ou «não foi por mal». Para além de criar distância, esta atitude criou em mim um certo ódio ao manipulador, e sempre que vejo um projecto nele todo o sofrimento que me acompanhou a vida inteira: porque é que eu nunca consigo ser eu ao pé de um manipulador? Porque não posso. Se fosse eu mesma, era esmagada, e digo-o por experiência, porque isso já me aconteceu inúmeras vezes.
Depois é terrível viver num ambiente que ignora o manipulador, o desculpa, ou simplesmente se submete a atitudes de verdadeira chantagem, verdadeiramente impositivas e moldadoras do nosso comportamento. Certamente que no trabalho é importante estarmos atentos a isto, porque senão há muita coisa em causa e, muitas vezes, em vez da nossa competência ser valorizada, é o manipulador que ganha trunfos e disfarça a sua incompetência. Aliás, essa é a maior manobra de todos os tempos: um manipulador faz dos seus defeitos trunfos e das suas qualidades verdadeiros diamantes. Verdade seja dita: quantos destes seres são verdadeiramente brilhantes? Quase nenhum, escassos serão os casos de brilhantismo em pessoas destas. Para além disso, de onde vem esse brilho, senão de um carisma largamente trabalhado e, acima de tudo, de se encostarem aos outros, à sua fragilidade, ou mesmo falta de auto-estima?
Eu acho que a maior parte das pessoas se está completamente a cagar para manipuladores, por um lado porque não os vêem, por outro porque nem os querem ver. Qual é a vantagem de sermos presenteados com visão raios-x em relação a estas pessoas? Protegermo-nos quanto antes, talvez. Mas mais que isso, não. Não vale a pena tentar proteger quem não vê nem nunca verá o mal deste tipo de comportamento.
Outra coisa que aprendi à minha custa é que um manipulador sabe muito bem o que faz e aplica a manipulação a tudo. Haverá com certeza poucos casos de manipuladores no trabalho que não o sejam em casa, com o marido, mulher e com os filhos. Há certos manipuladores que são chapa 4: aquilo que estão a fazer à nossa frente, fazem em todo o lado, e só uma pequena maioria de pessoas vai descobrir isso. Nunca percebi como é que este tipo de pessoas tem vida emocional, mas, e em seu próprio benefício, há-de com certeza importar-se pouco com a vida emocional dos outros. Creio que seria um empecilho na vida de qualquer manipulador sentir algum tipo de compaixão pelas vítimas. No fundo, o processo é contrário: eles começam logo por se fazer de vítimas, de pessoas sensíveis em todos os campos, cheias de bondade. Por vezes provam e dão demonstrações (aparentemente) claras disso. Na verdade, sempre achei que um manipulador não quer saber quem é a outra pessoa no verdadeiro sentido da palavra, nem de que tratam os sentimentos dessa pessoa. Esse conhecimento impediria o seu trabalho de fundo. E este é o meu grande problema com os manipuladores, porque, para além de eu (tentar) não fazer isso às outras pessoas, procuro que ninguém faça de mim o que lhe apetece. Afinal, porque carga de água deveríamos ser joguetes nas mãos das outras pessoas?
Sempre achei que tinha na vida uma postura sincera, discreta, muito sossegada. Mas a minha vida é exactamente o contrário disto. Pareço estar sempre em alerta, a defender o meu território e, em última instância, a ter de lutar contra tudo e todos. Uma postura mais budista far-me-ia bem. Do género «emana paz e a paz virá a ti», mas por razões que desconheço nunca me acontece isso (talvez não faça as coisas como deveria fazer). Mesmo quando estou mais calma, armo-me para a guerra. Sinto que quando baixo a guarda sou imediatamente ferida. E acho que sempre foi assim, porque sempre vivi com manipuladores. Um manipulador leva-nos aonde ele quer ir, como ele quer, mesmo que isso nada tenha que ver com aquilo que somos, enquanto pessoas. Digamos que fazemos um desvio razoavelmente grande, uma inflexão do caminho do eu. Isso dá-se por variadas razões: falta de experiência e de referências exteriores (e interiores), falta de metas próprias, falta de auto-estima e até doença. Tudo o que somos é sugado pelo manipulador, mas, acima de tudo, é sugado o que não somos e queremos ser. Pelas leis da psicologia, isto só deveria acontecer durante a adolescência, quando nos «vendemos» a um grupo de tipos e tipas que nada têm que ver connosco só pela imagem que transmitimos. Lá andamos de betos para punks e de punks para metálicos e de metálicos para freaks. Gostamos de ser apelidados de «esquisitos». É bom, é rebelde, é fixe. Conquistamos mais garinas ou mais gajos nos caem aos pés. Na faculdade isto ainda cola, mas passado algum tempo descobrimos uma coisa: é altura de sermos nós próprios. Se esta altura nunca chegar, aos trinta anos estamos a comportarmo-nos como garotos.
Um manipulador aproveita-se muito da insegurança das pessoas e faz dela o mote principal da sua vida: «é agora que eu entro», tal como o lobo que sopra as casas fracas dos porquinhos mais parvos, que as construíram de palha para se despacharem mais cedo e irem dançar no mato. As pessoas são muito assim em relação a si próprias: constroem em si mesmas uma casa de palha que se assemelha a uma casa de verdade mas que, ao primeiro sopro, voa. Com a primeira aproximação do lobo, iludimo-nos que temos uma casa segura, todavia, não é. Uma casa ou está sobre estacas duras ou vai ruir ao primeiro abalo. Os manipuladores sabem isto, e por isso mesmo muitos deles são os nossos pais, avós, irmãos, porque desde pequenos nos criam a imagem, absolutamente falsa, que ou somos como eles ou não valemos nada. E nós optamos, regra geral, por uma casa segura, por isso preferimos ser como eles a não valer nada. Eu preferi «não valer nada» durante uns tempos e construir a minha própria casa, o que me parece o normal, mas que sempre é apelidado pelos outros de rebeldia, mau feitio. Como diria a minha avó «tu até és boazinha, tens é nervos». Que é como quem diz «lá no fundo és igual a mim, não tens opção». Retirarem-nos opções é uma forma de manipulação tremenda, até porque se formos novos não damos por ela. Surpreendemo-nos por chegarmos a uma idade a pensar «e agora? Quem sou eu?».
Retiraram-nos a opção de sequer pensarmos sobre nós. Toda a vida ouvi «tens mau feitio», isso é o mesmo que me dizerem «a culpa é todo tua de te relacionares mal com os outros». E isso será verdade? Se olharmos bem para os outros, quem são eles? Têm defeitos como nós, certamente também serão irritados, uma vez ou outra, pelas nossas atitudes. Parece-me que há uma certa igualdade de circunstâncias entre nós e o mundo dos outros. Porque é que «nós» somos os culpados e os outros não? Parece-me tão infundado terem-me dito isso, como se eu fosse obrigada a moldar-me aos outros, mas os outros não tivessem de fazer esforço em direcção a mim. E sabem que mais? Infelizmente embato nos outros por isto mesmo: por não ser como eles, nem agir como eles, nem ceder ao mesmo que eles. É a vida.

Friday, February 09, 2007

A favor do aborto

Já ninguém vai ler este texto politicamente incorrecto a tempo, porque se vota a lei da despenalização do aborto no Domingo, mas parece-me que este texto é só a minha opinião, e nada altera. A minha opinião é radical, não ando com falinhas mansas a dizer que «defendo a vida», porque o mundo está cheio de idiotas e de vidas completamente inúteis. Evidentemente que os budistas e os católicos não são nada a favor desta ideia, e acham que a vida pela vida é o melhor argumento do não ao aborto. E está certo, não o argumento em si, com o qual não concordo, mas que este seja o único argumento capaz e plausível do não, dado que a sobrevivência e a vida em si é um dos objectivos humanos.
E os outros argumentos? Simplesmente não são argumentos, são opiniões destrutivas e tolas. Desfolho todos os panfletos do não e descubro que os principais argumentos deles são os seguintes:

1) Abortar aumenta o desemprego dos professores e educadores de infância. Ó meus amigos, desde quando esta estúpida informação é um argumento? Por acaso o sim diz nos panfletos «abortar aumenta o emprego dos médicos, enfermeiros, educadores e professores»? E para o desemprego vai a grande maioria das pessoas, isso ou trabalhar a recibos verdes, que no fundo vai dar ao mesmo;
2) Abortar permite a legalização de clínicas de aborto com os nossos impostos. A sério? Quero já abrir uma clínica dessas e fazer fortunas. Ah grande argumento! Quero ficar rica à pala de úteros rotos de tanto aborto. Os nossos impostos financiam toda a merda, meus amigos, quer concordemos quer não. Conheço tanta gente a favor da pena de morte que é obrigada a pagar impostos para sustentar os presos. Portanto, já fazemos muitos descontos que consideramos inúteis em todo o seu esplendor. Já agora…há muito dinheiro que nunca vimos aplicado, não? Por exemplo, eu paguei sempre propinas e só agora, passados dez anos, fizeram casas-de-banho novas na faculdade de letras. Acaso querem que vá lá mijar de propósito a fim de beneficiar das novas casas-de-banho, pagas também à custa do esforço dos meus pais e dos meus colegas trabalhadores-estudantes?
3) Despenalizar o aborto é permitir o aborto e concordar com ele. Sim e não ao mesmo tempo. De facto, se se legaliza, é porque se concorda. Mas reparem que a legalização do uso de armas em alguns estados dos EUA não é a legalização da morte, mesmo que o Michael Moore diga que sim. É suposto que uma arma seja usada, única e exclusivamente, por quem tem juízo e em legítima defesa. Está mal dar armas a energúmenos. Talvez o que esteja mal é o aborto estar nas mãos de energúmenos sem escrúpulos. Todavia, também me parece que muita gente escapa àquilo que sabe dentro de si mesmo: que, bem lá no fundo, e apesar de estar em causa uma vida, é a favor do aborto. «Aquilo» é também uma parte da mãe, e a mãe em si.
4) A discussão, eterna e indecisa, se é vida ou não. É coisa que nem me dou ao trabalho de fazer. Uma célula também é vida. Até um parasita é vida e apetece esmagá-lo com um sapato ou um antibiótico potente. Um piolho é vida e dá à luz milhares de lêndias, que saltam das cabeças de uns meninos para outros nos infantários. Um piolho é um parasita tão legítimo quanto um feto. Todavia, matamo-lo, excepto se formos hippies e usarmos rastas. Posto isto, discutir as dez ou as doze semanas é-me indiferente. Feto é feto.
5) A culpa, o ressentimento. É o pior e o mais esmagador argumento do não. Dizer a uma mulher «vais-te sentir culpada» soa-me a uma mariquice maldosa. É o mesmo que apedrejá-la e gritar «Puta!». Acham mesmo que a mulher precisa? Gostamos tanto de viver na Idade Média…É uma argumento falacioso e, permitam-me o atrevimento, católico. É como dizer «vais arder no Inferno». Para além disso, a Igreja que não seja tolinha, porque discorda muitos dos anticoncepcionais, que o sim e os partidos de esquerda defendem que devem ser gratuitos. Parece que o preservativo, como dizia o Papa João Paulo II, «impede o livre curso da vontade de Deus». Já agora, impede a propagação do vírus da Sida (que mata!), de inúmeras doenças infecto contagiosas, de uma gravidez indesejada. A culpa e o ressentimento são sentimentos comuns em qualquer pessoa que tenha uma característica humana chamada consciência. Qualquer pessoa que a tenha sente, nem que seja uma vez na vida, culpa e ressentimento. Não é preciso fazer um aborto para se sentir isso, mas é humano que, depois de um aborto, uma mulher se sinta deprimida, fragilizada. A Igreja e a direita toda estão a dizer à mulher que «isso» é o que a vai acompanhar ad aeternum. Parece-me um discurso cabalmente errado, para quem tanto apela ao perdão e à solidariedade e compreensão do outro.
6) A família. O não diz que é importante a promoção da família, sobretudo se for numerosa (já que cria postos de emprego, também…). Digo-vos: uma família é uma coisa difícil. Não interessa se temos um filho, dois, três ou nenhum. Não se deve brincar com coisas sérias. Desde quando famílias numerosas são mais saudáveis do que as outras? Já viram uma mãe com quatro filhos num supermercado? É toda a gente a rezar para ela e os rebentos desaparecerem rapidamente. Às vezes um filho é tão mal tratado e educado, quanto mais três ou quatro. Mas o não distribui panfletos com famílias sorridentes, betos cuja mãe é tia, tão tia que abortou em Espanha porque em Cascais só há clínicas de rejuvenescimento. Já agora…o que é uma família? Alguém me sabe responder? Não me digam que é pai, mãe, filhos, avós. Todos sabemos que é muito mais do que isso, tem de haver laços fortes entre as pessoas, respeito mútuo, valores e princípios de base. Será que o aborto tem alguma coisa a ver com isso? Ao contrário do que a Igreja pensa, não. Fazer abortos não despromove a família, assim como não fazê-los não promove laços entre ninguém. Uma família pequena ou grande pode ser funcional ou disfuncional indiferenciadamente.
7) Legalizar o aborto dá origem a abortos em série. Não dá. Nenhuma mulher é tão tosca, a menos que tenha um problema mental grave e sério, que queira fazer abortos em vez de tomar a pílula ou usar o preservativo. Quem gosta de ir ao ginecologista? É dos médicos mais chatos, os exames são todos incómodos. E agora as mulheres passavam todas a fazer um aborto como quem bebe um copo de água? O aborto é um processo cirúrgico fácil para um médico, isso eu sei. Mas para a mulher é uma panóplia triste de instrumentos intra-uterinos, sem contar com o pós aborto, a recuperação, o vazio interior. Será que gostamos mesmo tanto disto que queremos legalizar, ou será que temos de legalizar para evitar que aconteça mais abortos daqueles pouco simpáticos que destroem o sistema reprodutor? Porque será que acham logo que uma mulher, por fazer um aborto, quer dar cabo do seu aparelho reprodutor e não quer ser mãe? Acho que não há mentira pior do que esta…
8) A infertilidade e a lista de adopção. É um argumento invejoso, raivoso, ainda mais baixo do que os outros todos. Ou seja, uma mulher que aborte é criminosa porque devia ter pensado nos «outros» que não podem ter filhos? Portanto, não fazendo abortos engrossamos a lista de adopção e damos os filhos aos outros. Isso não é nada traumatizante, não. Deve ser bem fácil dar filhos para adopção só porque «abortar é errado e há casais que não podem ter filhos». Vou ser sincera. Estou do lado da parte mais fraca: a mulher que aborta, nunca do lado dos casais que querem adoptar ou fazem tratamentos de fertilidade in vitro. Sabem quanto custa isso? Muito mais do que um aborto. Mesmo sem saber como vai ser a minha vida no futuro, não vou concentrá-la em pensar que tenho de ter filhos e que as mulheres que abortam são criminosas porque não pactuam com a minha ideia de «família ideal». Volto à carga: o que é a família ideal?
9) A sociedade. Um dos argumentos do não (e passo a citar) é que a sociedade dá às mães o direito de abortar mas por outro lado multa quem transporta crianças sem cadeirinha. Mas será que esta gente leu verdadeiramente qual é o perigo de se transportar uma criança sem cadeirinha, com a quantidade de acidentes rodoviários que há neste país? Penso que é irresponsável um argumento destes, que no fundo diz que abortar é mais errado ou grave do que não colocar cadeirinhas no banco de trás do automóvel. Volto à carga: vale mais não ter um filho ou ter um filho que não se quer e dizer coisas destas? Sim, porque afirmações destas vêm de pessoas que não devem gostar de crianças, só pode… Tudo isto parte também de uma aspecto importante que muita gente tem focado: a sociedade deve mesmo opinar sobre tudo o que as pessoas fazem? A Igreja eu sei que opina, mas a sociedade devia ter em consideração que está a legislar acerca das barrigas das mães, de uma vida que está dentro de outra vida, e acerca do livre arbítrio do outro. Na realidade, a legislação devia ser acerca da permissão ou não de fazer abortos nos hospitais e clínicas, e nunca se a mulher deve ou não ser punida por um aborto. O suicídio também é grave e ninguém pune, nem legisla, nem prende suicidas. Afinal, o que é que está em causa? Segundo o não é a vida e o direito à vida, segundo o sim é a vida e os direitos da mulher. É mais específico o segundo, e tem em conta um argumento que me é muito caro «na minha vida mando eu, na minha barriga mando eu também». A Igreja opina sobre tudo, disso eu já estava à espera, tendo em conta a quantidade de velhas que já não está em idade fértil mas gosta de mandar umas bocas ao pessoal jovem. Mas a sociedade opinar sobre tudo chateia-me muito mais.
10) A paternidade. Diz o não que o pai é obrigado a assumir a paternidade mas não pode defender a vida dos filhos. Mentira completa. «Paternidade» significa tudo isto. Se se assume, assume-se tudo: fazer um aborto, ter um filho, amar um filho, educá-lo, criá-lo, tudo faz parte da paternidade. Se não se assume (ou nem se chega a saber que se poderia ter sido pai, em caso de gravidez e aborto inconfessos) então a noção de paternidade é somente social, é somente «porque sim». Que direito tem um homem que não assume coisa nenhuma de decidir o que a mulher faz ou não?
11) Deus. Para mim que sou ateia, nem quero saber deste argumento. Para já, porque Deus, se realmente existir, anda muito ocupado com coisas de préstimo, como crucificar o próprio filho e uns anitos mais tarde pô-lo a falar com a Alexandra Solnado acerca da densidade espiritual e da ascensão. Amigos: Deus é um gajo safadíssimo, leiam o Velho Testamento. Aquele velho sacana está imenso tempo a fazer um homem à sua semelhança, que depois O trai por causa de uma gaja toda boa que anda por ali a fazer-se a uma serpente. Deus pune homens bons no Velho Testamento por dá cá aquela palha (o Job passa por tudo, o Abraão tem quase de imolar o filho, mas Deus lá lhe diz à última da hora «aceito antes uma ovelha, não quero o teu filho, e em vez de Abrão chamo-te Abraão», deve ser para não rimar com «cabrão»; até o Noé fica fechado numa arca cheia de animais, devia ser um fedor desgraçado ali metido à parva com veados e leões; o Moisés apanha com os mandamentos na testa e aprende a dividir águas, o que me parece completamente inútil: porque é que o gajo não aprendeu a desbacterizar a água? Assim limpava a água da praia de Carcavelos e o pessoal podia lá tomar banho sem apanhar hepatites e conjuntivites). Chama putas às mulheres, e pune-as duramente com dores no parto e dores menstruais mensais (para que se lembrem do pecado primordial, está escrito na Bíblia). E os católicos confiam num gajo assim?

Às vezes Deus toma a sua forma obesa e chamam-lhe Buda. Outras vezes assume a sua forma monhé e chamam-lhe Alá. Acham-nos menos cruéis? Eu não. Alá nem tem explicação possível. Faz da mulher um caixote do lixo portátil sem tampa, para poder ser fodida e apedrejada sempre que um homem quiser. E Buda, para além de ter um problema metabólico, porque está sempre em meditação e engorda até com o vento, diz que uma mulher não pode abortar para «não interromper as reencarnações». Quer dizer, um gajo não sabe o que fez na vida anterior, só tem recordações tipo flashes de um filme do David Lynch, anda com o karma às costas (embora a Alexandra Solnado diga que se pode «limpar» o karma, não há produtos à venda), e nesta puta desta vida madrasta ainda tem de se preocupar com a próxima reencarnação? Tenham paciência…Os budistas dizem que a mulher, ao abortar, interrompe a cadeia natural da vida. E?...Onde é que um feto abortado fica? Para os católicos, no limbo, que agora já nem existe. Portanto, o feto deve ter uma sala de espera qualquer (a mãe arde no Inferno, juntamente com os comunistas, esquerdistas e pessoas como eu). Para os budistas, o feto não reencarna e a mãe acumula karma para a próxima vida, na qual nascerá infértil para castigo.
E quando um aborto falha ou a mãe se arrepende à última da hora? Dizem os defensores do não, que muito aborto falhado é feliz. Eu também acho. Estão todos no governo, em cargos de poder, no futebol, ou a falar com Jesus. Pobres mães, cujas barrigas são legisladas com base em argumentos torpes que tanto as acusam como criminosas. Pobres fetos, ninguém tem respeito por eles, vivem em famílias transtornadas (sim, há muita gente sem jeitinho para ser pai ou mãe) ou ficam à espera de uma outra reencarnação mais levezinha. Pobre sociedade, que ainda pensa a mulher como um objecto, um receptáculo, uma mala de viagem, como dizia o Fernando Pessoa acerca da Virgem Maria.
Gosto também daqueles panfletos inteligentes do não que descrevem mães desesperadas porque fizeram abortos, e em consequência desse acto hediondo tentam-se matar ou matar os próprios filhos. Portanto, o aborto é mau porque é um atentado contra a vida, por isso a mulher…vai praticar mais atentados contra a vida? Que raio de cadeia de forças maléficas é esta? Bruxaria? Nunca ouvi falar de mulheres que, depois de terem abortado, fossem espancar os próprios filhos com raiva. Mas enquanto professora conheci muitas mães que não queriam ser mães: e lá estavam os atrasadinhos dos filhos, quais objectos mal amanhados, disléxicos, hiperactivos, indesejados, receptáculos de frustrações emocionais maternas. Dantes isto resolvia-se à estalada e palmada, agora resolve-se comprando doces e brinquedos, mais tarde telemóveis. É a sociedade que nós temos, consequência do caos, do vazio emocional, da desestruturação interior e exterior. Se deixarmos o bom senso à nossa consciência, a coisa até pode correr bem. Se deixarmos a decisão nas mãos de uma sociedade ainda sustentada em princípios medievos e inquisitorais (ou seja, católicos e monárquicos) ficamos entregues à culpa, à punição, ao ressentimento, à dor. Uma coisa todos nós sabemos, não queremos é admitir: nascemos para ser livres e procurar a felicidade. Se permitirmos que «nos» legislem sempre, em tudo, de todas as formas, sobra o quê de nós mesmos? Agora querem legislar a consciência de uma mulher acerca da maternidade, um dos aspectos mais antigos do mundo? A minha opinião é sempre a mesma: deixar as mulheres que querem serem mães e as que não querem ser que não sejam. Não é prudente termos mães contrariadas, era o mesmo que fazer como antigamente, obrigar as senhoras a irem para um convento e os homens para um mosteiro. Isso originava dislates tremendos, desvarios sexuais, práticas abusivas de crianças.
O que originará termos mães que não querem ser mães? Depois vem muita gente dizer-me que uma mãe sabe sempre ser mãe, que tem isso lá dentro, blá, blá. Não acho. Uma pessoa que é contrariada vai-se rebelar mais tarde ou mais cedo, ou simplesmente ficar no seu canto infeliz, projectando raiva e infelicidade num filho. Acham que isso não acontece? Comecem a frequentar supermercados e transportes à hora de ponta. Concordam logo com a despenalização do aborto, garanto-vos.

Wednesday, February 07, 2007


O obstáculo

É um bocado chato, em algumas coisas, termo-nos de basear a nossa opinião sobre nós nos outros. Mas às vezes, se estivermos confusos e perdidos, é bom que o façamos, desde que tenhamos os ouvidos abertos, única e exclusivamente, para quem deve ser. Um dia, um psiquiatra disse-me «é óbvio que você é uma pessoa inteligente». Eu não achava nada, mas mesmo nada, óbvio que assim fosse. Hoje percebo que o doutor tinha razão: eu sou inteligente. Não sou, provavelmente, uma pessoa brilhante, com notas excelentes, uma intelectual de estirpe. Digamos que isso consigo com treino, muito trabalho e experiência. Mas há o resto, que muito me anima e desanima: sou inteligente porque percebo, entendo, intuo, aprendo com a experiência, e mais tarde uso isso.
Infelizmente, não se aprende uma lição tal como queremos, muitas vezes aprendemos como a vida entende, por isso chocamos com o mesmo tipo de obstáculo em série. O meu obstáculo maior é o comportamento das pessoas comigo. Como todas as pessoas, sinto empatia, simpatia e antipatia, até com alguma facilidade, e poucas vezes sinto indiferença, mas às vezes sim (principalmente nos jantares, quando está tudo bêbado). Mas aquilo que menos gosto de sentir, para além da antipatia, que é sempre agressiva, quer se queira quer não, é que se estão a aproveitar de mim e a tirar vantagem da minha existência humana, corpórea, espiritual. As únicas pessoas que podem fazer esse aproveitamento sem moléstia (e mesmo assim sempre fui respingona) são os pais. Os pais, mesmo que digam que não, estão sempre à espera de retorno, de reconhecimento, de vantagem. Não que devessem estar, porque um ser humano é irrepetível, e o nosso filho pode ser artista de circo ou pertencer à tertúlia cor-de-rosa das manhãs da sic, que é sempre nosso filho (este último caso dá direito a tirá-lo da herança, não venham cá com merdas). O meu pai sustentou-me para além daquilo que é considerado razoável, mas acho que teve o retorno que merecia, porque eu fiz sempre o que disse, fui firme, decidida e cumpri com a minha palavra, sem todavia desrespeitar o meu coração e a minha vontade. Não é de mestre, amigos, esta é a obrigação que um filho tem para com um pai.
Sermos pessoas resolvidas implica uma maturidade muito para além do dinheiro que se ganha. É preciso viver e ganhar referências também fora de casa, que nos permitam perceber quem somos, por que somos, em quem confiamos, o que queremos. Parece fácil…mas não é. E temos de estar em alerta para uma coisa: chocar com as pessoas para as quais nada disto é importante, e cuja vida se baseia na evolução material, superficial, daquelas que gostam de chegar ao fim da vida e dizer que se esforçaram muito, quando na realidade fizeram tudo na sombra e nas costas dos outros.
Temos de confiar numa coisa importante: se somos bons numa coisa, alguém um dia se irá aperceber, mas se somos maus, também. É bom que se entenda que um dia vamos estar expostos, e que à transparência veremos quem é honesto.
Eu já aqui disse que choco com as minhas antíteses. É verdade. Mas na realidade choco também de lado com outro tipo de pessoas que, sem ser por mal, gostam muito de tentar resolver a vida aos outros: as pessoas dependentes. Nunca gostei disso. Sempre achei terrível copiar, e mesmo trabalhar em grupo é coisa que nunca gostei, porque bate-se sempre na mesma tecla: quem fez o quê? Quem se aproveitou de quem? Detesto trabalhar em grupo e acho sempre que, sozinha, sou muito mais livre e aprendo mais. Sempre gostei de ter aulas e de ter turmas engraçadas. Até da turma de pilates gosto. Temos exercícios sincronizados. Mas é tudo. Quem quiser trabalho de grupo que vá para a tropa. Eu não gosto. Mais tarde ou mais cedo, os professores vêm a saber, sobretudo pelos testes, quem é quem. Na vida talvez aconteça o mesmo. De qualquer forma, sombras nunca foi comigo e detesto quem se comporta assim.
Há diferentes tipos de parasitas. Uns são inequívocos: ali estão eles à espera da bosta de alguém para se aproveitarem. Ouros são a própria bosta: lá andam eles no sapato, qual cagalhão incómodo, e nem o cheiro sai. Finalmente há os dissimulados, porque à nossa pala fingem ser trabalhadores, honestos, dedicados. E depois há os ingénuos, indiferenciados, que dá um bocado de pena, porque se acham vítimas de uma sociedade cruel porque não têm ninguém em quem se encostar, mas estão à espera que lhes telefonem. São os descompensados emocionais cujos amigos só servem para as ajudas e nada mais.
Ao longo da vida sempre detestei qualquer deste tipo de pessoas. Muitas poucas terão apanhado balanço comigo para chegarem a algum sítio. Tive uma colega, há já muitos anos, completamente medíocre, que se encostava a mim por causa das notas. Eu não lhe ligava nenhuma nem tinha nada a ver com ela. Lá vinha ela, todas as manhãs, encostar-se a mim, cumprimentar-me, sem assunto para falar sem ser «como consegues essas notas?». Em primeiro lugar eu sentia-me a freak ali da zona quando ela fazia isso, em segundo achava que, mesmo para ela, era tempo mal gasto. Quem me dera a mim ter hoje essa crueza de espírito, porque um dia disse-lhe mesmo que ela andava a perder comigo, porque em vez de andar atrás de mim poderia estar a arranjar um método de estudo aplicado às suas capacidades (quais seriam?) e assim tentar conseguir notas melhores. Ela corou e disse-me que a mãe era pedagoga (mais tarde vim a descobrir que era administrativa numa escola) e lhe tinha dito para ela fazer aquilo. Largou-me logo da mão. É o mesmo que dizer a um tipo «larga o ossito, não há nada para ti».
Não percebo porque é que, com esta provecta idade de quase trinta anos, ainda me dou ao trabalho de ser simpática. É que não devia, porque com o tempo a trampa aumenta, as moscas e minhocas que vivem à custa dos outros também aumentam, e por vezes somos traídos por estas pessoas aparentemente sãs de cabeça, mas manipuladoras e filhas da puta. E tudo isto acontece com frequência e à velocidade luz.
Digamos que estou numa fase da minha vida em que arranjo balanço para enfrentar este tipo de gente, que afinal me rodeia há muitos e bons anos. Quando era adolescente tinha um espírito rebelde e podia opor-me a toda a gente que mal me doía. Não sei porquê, mas ao longo da vida tenho flexibilizado muito e tenho-me tornado numa pessoa diferente, sobretudo se estão pessoas de quem eu gosto muito em causa, permitindo abusos que dantes não permitia e nos quais cortava a direito sem tirar nem pôr. Por isso, vou começando a perceber que é assim que tem de ser novamente, ou sou a palermóide cá do pedaço.
É evidente que aproveitamentos baratuchos não são para todos, e alguns não têm a mínima necessidade de virem comer no meu prato (há pratos melhores e ainda bem!), e outros simplesmente não deixo que venham, porque por vezes temos de ter vedantes especiais em redor da nossa vida, absolutamente à prova de idiotas.

P.S. – A Patrícia França é uma rapariga brilhante e não se aproveita de mim. Pronto. Era só para saberem, porque se eu não digo isto com convicção ela fica triste.

Thursday, February 01, 2007

O ridículo

Se nos debruçarmos bem nas relações que temos com os outros, chegamos a uma brilhante conclusão, que me parece a mais acertada: somos ridículos. Nenhuma relação que possamos estabelecer com o mundo dito exterior se pode pautar só pela seriedade e expectativas altas. Como diz a Lisa há um dia em que as expectativas caem mesmo ao chão e desistimos de pensar, pelo menos em relação a muitas pessoas, que vale a pena alguma coisa. O melhor é não ligar, é responder mal e ficar mal visto. Mais vale isso do que ser palerma. O que podemos ganhar com pessoas que nos façam sentir mal? Nada. Só elas é que ganham. Também não sei bem o quê, mas provavelmente, segundo os psicanalistas, trata-se de um jogo de poder. As pessoas querem engordar à conta de humilharem os outros, disfarçando assim o vazio que lhes vai na alma (poder-se-á chamar alma?). É um processo triste, mas visto de fora, bem visto, é ridículo.
Aqui na biblioteca não há dia em que não veja o director a gritar com os empregados, regra geral empregadas. Detesto ver isso. Mas a figura dele, assim vista de fora, não é poderosa, é simplesmente estúpida, absurda, ridícula. Vejo o senhor e estou a observar o palhaço pobre, que grita, é parvo, desajeitado, que os meninos pontapeiam e atiram água, cujos cães vadios do circo mordem as canelas. Ao fim e ao cabo, um arrogante é um idiota chapado. Nem sempre merece a nossa resposta. Merece desprezo, distância. Porque à distância, garanto-vos que tem graça, que dá para rir, se pensarmos que há pessoas que se acham heroínas por tudo e por nada. Acham que isso irrita? Então oiçam esta história, que já aqui contei. Uma colega minha da faculdade, em tempos idos, burra que nem um calhau, levava a vida a auto-elogiar-se porque, imagem!, tinha uma mãe que tudo lhe fazia, até aquecer a cama para ela dormir confortável. Agora pensem lá: num mundo dito «normal», isto não acontece, mas para ela era sinónimo de privilégio, tal e qual o Dali, que se mijava pelas pernas abaixo até aos onze anos, por «puro desporto e prazer». Vista de fora, ela era o bobo da corte. Chorávamos a rir. Até gozávamos dizendo que a mãe lhe devia aquecer o noivo. Na realidade, dá pena que existam pessoas que achem isto uma coisa razoável. Se a mãe morre, hipótese que a minha colega nunca deverá ter colocado na sua vida, que se passará com ela? Que se passará quando se aperceber, bem tarde, que o mundo perfeito dela ruiu, que a mãe não está ali, agora, já? Pois com tudo na vida é assim.
Agora oiço certos discursos que muito me irritavam mas que, a esta distância, têm graça. A minha colega de estágio chorava baba e ranho porque o cão tinha ataques epilépticos e não a deixava ter sexo com o marido. Dizia ela que «só tinha problemas na vida». Eu tive a minha mãe muito doente nesse ano e acabou por falecer no final do ano lectivo. Nunca estrebuchei, nem me queixei, nem bati contra as paredes. E à distância, nunca me pareceu tão ridícula a situação. Afinal, quem se deveria queixar? Ela, cujo cão comia tapetes e apanhava patos, ou eu, que tive o ano mais miserável e desgraçado da vida?
É este o problema. Quem nunca bateu de frente com a vida não faz ideia do que é a vida. É melhor ter pena e ouvir os discursos das pessoas de uma forma suave: estamos ali para nos divertirmos à custa do palhaço. Há imensas pessoas que se acham simplesmente divinais, sem terem uma só razão para isso. Acham-se, pronto. Porque fizeram um curso, porque tiveram poucos namorados, porque estão a fazer um mestrado, porque respondem mal aos outros. Têm a barriga cheia de qualquer coisa que nunca percebi, mas algures devem ter tido uns pais ou avós que lhes apararam os golpes, que lhes puseram paninhos quentes na cama (ou deitaram-se nela para aquecer), que lhes descascaram as maçãs e os pêros, que lhes pagaram uma miríade de coisas que, a seu modo, se tornaram simplesmente «fáceis». Já vos disse que este foi também o meu caso. Também a mim me pagaram o curso e descascaram maçãs (não me aqueciam a cama), e porra, não fiquei estúpida. Não me acho uma heroína. Tenho uma vida perfeitamente banal. Não ando aos quatros cantos a apregoar que tenho boas notas, que sou perfeita, trabalhadora ou honesta. Isso é o obrigatório, o normal, o sensato. O contrário é que não. Muitas vezes, nos discursos hiperbólicos apanhamos mentiras desgraçadas e incoerentes. E dá vontade de rir. Ficamos a pensar porque é que algumas pessoas se acham excepcionais sem terem nenhuma capacidade invulgar (conseguem respirar sozinhas e mais nada), e porque é que outras pessoas, perfeitamente brilhantes, como o meu marido ou o meu irmão, ou a Lisa ou o Eduardo são discretas, silenciosas, inteligentes e marcantes na vida de quem se cruza com elas. O Eduardo escreveu dezenas de livros, tem três filhas e vai trabalhar com varicela. Não é arrogante, nem presunçoso, nem palerma, e entende o significado da palavra «trabalho» em todo o seu esplendor. Nos dias em que estou pior, mesmo sem ele dar conta anima-me por uma única razão: é optimista e correcto comigo. Não vejo o Eduardo a vangloriar-se da sua excepcionalidade, do seu esforço incomensurável para chegar onde chegou, da sua tenacidade física e psicológica. Todavia, há pessoas que são a antítese disto e não se calam nem um segundo, como se fossem donas do mundo. Digam-me se não é para rir…
Eu com uma constipação caio à cama, com o período nem me mexo. Não vou dizer ao mundo que sou tenaz e forte, sei que não sou. Há outras qualidades que me iluminam, mas não essa, certamente. Muito raramente me auto-elogio. Acho simplesmente que, na minha relação com a vida e com as pessoas, sou correcta, tanto quanto possível. Mas continuo a achar que esse é o caminho obrigatório. Do mesmo modo, na vida paralela que levo, que é esta do blogue, a dos poemas, a da escrita, a das minhas leituras e interesses pessoais, tudo é contido. Porque é que eu haveria de dizer aos quatro cantos como me auto-defino? Nunca me deu para aí. Se um dia morrer com a gaveta cheia de livros por publicar, os meus amigos certamente os leram e dar-lhe-ão algum uso, nem que seja para equilibrar a mesa da sala. Para quê a ansiedade de sermos? Mais tarde ou mais cedo, por muito discretos que sejamos, somos alguma coisa. Não precisamos de ser heróis. Podemos ser só pais, mães, filhos, tios e tias. É bom na mesma. Porque é que as pessoas mais ridículas são as menos competentes, as menos sábias, as menos seres-humanos prontos a ajudar o próximo, e as pessoas mais discretas são exactamente o contrário? Estou sempre a dizer: a pessoa mais equilibrada, sensata, simpática e educada desta universidade é a senhora da limpeza. Fala-me sempre como se me conhecesse há muitos anos, pergunta-me pela saúde, ri-se de uma forma sincera que meteria inveja a muitos professores universitários. Porque é que toda a gente não é como ela? Ela não é nada ridícula, simplesmente porque é ela própria.
De todas as coisas que aprendi com as pessoas, ao longo desta vida (e se calhar de outras para trás), foi que quem se vangloria muito do que é simplesmente…não é. Algures no seu percurso houve uma falha grande que não colmatou, daí a necessidade do discurso contínuo «eu sou». Um livro budista ajuda muito, porque o primeiro ensinamento é o contrário deste «eu sou». O budismo ensina ao descentramento da personalidade, ao estudo profundo de não sermos senão uma parte ínfima de todas as coisas, e com isso retirarmos importância ao conceito quase mítico do que é sermos alguém, totalmente concentrados no ego. De facto, estamos sempre a tempo de ser alguém, porque podemos inverter caminho, fazer outras coisas, modificarmo-nos. O que somos é mais o percurso do que outra coisa. Não é o ponto onde estamos agora, mas onde tentamos chegar, como tentamos lá chegar, e com quem chegamos. Porque a companhia que temos ao nosso lado também define o percurso que vamos fazer. E isso também é uma escolha. A maturidade é todo este complexo conjunto de escolhas.
Não vale de muito ficarmos em choque com a falta de maturidade que há à nossa volta. Vai sendo comum as pessoas menos competentes se acharem brilhantes, as pessoas só preocupadas consigo mesmas se acharem boas pessoas, as pessoas que contornam o sistema se acharem honestas. Não podemos exigir que todos atinjamos um patamar de lucidez sem termos de dar explicações a outras pessoas. Se virmos bem, a explicação do que somos dada ao mundo é muito ridícula – para quê perder tempo com isso? O que somos, a seu tempo vê-se bem, quando nos caírem as máscaras, quando envelhecermos e perdermos o controle sobre todas as situações que outrora quisemos dominar. O que somos, a seu tempo brilha ou…farta os ouvidos aos outros e ficamos sem ter com quem conversar, talvez porque o assunto tenha sido sempre o mesmo – nós próprios. O que somos vale pelo que somos, não pelo que dizemos que somos. Nem sempre a palavra institui a realidade. Por vezes a palavra institui um âmbito ficcional, uma história qualquer que as pessoas gostam de ouvir. Como diz a Lisa, há uma boa diferença entre sentir afecto ou comprar afecto. Aparentemente ganha quem compra mais afectos, quem finge mais, quem faz a melhor história biográfica sobre si mesmo. Mas no fundo, no fundo, são os mais discretos acerca de si mesmos que têm mais amigos, que amam as pessoas que os rodeiam e que deixam isso transparecer sem medo de serem apanhados. A vida é uma armadilha bem montada para os mentirosos.

O casamento

Dantes a minha mãe dizia-me muitas vezes que as mulheres partiam enganadas para o casamento. Casavam com um homem romântico e saía-lhes um bronco sem maneiras. Casavam com um homem sensível e saía-lhes um atrasado mental racista e machista, qual Archie Bunker. Hoje em dia, uma mulher não se engana. Acho eu. Namora o tempo que quer, sem problemas. É noiva o tempo que quer, sem problemas. E até explora futuros sogros, sem problemas. Com a desagregação dos tempos modernos, entrou-se num caminho bem diferente daquele que a minha mãe me explicava: uma mulher não se engana, engana os outros, se a isso estiver predisposta.
Num circuito fechado como é o da família, tudo pode acontecer. É um microcosmos danado e muito fictício. Afinal, onde está a família e onde estão os estranhos? Afinal, quem entra tem mesmo de ser posse territorial dos outros? Se formos sujeitos a isso, onde raio ficamos nós, enquanto pessoas, enquanto seres humanos? Acredito que muitas mulheres nem se importem em estabelecer limites, porque simplesmente não têm de o fazer. Mas acredito que outras, como eu, têm mesmo de o fazer, sob pena de terem uma vida desgraçada, muito incoerente com os valores que defendem realmente.
Esta coisa de o casamento nos fazer ser da outra família é uma grande merda. Se eu nunca me senti posse de uma, então vou ser posse da outra? Pois não quero. Essa parte contratual casamenteira é bem mais grave do que o marido mudar de personalidade e deixar de ajudar em casa, como tanto preocupava a minha mãe. Caraças, ninguém pede gente excepcional na família, mas pelo menos gente bem intencionada, bem educada, sem falsidades e uma mesquinhez pronta a espalhar a imodéstia e o snobismo. Temos duas situações: esta e a contrária desta. Esta é uma situação comum: entram mesmo pessoas assim na nossa família, afinal não somos nós que as escolhemos. A outra situação verifica-se menos, mas felizmente é ainda exequível: entrarem na família pessoas de quem muito gostamos e que se tornam inseparáveis de nós. Eu tenho estes dois casos, e quanto ao meu próprio caso, infelizmente sou vista como um elemento perturbador. Essa imagem cabe-me como uma luva ou um sapato apertado. Quem pode achar agradável casar-se com a família do marido? Quem gostar e for apreciado por essa família. Parece-me que, se não somos apreciados na nossa postura, a solução, inequivocamente, é criarmos a distância de segurança possível para que o casamento não caia. Somos nós que estamos em causa. Não podemos mudar o que está mal, nem vale a pena tentar, na grande maioria das vezes. E temos de perceber qual é o nosso lugar, ou mesmo perceber quando não há lugar para nós graças aos excessos dos outros. Deverá isso importar-nos? Tem mesmo, infelizmente. Como é que num contexto destes se criam filhos? É impossível. Haverá uma boa dezena de pessoas a apontar-nos falhas, e com toda a certeza os quilos que engordámos, a merda de emprego que temos, a hipocrisia do que somos ou fizemos, etc. Ninguém de bom senso consegue proteger um filho estando completamente desprotegido. E é assim que eu estou. Na minha cabeça, sou infértil. É como se essa parte estivesse anulada, à partida, para o bem e para o mal.
Às vezes, na família, como no trabalho, como com os amigos e noutras situações, não fazemos o que nos convém. Não fazemos o mais fácil. Não fazemos sequer o que esperam que façamos que, regra geral, é ficarmos calados e quietos no nosso cantinho. Às vezes fazemos a maior asneira possível, do ponto de vista dos outros, mas a única asneira que dá préstimo a esta vida: defendermos uma posição que nos pareça justa, correcta, exacta de todos os pontos de vista. E se o coração nos diz, a cabeça nos diz, a alma nos diz, a moral nos diz, então parece-me correcto fazê-lo, mesmo que os outros não percebam, não queiram, não digam, não aceitem.
Vamos à outra parte. Eu até posso achar que uma família fica a ganhar com a minha entrada. O pior é o que essa família acha. Infelizmente, na maior parte dos casos, a família acha que fica a ganhar com uma saída. A minha saída contentaria muita gente. Aparentemente, tudo voltaria ao «normal». Mas será? Nunca percebemos bem onde vivem as pessoas ditas «normais». Afinal quem é normal? Quem defende valores ou quem os mascara com aquilo que não é? Quem usa máscaras sai-se melhor. A aparência encaixa naquilo que as pessoas querem, e isso é que lhes interessa. O fundo não. O fundo é a merda que as pessoas escondem (se tiverem alguma coisa para esconder, que eu francamente já acho que na maioria dos casos não há mesmo nada).
Mais uma coisa: há bichos, como eu, que não estão bem. Mas há bichos que estão bem nas famílias: são acarinhados, engordados, aparentemente simpáticos. Com essa face eles conseguem tudo. São bichos que corroem as famílias por dentro. Tipo minhocas na maçã (se calhar já podre por dentro, antes de o bicho lá entrar). Uma minhoca não entra nunca numa maçã que não lhe interesse corroer. Em primeiro lugar, entra numa maçã já fraca e apodrecida, porque assim não tem de trabalhar muito, em segundo lugar, continua esse belo trabalho até a maçã ter só as pevides pretinhas à mostra. Depois vai embora para outra maçã e retoma tudo de princípio. As famílias gostam deste tipo de bicho. Este bicho não dá nada, mas aparenta. Este bicho não tem nada, mas aparenta. Este bicho não sabe nada, mas aparenta. É só um bicho agressivo com face simpática. Devemos ter um destes em todas as famílias. Porque só depois de ele entrar e estar uns bons anos a viver à conta da nossa casa, é que nós percebemos o que é uma família…Bichos destes em famílias destas fazem-me achar o melhor da minha família. Sempre achei os meus pais mesquinhos, a minha avó manipuladora, o meu avô chato, o meu irmão mauzinho comigo. Sempre achei que a minha família podia ser maior, melhor, todos podiam saber mais, serem mais inteligentes, terem ideias mais abertas, acompanharem o mundo. Mas na verdade foi das maçãs mais perfeitas que eu conheci. Por causa deles é que sou uma pessoa. E não uma minhoca. Em vez de corroer as maçãs dos outros, tento evitar que alguém o faça. Mal sucedida, sou daquelas pessoas que rapidamente volta para o seu poleiro. E fico a ver. É que a minhoca é um bicho que não está bem, e palpita-me que há maçãs que vão um dia perceber isso…