Saturday, August 26, 2006


Elogio aos homens

Vão estranhar este post e achá-lo um pouco incoerente, porque já afirmei inúmeras vezes que sou feminista, que defendo muito as mulheres, que defendo muito a igualdade de direitos. Tudo isso é verdade, mas vou dedicar as minhas palavras aos homens, se calhar porque ando de coração mole, vou-me casar, e por isso, mais do que nunca, tenho de acreditar que os homens valem uma parte generosa da nossa vida.
É verdade que o machismo às vezes magoa o mais fundo de nós. Mas quem são os verdadeiros machistas? Os homens ou as mulheres? As mães falharam, ao longo de muitos anos, a educação dos seus «meninos», relegando as meninas para segundo plano, obrigando-as a fazer a cama e deixar o quarto limpo, enquanto exerciam funções de empregadas de limpeza com os meninos. Foi o que me aconteceu. Socialmente, só me apercebi do machismo mais tarde, embora nunca tenha sentido uma discriminação directa, embora nenhum homem alguma vez me tenha dito «és pior porque és mulher», isso esteve muitas vezes implícito na forma como fui tratada ou entrevistada para um emprego. E sinceramente, no emprego que tenho, quase ouvi nas minhas costas «uma mulher a estudar paleografia, a estudar latim?». O latim foi um universo estritamente religioso e masculino durante séculos, um universo vedado às mulheres. Depois tornou-se obrigatório o seu ensino, e isso ao menos abriu portas a que as mulheres soubessem alguma coisa de latim, mas raras foram as que se tornaram latinistas. A Maria Helena da Rocha Pereira é um dos raros casos de uma mulher classicista, estudiosa do latim e do grego. Na entrada para a universidade eu queria mesmo seguir estudos clássicos, mas acabei por me virar para estudos portugueses por causa da minha vontade de estudar literatura africana. E acabou por ser nessa área o meu mestrado.
Digamos que tirando a minha queda para o latim, segui sempre meios tipicamente femininos ou frequentados por mulheres, como a docência, o estudo da língua portuguesa. No meu curso as mulheres abundavam e escasseavam os rapazes.
Hoje quase todos nós concordamos que trabalhamos com pessoas e, quer sejam do sexo masculino ou feminino, o que conta é a sua competência, mas mesmo assim diferenciamos algumas pessoas pelas atitudes tipicamente feministas ou machistas. Se me dissessem para escolher e dar uma opinião, francamente prefiro trabalhar com homens, mas isso é a minha experiência negativa a falar mais alto: as mulheres são muitas vezes coscuvilheiras e trapaceiras, usam todas as informações a seu favor, manipulam e são emotivas, preferem mil vezes agir por motivos subjectivos do que reconhecer a competência de outra mulher. Os homens, surpreendentemente, dão muitas vezes a mão à palmatória. As mulheres usam argumentos como «é gorda», «é magra», «é bonita», «é feia», «é muito nova» (esta fartei-me de ouvir da boca de mulheres!). Um machista dirá simplesmente «é mulher!», sem precisar de mais argumentos e resumindo-os todos nesta frase que explicita que ser mulher é sinónimo de burrice e incapacidade.
As mulheres são óptimas gestoras, regra geral. Gerem tudo ao mesmo tempo, de todas formas, possíveis ou impossíveis. Conseguem levantar-se cedo, fazer tarefas caseiras, trabalhar todo o dia, arrumar a casa, cuidar dos filhos. Muito poucos homens foram ensinados a fazer tudo isto ao mesmo tempo, por isso muito poucos tentam, sequer, fazê-lo. As soluções dos homens passam por ter empregadas ou fazer das suas mulheres empregadas, já que antigamente eram as suas mães a ocupar esse lugar. Mas vamos falar de excepções, para que os homens que lêem o meu blogue (que eu sei que são poucos) não pensem que este comentário os discrimina ou inferioriza. Na realidade, a educação dada pelas mães é que os inferioriza. A minha avó ainda diz «coitadinho é homem!» ou «um homem nunca limpa tão bem a casa como uma mulher», ou «é feio uma mulher ganhar mais do que um homem». E de facto o meu pai nunca limpou a casa como deve ser nem vai limpar, simplesmente porque está à espera que a sua inutilidade renda e uma mulher lhe limpe a casa. Isso entra no critério dele para escolher namoradas: sabe cozinhar e limpar e está disposta a isso tudo muito bem, senão está fora de jogo, não passa de brincadeira. Portanto o meu pai não é excepção. É regra.
A excepção são os homens que fazem tudo, porque vai havendo cada vez mais casos contrários àqueles que dantes assistíamos. Como eu disse logo nos meus primeiros textos aqui do blogue, durante século as mulheres foram espezinhadas e maltratadas, por isso hoje em dia assistimos a duas atitudes por parte das mulheres: as que raivosamente se vingam e as que, entendendo o contexto histórico, se afastam desse padrão, procurando nos homens parceiros que agem por igual. Agora as mulheres mais feministas ou com experiências negativas vão-me chamar ingénua, mas é isso que procuro no casamento. Um parceiro, não alguém que se degladie comigo, mas também não alguém que me sirva de criado para satisfazer caprichos. Claro que uma pessoa se confronta com inúmeras dificuldades e pontos de vista muito diferentes ou pontos de discórdia, mas isso não faz dos homens inimigos.
Muitas mulheres não deram a volta toda. Não entenderam que não têm de ser criadas dos homens, mas também não têm de fazer deles criados ao seu serviço. Por que raio andámos tantos séculos a lutar? Não foi pela igualdade? Depois não gosto daquela atitude de parvinha insonsa «ele faz porque quer». Pois, é verdade, os homens são seres muito básicos, muito ingénuos, e por amor (ou mesmo por sexo) fazem quase tudo. Mas parece-me que manipulá-los desse modo, como se fôssemos tontinhas, não é nada abonatório para nós. Não é ser sensata nem inteligente, e muito menos interessante. Talvez a beleza seja muito importante, ou pelo menos a estética, que não corresponde necessariamente ao mesmo. O Augustus diz que qualquer mulher é bonita desde que bem arranjada. Provavelmente o senhor queria dizer que qualquer mulher é bonita com um vestido dos dele, o que também não é verdade, porque as tias de Cascais não são bonitas com absolutamente nada em cima, só lá vai com cirurgia plástica (às vezes…). Ser interessante é um conceito um bocado vago, subjectivo mesmo, mas que eu acho que depende muito mais do uma cabeça do que um corpo (vão lá dizer isso a alguns homens…).
Acho que com o crescimento das mulheres os homens tiveram de lhes seguir as passadas. Tiveram de dar um salto em frente graças à emancipação delas. Desse modo, a inteligência de uma mulher deixou de assustar. A atitude mesquinha de fugir das mulheres inteligentes dissipou-se, embora não na totalidade, sobretudo com a entrada das mulheres em massa nas universidades e por, estatisticamente, termos uma grande percentagem de mulheres em cargos outrora ocupados tão somente pelos homens. Essa conquista criou igualdade. A velha frase «se as mulheres dominassem o mundo não havia tantas guerras» não faz muito sentido para mim. Eu acho que era igual. Elas também são brutas e violentas, mesmo sem testosterona.
É quase um dado assumido que a inteligência e a estupidez estão em proporções iguais, do ponto de vista do sexo, quero dizer há tantas mulheres inteligentes como homens, há tantas mulheres estúpidas como homens. Hoje equilibramo-nos sabiamente desse modo. Na área que conheço melhor, a investigação, acho que é a mesma proporção, a mesma dose de estupidez que enforma ambos os sexos. Não vejo qualquer diferença.
Curiosamente, nos meios que conheço, e é só desses que falo porque generalizar é sempre perigoso, parece-me que as mulheres ainda ganham aos homens na habilidade de enganar, manipular, distorcer a realidade sem dó nem piedade. É para mim quase uma evidência que neste campo elas são soberanas, e isto não significa que não tenha conhecido homens muito mentirosos, a questão é que, mais tarde ou mais cedo, sabe-se que são mentirosos e corruptos (excepto as pessoas ligadas à política e ao futebol). As mulheres conseguem passar a vida inteira a mentir sem serem apanhadas. Mais facilmente se casam por interesse, por dinheiro, por conforto, por vingança, por manha. Um homem não tem paciência para andar à procura do que mais lhe convém, é um bocado o que calha na rifa. O que é muito estranho. Que se passará para sermos tão lutadoras numas coisas e tão palermas noutras? Que se passará para querermos partilhar a vida com quem não gostamos? Não sei. Mas cada vez mais desistimos de tudo em nome do conforto, o que talvez signifique esperteza saloia e pouco mais. As mulheres também são muitíssimo boas a esconder uma traição, a mentir sobre quem são e como são de verdade. Se quiserem nenhum homem as apanha (outra mulher apanha-as sempre). Talvez seja um problema do mundo actual, este cinismo global, mas na verdade quando chamamos aos homens «básicos» estamos a dizer também que eles não chegam a este ponto de malícia que nós chegamos. Se calhar não é assim uma ofensa tão grande dizermos que eles são «básicos». É um elogio. Quem me dera a mim ser «básica», descomplexada. Era mais simples a vida…


Wednesday, August 23, 2006


O exercício físico

Não é para todos nós linear que corpo e espírito sejam um só e que tenham de ser tratados da mesma maneira e com o mesmo respeito. Para mim é compreensível, mas talvez nunca na vida tenha levado muito a sério essa premissa. Procurei sempre enriquecer o espírito, tratá-lo, procurar as razões da minha existência no mais fundo de mim, no mais rebuscado dos livros, e sempre adorei estudar e escrever. Nada disso implicaria que eu hoje fosse uma nódoa, em termos físicos (e não consiga fazer aquilo que a maior parte das pessoas faz com uma perna às costas) se eu tivesse tido cuidado.
Em primeiro lugar, em minha casa nunca houve propriamente o culto do corpo ou de uma alimentação saudável. Só muito tarde, já na faculdade, me comecei a aperceber que beneficiava muito com uma alimentação variada, mas também foi nessa altura que fisicamente me tornei pouco flexível, porque passava horas a escrever e a ler, sentada nas aulas, sentada em casa, e antes disso na variante deitada na cama. Não fazia ginástica nem tinha paciência sequer para pensar nisso. Achava que a magreza vinha simplesmente do não comer, e isso nunca consegui fazer, excepto antes dos exames ou quando me enervava. Com o tempo, também emagreci bastante porque as coisas corriam mal, sentimentalmente, e eu achava que isso era reflexo de um corpo mal feito (ou talvez alguém me tenha convencido disso). Levei a minha vida toda a ouvir comentários completamente absurdos e desnecessários. Na minha casa, se eu acordasse com uma borbulha, ia ouvir que tinha uma borbulha quinhentas vezes (nem imaginam o que se ouve quando se tem um rabo gordo…). Pronto, não vamos contar com a imagem que o meu irmão teve sempre de mim, que ao desenhar a minha biografia desenhou Deus a deixar cair um novelo de lã e uns óculos: tinha nascido eu, uma trunfa com miopia. Com essa imagem atravessei a adolescência e parte da idade adulta, até um dia ter acordado a borrifar-me quase na totalidade para a minha imagem ou auto-imagem, porque estava magra, anémica e com as costas todas tortas. Estávamos no célebre ano de 2001 e já contei o que se passou, tinha acabado de ver a minha mãe a morrer de cancro. A somar a este estado físico débil estava um estado psicológico ainda mais débil e muito fragilizado. Digamos que quando isso acontece é porque houve terreno para isso acontecer. Está mais que provado que quem adoece de depressão é alguém com baixa auto-estima. E alguém com baixa auto-estima vai puxar pessoas semelhantes para ao pé de si. Por isso, desse ano para a frente, a minha aprendizagem acerca do corpo, do espírito e das diferentes facetas que as pessoas assumem quando se relacionam umas com as outras foi (e tem sido) exemplar.
Achamos sempre que percebemos muito bem que sem cuidar do corpo não conseguimos nada e vice-versa, sem uma cabeça arrumada a vida não anda para a frente, mas não é assim tão linear dar o primeiro passo para cuidar de ambos, e às vezes esperamos anos ou arranjamos desculpas esfarrapadas (outras bem válidas, porque qualquer tratamento nos sai da carteira), até para mudar de emprego, ou ter uma conversa franca com alguém, ou resolver um problema antigo.
O meu problema mais antigo é a minha auto-imagem, e com ele passo a vida a refilar e a Patrícia também passa a vida a refilar comigo, porque me enervo e nunca respondo mal às pessoas e fico chateada e queixo-me à Patrícia, e é sempre assim, na biblioteca, no messenger, no comboio, no autocarro, à hora do almoço, eu pareço um turbilhão de emoções completamente descontroladas, porque me acho fraca como pessoa, incapaz de fazer frente às mínimas adversidades, embora a vida me tenha provado, literalmente, o contrário. E nesse estado, tenho encontrado muito gente que me tem agravado a fraqueza de espírito, porque às vezes, muitas vezes, não sei para que lado me virar e esmagam-me com coisas menores que afinal se tornam cavalos de batalha, uma batalha da qual saio sempre perdedora. Isso faz-me sempre ficar a pensar que não vale de nada sermos honestos de sentimentos ou mesmo pessoas inteligentes quando afinal somos estúpidos e não sabemos responder às pessoas apropriadamente. Sinceramente, às vezes um conflito é melhor ser evitado. Mas outras vezes não. Enfrentar um conflito é uma batalha ganha e responder até nos liberta o espírito. Um espírito atrofiado só podia atrofiar o corpo. É o que me acontece. A minha teoria é que as minhas costas são uma grande porcaria porque o meu espírito vive no lixo, a energia não flui, há para aqui bloqueios emocionais a dar com um pau.
Não posso dizer que, desde que comecei a fazer ginástica seja uma pessoa mais feliz, mas pelo menos sou mais esclarecida acerca da minha condição física (quando era adolescente só queria ter um espírito, odiava a dimensão do corpo). O exercício tem sempre a benesse de nos manter ocupados fora da nossa cabeça e dos nossos problemas mesquinhos. Enquanto ali estou as minhas preocupações são as que me indicam, aparentemente fáceis, mas complicadas para mim (não imaginam o quão difícil é «ficar direita», no meu corpo esse registo já se perdeu), e procuro cumprir a minha tarefa como um soldado responsável a obedecer ao sargento, sem reclamar para não ouvir repreensões nem ter castigos. Os dias em que não tenho essa disciplina estou sentada demasiadas horas, o que é estranhamente extenuante para o binómio corpo-alma. A esta altura o JPA está muito satisfeito porque está cheio de razão e eu estou a reconhecê-lo publicamente, ou seja, a assumir que me devia mexer mais, muito mais. É óbvio que a tarefa dele é ser chato comigo, entendo bem porque quando era professora estava sempre a chatear os meus alunos com o célebre «exijo frases completas» e descontava a sério nos testes, o que muito os chateava, mas isso eles chegaram ao final do ano lectivo a saber fazer (não deixaram de dar alguns erros ortográficos, mas também não se pode ter tudo). Espero que os meus alunos ainda hoje oiçam a minha voz, mentalmente, a mandá-los construir frases completas, do mesmo modo que eu oiço o JPA a mandar-me endireitar as costas e a pôr a barriga para dentro quando me sento nas cadeiras gigantes da biblioteca e não tenho posição possível para fazer durante oito horas o meu trabalho.
Quando penso que deve ser mau ensinar alguém com pouca ou nenhuma preparação física (como eu), penso também em mim como professora, e no desafio constante que era ensinar os meus alunos a escrever e a tomarem consciência da importância de defender a língua portuguesa. Não sei se chegavam tão longe (certamente que muitos não chegaram sequer a entender estes objectivos), mas chegavam por vezes a conclusões surpreendentes acerca dos textos literários, dos poemas que apareciam e faziam perguntas perfeitamente pertinentes sobre gramática. No entanto, eram adolescentes, não estavam familiarizados com inúmeras realidades que eram o meu dia-a-dia, como escrever e interpretar ou compreender sintacticamente uma frase ou entender a semântica de um verbo. É diferente ensinar adultos (pelo menos espera-se que sim), mas não tão diferente assim, muitos escapam-se às obrigações como se fossem crianças, também. Talvez seja preciso o dobro da paciência, eu não sei, poucas vezes terei ensinado adultos, ao longo da minha vida.
Não tenho a esperança de recompor as minhas costas, até porque nunca acreditei em milagres, sou uma descrente nessas coisas. Com o espírito é o mesmo, não espero recompor a minha imagem e acordar um dia a achar que sou a Brigitte Bardot (quando era nova, porque ela agora é uma múmia e ainda por cima fascista), ou a Oprah, que é uma activista e escreve cartas ao patrão da Hermes por não a deixarem entrar numa loja em Paris e ele vai ao programa dela desculpar-se. Não estou à espera de ter tanta importância no mundo, de a minha opinião pesar assim tanto que me batam à porta a pedir desculpa. Tenho de ser realista: não vai acontecer isso, até porque regra geral as pessoas são poucos justas mas também não pedem desculpa por isso. Não estou a contar que a minha avó, agora com oitenta anos, me venha bater à porta para dizer que afinal homens e mulheres têm o mesmo valor no mundo e eu até valho alguma coisa (mais depressa me batia à porta para dizer que queria vir viver comigo), e até posso sair de casa sem isso ser assim tão ofensivo para a família, só porque sou mulher e nasci com «deveres» familiares. Há alguém que também não vai pedir desculpa por dizer que eu tenho o rabo gordo, que sou péssima, que sou pobre e o meu emprego é uma merda. Há alguém que também não vai pedir desculpa por me querer, de há quase três anos para cá, dar lições de condução que eu não quero receber. E a minha mãe, que de há cinco anos para cá não é corpo e é só espírito (se é que o espírito não morre), também deveria vir do além para dizer que eu tenho capacidades para alguma coisa ou que pelo menos me desenrasco (é melhor não falar muito, que ela ainda aparece). Os ex-namorados também deviam pedir desculpa pela imagem com que nos fizeram ficar, mas como são ex, também não valia de muito. Finalmente as inúmeras pessoas com quem trabalhamos e que nos reconhecem pouco ou nenhum valor. Por isso, porque sou realista e sei que não pode ser assim, quem tem de mudar de personalidade sou eu, talvez deva tornar-me mais agressiva com comentários destes, talvez deixar de os levar a sério, e pensar que fazer o que os outros dizem não me faz nada mais feliz. Além disso, acreditar nos outros dá-lhes muito poder, é esse o fundamento da maior parte das igrejas, sugar os outros através da ignorância e da baixa auto-estima. Do mesmo modo, também tenho de mudar de corpo, o mesmo é dizer moldar este, que está mau mas não é um caso perdido, porque olhando à minha volta na BN reconheço demasiadas cifoses e escolioses, ciáticas e hérnias discais, e muitos loucos que nem banho tomam (ainda bem que ao meu lado se senta a Patrícia, folgo muito com a companhia dela!), passeiam sozinhos por entre os livros e falam com o tecto ou dormem (eu juro que é verdade) e eu não quero ficar assim.
Assim como tenho necessidade de escrever diariamente o que sinto e penso, de estudar, de me informar, de me saciar em conhecimento, a partir de agora a dose de exercício físico terá de ficar equilibrada com tudo isto, para que «isto» renda em vez de atrofiar o espírito. É uma resolução que terei de cumprir, em vez de andar, na vida, à procura do Santo Graal.





A sinceridade

Uma das coisas que mais temos de aprender na vida, para nosso bem e para bem dos outros, é a gerir as relações humanas. Gerir conflitos, captar atenção e estima, ter capacidade e jogo de cintura para lidar com inúmeras pessoas, algumas bastante difíceis, faz parte de qualquer profissão, quer seja mais passiva ou menos passiva, quer exija mais ou menos trabalho de grupo. Na minha profissão de professora necessitava de algumas capacidades que entretanto ficaram escondidas dentro de mim. A paciência de explicar inúmeras vezes as mesmas coisas, gerir conflitos em sala de aula (muito difícil), saber falar com crianças e adolescentes, perceber a distância que tinha de guardar de alguns colegas. Quando falo nisto, não estou a querer dizer que todos tenhamos de ter uma boa dose de cinismo para vencer na vida, mas, no mínimo, temos de ser cautelosos. As pessoas guardam boas e más surpresas.
O ano de 2001 exigiu de mim capacidades que eu nem sabia que tinha. Uma delas era esta: a calma quase zen de não me deixar abalar por contratempos. Não me perguntem onde fui arranjar forças, porque eu não me lembro, se calhar, se fosse necessário, tê-la-ias aqui outra vez, prontas a serem usadas, registadas na minha memória emocional. Mas do que mais me orgulho foi de ter dado aulas e convivido com inúmeras pessoas muito diferentes umas das outras sem nunca ter dito «a minha mãe tem um cancro». Chegar aos fins-de-semana não significava descanso, ela passava mal, e essa falta de descanso veio a reflectir-se na minha saúde, também. No fundo, estamos todos preparados para as coisas boas, mas não estamos para as más, o que é um erro crasso na forma como vivemos.
Penso que hoje, tagarela como sou, não conseguiria isso, mas penso também que fui inteligente e sensata, os outros nada tinham que ver com a minha vida e, mais do que isso, não queria que nada disso manipulasse, de algum modo, as pessoas ou as minhas notas. Devia ter guardado a lição que aprendi nesse ano: o silêncio é uma arma poderosa a nosso favor, nem sempre a sinceridade traz bons resultados. Infelizmente, os anos seguintes trouxeram-me amargos dissabores com as pessoas que fui conhecendo e com quem fui trabalhando, porque perdi esse escudo com o qual tão bem lutava. Eu diria que ainda faço erros crassos, em confiar em quem não devo, em contar demais. Para que é que as pessoas têm de saber que eu tenho carta e não conduzo, ou que sou assim ou assado? Não têm de saber. E quanto menos confiamos numa pessoa, menos lhe devemos contar, bem como às pessoas que rodeiam essa pessoa. Confuso? Não é. Retracção é a palavra-chave. Por exemplo, fiz um mestrado, mas será sensato partilhar essa informação com meio mundo? Metade não está interessada, a outra metade não vai compreender. Sejamos francos. Um mestrado não serve para grande coisa em algumas áreas, nem adianta muito à humanidade, e isto não é desvalorizar o meu trabalho, porque trabalhei como uma burra para ter aquilo pronto, limpo e bem escrito. Mas não é o supra sumo da humanidade. Provavelmente o meu ano de 2001 transcende tudo isso, talvez seja exemplar das minhas verdadeiras capacidades de ser humano. Fui desafiada de uma maneira trágica (para mim), que me pôs à prova e me obrigou a testar as minhas capacidades de sobrevivência. Mas será justo contar isso a toda a gente (apesar de estar a contar no blogue, são poucos os que o lêem)? Metade não iria entender, a outra metade já teria passado por algo semelhante com outros contornos, mais ou menos trágicos. E muita gente nos responde a actos que consideramos de coragem com um simples «são coisas da vida».
Na vida acho que temos de ser honestos com as nossas capacidades. Há muitas coisas que nem sonhamos vir a conseguir fazer, mas chegamos lá. Há outras, que embora fáceis, não são simplesmente feitas para nós. Lido muito mal com a minha mediocridade, por isso tudo aquilo em que não sou muito boa chateia-me. Há um nível que eu exijo manter. Evidentemente que, com o tempo, fui entendendo que há muitas coisas em que não sou boa porque sou preguiçosa e outras que, embora não seja boa, tenho de fazer incessantemente, como ginástica. Para mim não é mau ter de fazer ginástica, é mau ser tão má a fazer ginástica. É o meu entendimento, que por vezes também é injusto. Quando eu estava em psicoterapia dizia «não estou nada melhor», e a psicóloga respondia «não é verdade, acho que estamos a ir muito bem». Há coisas que nem tento fazer de tão má que sou. Talvez isto seja falta de sinceridade para comigo.
Sermos sinceros connosco implica muitas coisas. Em primeiro lugar, uma honestidade sem fronteiras dentro e fora de nós próprios, o que é muito difícil. Quantos de nós conseguem distinguir a opinião que tem de si mesmo da opinião que os outros têm? Muito poucos. Uns mergulham na própria imagem simplesmente porque toda a gente os acha lindos, outros têm o discernimento de pensar que isso não é tudo. Há uns tempos uma modelo da nossa praça (na minha opinião muito bonita) declarava que, depois da gravidez, já ninguém se lembrava dela. Como se o mundo tivesse de parar para ela engravidar, e depois retomasse as suas normais actividades depois de ela ter a criança. O mundo não gira à nossa volta. Nem sequer o mundo das pessoas que amamos e que nos amam deve girar em torno de nós, tão somente. Porque tem isso de acontecer? Enquanto somos pequenos sugamos a energia dos nossos pais, mas depois de crescidos, isso fará sentido? E os nossos pais sugarem o nosso mundo e as nossas energias, será justo? Penso que também é falta de sinceridade. Isso decorre de não olharmos para dentro, suficientemente fundo, e entendermos o que está mal e o medo que temos de estar sozinhos, em silêncio, só com os nossos medos e as nossas falhas. A sinceridade curaria isso, porque leva à percepção do que está por completar. Sugar o próximo não será o processo mais saudável e um dia pode ter um fim indesejado. Além disso, quem suga nunca está satisfeito, suga sempre mais e mais. E quem é sugado ou é infeliz ou não se apercebe do mundo à parte em que vive.
A sinceridade também exige uma exposição moderada. Não vamos começar de repente a dizer tudo o que pensamos sobre a vida a quem quer que seja. Não vamos mesmo dizer tudo o que nos apetece a um amigo em nome da sinceridade. A sinceridade não corresponde a uma brutalidade necessária nas palavras, mas às vezes implica uma certa crueza de espírito para dizermos às pessoas o que pensamos. Se nunca o fizermos, algum dia vamos ser torturados pelo remorso, ou perseguidos pelos pensamentos que ficaram por dizer.
E para terminar, a sinceridade que não vale a pena, que é aquela que sabemos ter mas que não adianta nada, não muda o mundo, não muda a atitude das pessoas, nem as pune. Consiste em sermos nós próprios e nos defendermos das agressões alheias, sem todavia acharmos que podemos passar aos outros uma «lição». Nem todos estão dispostos a ouvir e a integrar. Nem todos percebem, compreendem ou ficam elucidados. Alguns limitam-se a existir sem consequências.

Monday, August 21, 2006


Liberdade

É muito bom ter um blogue. Muitíssimo bom. É a urina do ego, mas também do espírito. Em primeiro lugar, ter um blogue é ser completamente livre de pensar e dizer o que pensamos, o que é uma coisa extraordinária. Regra geral não podemos fazer isso, excepto com os amigos mais próximos. Com a família nunca podemos falar de tudo, com quem trabalhamos é muito perigoso falar sequer, e com alguns amigos há assuntos que são tabu. Raramente nos sobram momentos em que podemos expressar o que realmente nos vai na alma, e no fundo no fundo, quem somos de facto, sem as máscaras que o real impõe. Tenho vindo aqui a assumir o meu cansaço em relação ao real, às máscaras do real e às outras pessoas. Parece-me que cada vez mais somos condescendentes com a injustiça, a corrupção e a estupidez humana, todavia não somos condescendentes com a diferença, com a doença, com as aspirações dos outros. Aspirar a um mundo melhor é uma coisa. Viver num mundo melhor exige o nosso esforço, mas também a nossa compreensão da realidade circundante e da abertura de possibilidades na melhoria desse mundo. Em primeiro lugar, por muito generosos que sejamos, não adianta sermos ignorantes. Na vida temos de aprender o mais possível acerca de tudo, não só para nos mantermos informados, como para nos defendermos. Noto muito que sempre que baixo defesas sou mal sucedida. Isto é, há que ter muito cuidado em quem confiamos os nossos segredos ou até mesmo as coisas simples da vida e o que pensamos sobre ela. Tenho vindo a aprender que, neste campo, dou confiança a quem não devo e faço erros crassos que me tomam grande parte da auto-estima. Se eu contar que tive uma depressão, a maior parte das pessoas vai-me censurar graças à mesquinhez, à falta de informação e ao preconceito contra a doença (as pessoas passam a ser vistas como pouco corajosas, incapazes de lutar, suicidárias, loucas, ou atrasadas mentais), mesmo que a minha intenção em contar seja a melhor.
Em segundo lugar, de que serve dizer quem somos? Quem quiser que descubra. Então eu que escrevo muito, creio que aquilo que sou tem de ser escrito, por isso basta ler para me conhecer em alguns pontos chave do meu pensamento. Para quê mais do que isso? Valerá a pena dizer que me esforço ou sou honesta ou trabalho muito ou tenho muitos sentimentos? A maior parte das pessoas não pensa em filosofia nenhuma de vida. Se eu tiver uma, tenho mesmo de a impor aos outros? Não. Podemos escrever tudo o que quisermos, somos livres, mas dizer só tem importância para quem sabe ouvir. E são poucas as pessoas que sabem ouvir. E Elisabete é muito boa ouvinte, das melhores que conheço. Não censura, não critica, mas dá a sua opinião, expressa o seu pensamento, sem discutir com a mania que tem muita razão. É muito raro. Mesmo alguns dos meus amigos mais próximos não consegue isto. A Diana também é como a Elisabete, e é bastante perspicaz. São boas ouvintes. É mais difícil arranjar homens assim. O Pedro entende as minhas palavras, mas não percebe o quão importantes e pesadas são, o quão duras e custosas ao espírito, no entanto suponho que com treino e vontade chegue ao entendimento pleno das mesmas e as enquadre na vida real. Porque as minhas palavras têm uma realidade, nem sempre de fácil expressão.
Tenho descoberto também que as pessoas são muito pouco condescendentes com a diferença, por mínima que seja, talvez por isso seja melhor não mostrar sequer essa diferença. Não precisa de ser uma depressão. Basta que seja uma coisa simples, ou que para nós é simples e para os outros não. Lembro-me de um dia ter dito à mesa «tenho medo de andar de avião» e tudo me caiu em cima, que o avião não cai (ou que é raro cair), para quê calmantes (normalmente o Pedro até vai ao meu lado), não tem problema nenhum. E como é que eu digo a estas pessoas que andar de avião é fisicamente uma experiência dolorosa, mas psicologicamente ainda mais, e que a presença do Pedro atenua mas não resolve isso, é uma coisa dentro de mim nunca resolvida, como as pessoas que têm medo de locais fechados, elevadores, supermercados, aranhas? Eu tremo, suo frio, entupo-me de calmantes, mas vou na mesma. E já desisti de pensar «caramba, isto é tão fácil para as outras pessoas, porque é que não é para mim?». Não é porque não é. Pronto. Não há mais nada a explicar, e por isso mesmo quando alguém me pergunta «mas não tens medo de andar de avião?», eu respondo «tenho, mas vou na mesma, paciência…», quando sei perfeitamente que durante meses não consigo sequer ouvir os aviões a passar sobre a BN sem estremecer de alto a baixo. Às vezes gostava de responder às pessoas «sou doente mental» e talvez a fraqueza atribuída à doença me tornasse mais humana, mais frágil e fizesse dos outros seres mais condescendentes comigo. Vá lá eu dizer às pessoas que tirei a carta de condução com tanta dificuldade, que hoje, só de me lembrar disso, começo a suar frio? No entanto, canso-me a ouvir as pessoas a enumerar as vantagens de se conduzir um automóvel, como se a minha vida dependesse disso. Ora a minha vida não depende nem de viagens de avião nem de viagens de automóvel. Para mim seria uma crise partir uma perna ou um braço, isso sim, ou ter problemas na coluna como tenho, isso é uma crise terrível, mas carros e aviões nunca me fizeram falta para vir de Oeiras para Lisboa, nem de Lisboa para Oeiras. Verdade seja dita que o carro pode dar jeito ou andar de avião ser cómodo. Mas verdade seja dita que um ataque de pânico não é cómodo e as minhas alterações físicas descontroladas são tudo menos cómodas. Por isso eu sou amiga do Xanax, chamem-me maluquinha, fraquinha, palerma. Como dizia o meu amigo Jorge quando fazia uma sacanice a alguém «eu sou assim, sou boa pessoa».
Com o tempo percebemos que fazer os outros ver a verdade daquilo que somos é mesmo impossível, sobretudo por comparação a outrem. Por vezes sinto-me uma pessoa injustiçada, sim senhora. Ninguém me atribui mais pontos na caderneta por eu ser honesta, e quantas vezes não vejo a caderneta de um mentiroso cheinha de pontos. Quantas vezes não perco vantagem por razões meramente subjectivas, e por isso toscas, oiço bocas porque sou mulher, porque sou nova, porque isto ou aquilo. Há sempre gente a duvidar das nossas capacidades e não é por isso que somos menos bons como pessoas ou no nosso trabalho diário. Outras vezes temos de lidar muito bem com o facto de sermos completamente ignorados ou referenciados pelas razões erradas. Há que perceber que é mesmo assim. Não somos todos os dias excepcionais e o mundo não funciona graças ao nosso ego. Mas penso que a regra também se aplica às outras pessoas. É ridículo pensarmos que a lei da impermanência só se aplica aos outros, mas também é ridículo pensarmos que só se aplica a nós. Um mentiroso não pode ser sempre o detentor do trono e do tapete vermelho, alguém há-de reparar que o meio pelo qual chegou às coisas não foi o mais honesto. Um mentiroso também cai nas suas próprias mentiras. Por muito burra que uma pessoa seja, não está morta, tem certamente sentimentos para além do conforto do seu próprio ego. Se viver sempre sem esses sentimentos, e fizer opções em função meramente das suas necessidades, tenho dúvidas muito grandes quanto à felicidade que possa obter. Evidente que muitas vezes em que me sinto injustiçada apetece-me abanar tudo à minha volta com bastante força para explicar às pessoas que existe algo muito pior do que tomar comprimidos para andar de avião. Mas valerá a pena??
Sendo assim, quando é que nós somos nós próprios? Os budistas dizem que só na morte se vêem os grandes homens, que a forma como morremos é o reflexo inequívoco de como vivemos e da consideração que temos pela vida, pelas pessoas. Gosto da ideia, só não sei se concordo, mas também não assisti assim a tantas mortes. Talvez alguém que tenha assistido a várias mortes possa falar disto com autoridade. Talvez um mestre budista possa de facto aferir que eles, budistas, morrem mais calmos e aceitam pacificamente o seu fim, se houver tempo para isso. Só que eu acho que esperar pela hora da morte é muito tempo para se aferir quem é uma pessoa de carácter. Entre o nascimento e a morte andamos por cá muito tempo, às vezes com bastante vontade de lixar o próximo, ou simplesmente com vontade de nos afogarmos na nossa própria imagem. E quem pune isso? Sai muita gente desta vida sem qualquer punição. Acreditem.
Gosto do conceito de «a minha obra fala por mim». Era a filosofia do Miguel Torga, é a do Saramago também. O Prince também afirma isso, que não dá entrevistas porque a música fala por si. E há escritores que deixaram uma obra tão vasta ignorada em vida que nos questionamos mesmo quem seriam como pessoas, caso de Fernando Pessoa, de Cesário Verde ou mesmo de Luís de Camões. A noção de que a obra pode ser maior do que a própria pessoa agrada-me. Já que somos pessoas vulgares, então que sejamos artistas de excelência. Mas será que um artista excelente é uma pessoa vulgar? Ou far-se-á passar por isso? Mais vale. É bom alguém excepcional passar por alguém vulgar. Mais vale isso do que uma pessoa vulgar fazer-se passar por excepcional seja em que campo for, seja à sombra de quem for e como for. Mais tarde ou mais cedo, justiça será feita. Quer dizer, era bom que sim.



Com quem andamos

Lamento a conotação negativa desta expressão. Geralmente com quem andamos é com quem dormimos, mas aqui utilizo a expressão em sentido lato. Com quem andamos não é com quem nos cruzamos, mas sim, com quem nos fazemos acompanhar por escolha própria. E de quem gostamos, naturalmente. Estou a excluir, deste modo, todas as pessoas que não nos dizem nada, porque se não nos dizem nada, não andamos com elas. Quer dizer, seria lógico que assim fosse. Mas não é.
O grande problema das pessoas com quem andamos é não serem escolhidas a dedo, com um critério definido à partida: valores, sentimentos e proximidade. São as três coisas que eu acho que aproximam as pessoas de bem. As pessoas que não são de bem aproximam-me por dinheiro, hierarquia, objectivos. Diferente, não acham? Muita gente confunde-se. Por isso há casamentos cuja base é tudo menos válida. Mas resultam na mesma, e eu não sei explicar isso, porque toda a vida vi gente com casamentos fracassados que se amava a sério. Talvez o não-amar seja uma espécie de seguro: se não se está envolvido não custa magoar, não se é magoado, não há preocupações em demasia.
Seja qual for o carácter de uma relação, o que aproxima as pessoas são, inevitavelmente, as três coisas que supracitei. Se alguém não tem uma base de valores que se coadune com a minha, que vou fazer? Vou ser amiga de um ladrão, se não concordo com o acto de roubar e o considero ignominioso? Vou ser amiga de um mentiroso, se acho a mentira altamente reprovável? A fronteira é sempre a moral. O pior é fazer o despiste. Quem são estas pessoas?? Muitas vezes é difícil identificá-las claramente. Somos enganados anos a fio por alguém que se mascara habilmente com os nossos valores possuindo outros, de baixa estirpe.
Sentimentos. Mesmo que alguém tenha valores semelhantes aos meus, sem afinidade de sentimentos, sem gostar das pessoas, não tenho por onde me aproximar. O coração fala e dita regras desconhecidas. É importante gostarmos das pessoas, mas devia haver uma regra que ditasse que só nos podemos apaixonar por quem tem os mesmos valores do que nós. Devia haver uma lei que nos proibisse de nos aproximar de ladrões, mentirosos, gente inescrupulosa e arrogante, snob e palerma. Muitas vezes o amor é cego porque queremos, também nós, ser cegos. Quem não vê o próximo é porque também não se deve ter visto a si próprio, nunca deve ter mergulhado bem lá no fundo. O medo de nos olharmos solicita e selecciona o medo de olharmos o próximo. Assim, prendemo-nos a pessoas com pouco conteúdo e muita ganância, que nos aleijam, mesmo quando não nos apercebemos. A mentira é um grande aleijão, caso não saibam, e embora muitos de nós prefiram viver numa redoma, dentro de uma mentira, não posso considerar isso um modo de vida correcto.
Afinidades. Transcende valores e sentimentos. São coisas que nos unem: experiências comuns, leituras comuns, interesses comuns. De nada vale procurarmos que os nossos interesses sejam iguais aos dos nossos amigos ou amados, podem ser muito diferentes, mas alguns interesses comuns têm de existir. Que brincadeiras podemos fazer com alguém que não partilha do nosso sentido de humor? Pintar as unhas? Que leituras, que filmes, que DVDs partilhamos? Tem de haver uma base. Uma pessoa que não acha graça a nada sem ser a si própria não tem estirpe. Tem de haver graça, piada, tragédia, comédia para partilhar, histórias de interesse. Namorar e ter amigos não é só aparecer para pedir coisas, quando nos lembramos que estamos em crises sentimentais, espirituais ou de trabalho. Se sabemos dizer «preciso disto», também temos de saber perguntar «precisas de alguma coisa?». Tanto os namorados como os amigos, se gostarmos deles, têm de ser surpreendidos sem ser com reprimendas. Palavras doces são requeridas, apoio moral e presentes surpresa, mesmo que não sejamos dados a isso. Mais não seja…aparecer! Um namorado não é um trolha qualquer a quem pedimos boleia e ajuda quando precisamos, ou nos dá dinheiro, ou que nos telefone para tirarmos dúvidas ou que nos convida para passeios com amigos de quem nós nem gostamos. Esse grau de utilitarismo tem de ser ultrapassado, pessoas não são objectos. Talvez um dia criem robôs para fazerem isso tudo e as mulheres estúpidas parem de explorar homens tolos ou vice-versa. Namorar é muito mais do que isso. Até ter amigos é mais do que isso e não exige sexo. Sexo sem afinidades, valores, sentimentos também deve ser bom…mas a vida inteira?? Se as pessoas baseiam a vida em boas casas, bons carros e uma casa de férias estão a reduzir-se à sua dimensão de trolhas. Agarrem num livro dos budistas tibetanos e leiam-no do princípio ao fim. Talvez não fiquem a acreditar na reencarnação, mas pelo menos passam a acreditar que somos bem mais do que esse mescla torpe de desejos caprichosos.
Se descêssemos, a fundo, ao mais fundo de nós, não iríamos gostar. Lá no fundo somos crianças a correr para a casa-de-banho com vontade de fazer xixi, puras, genuínas, salutares, sem as máscaras estúpidas das calças vincadas, das gravatas, dos saltos altos, dos decotes, dos bens materiais. Queremos atenção e diversão, sem qualquer outro interesse de maior nos que nos rodeiam. No outro dia fiz a experiência de me tentar lembrar qual foi a última coisa que me deixou mesmo mesmo feliz, sem amarras nem sanções. E foi pintar. Muito antes de escrever, eu pintava imenso, em miúda, riscava e desenhava muito, e isso fazia de mim uma pessoa muito feliz.
Claro que não pode ser sempre assim. Tem de haver consequências assinaláveis naquilo que fazemos, dizemos, criamos até. E quem vive sem consequências, algures no seu materialismo? De que é feito? Temo que para estas pessoas a criança dócil e inteligente já não esteja acessível. Com essa perda, adeus sensibilidade. Choramos pela morte do nosso animal de estimação mas não somos capazes de ser honestos nas outras coisas todas. Talvez atinjamos objectivos elevados, como trabalhar numa empresa, ter uma boa casa e não precisarmos de andar de transportes públicos porque nos vão buscar a todo o lado. Talvez consigamos enganar os tolos que pensam que somos boas pessoas e temos muitas capacidades. Todavia, esta é a morte certa do espírito. Não esperemos nunca que a iluminação esteja ao nosso alcance, porque não está. Ao fundo do túnel está um vazio indissolúvel. Sem a companhia de quem amamos e de quem nos ama, estamos reduzidos à nossa dimensão mais pequena, somos crianças órfãs para sempre. Como dizia Fernando Pessoa, estamos reduzidos à nossa «orfandade existencial». Isto não depende de sermos mais ricos ou mais pobres, mais letrados ou iletrados, mais ou menos brilhantes. Depende de uma coisa chamada sapiência. Alguma coisa eu tenho de ter aprendido com os budistas nestes últimos dias…


Um dia na minha vida

Como num filme de David Lynch, há dias tão surreais que davam uma história. Podem-me chamar fútil à vontade, mas para mim um dia em que, chegada à estação, se parte a tira da sandália é um dia surreal. Para a maior parte das pessoas seria uma chatice dos diabos, atrasava para o emprego, obrigava a um desvio, ou não, porque ninguém morre por andar o tempo todo com o pezinho de lado. Só que eu acho que as nossas vidas comuns são uma grande palermice. É como dizem os budistas, vivemos fechados em hábitos materialistas e mesquinhos, a nossa vida decorre sempre igual, e as únicas preocupações que temos são para onde ir nas férias e como melhorar o rendimento escolar dos nossos filhos para serem doutores (ou nem isso…). Pouco mais nos preocupa para além da poupança, da reforma, mesmo que nem saibamos o que fazer quando formos reformados. Toda a vida é vivida em função dos saldos, do ordenado, da casa que queremos adquirir e da altura ideal para termos filhos. Poucos de nós arriscamos o que verdadeiramente nos apaixona. Até mesmo o amor é posto de parte, preterido em louvor do conforto e do materialismo. Somos todos uns mentirosos de merda.
Eu acho que há uma certa autenticidade em ter dias surreais. Naquele dia, acordámos para a tolice, a parvoeira, a estupidez na sua expressão mais carinhosa e douta. Não damos uma para a caixa, não dizemos coisa com coisa, não estamos bonitos, nem bem penteados e ainda por cima a puta da sandália fica sem a tira e andamos quilómetros com um pc às costas à procura de uns chinelos baratos porque não se pode gastar muito dinheiro com coisas destas (e também eu quero uma casa, qual fulana mesquinha, mas se vocês conhecessem a minha vida na casa do meu pai também quereriam pular a cerca de vez, acreditem…). É a história da minha vida. Costumo dizer que ainda bem que sou uma perfeita anormal, porque se não, que triste e desanimadora seria a vida, logo eu que acho que ter casa e carro não é tudo.
O dia não seria um episódio do Lynch se fosse só a sandália, porque depois fui centro comercial de Alvalade fora a arrastar o pé à procura de um sítio que vendesse qualquer coisa que eu pudesse mesmo calçar. O que havia barato era 38, «um pé gigante para as portuguesas, vocês não são cavalonas como as holandesas» (sic, senhor da loja), ou 35, que só dá no pé da Teresa, que dizia que tinha pezinho de boneca (e o resto parece que também era, cérebro incluído). Por isso optei pelo 37, uma chinela daquelas ridículas, mas que as senhoras gostam muito, com aquela tira nojenta entre o dedão do pé e o resto dos outros dedos, não sei bem para quê… Depois de comentários bacocos do senhor «já tem sandálias para a praia», «venderam muito bem este ano», etc. lá fui, muito a custo, mudar os sapatos estragados (não comprem na Bata, custaram 25 euros e não duraram nada, agora não há ucraniano sapateiro que faça milagres…) na escada do centro comercial. Depois fui buscar fotografias a uma loja cujo sistema Multibanco falhava ininterruptamente. Paguei em dinheiro as fotografias, lá se foi o numerário do dia…Finalmente a caminho da BN, as dores no dedão do pé eram insuportáveis. Sempre que tenho dores nos pés, sejam que dores forem, de andar muito, bolhas, feridas, unhas, etc. penso que a vida é injusta. Tanta gente com sapatos desconfortáveis e sem queixas, e eu que só calço coisas simples já andava a coxear Lisboa inteira. Fui aos indianos no metro, lá me lembrei de uma casa, e comprei um 38 que me serviu, sem tiras no dedão do pé. Cor-de-rosa. É bem feita para não ser parva, numa altura em que não posso gastar dinheiro cá estou eu a desembolsar o vil metal ininterruptamente para chinelos… Como diria uma senhora velhota que se sentou ao meu lado no metro, «o dinheiro é pesado e sujo e as ciganas escusam de pedir porque eu não tenho trocos e elas andam mais bem vestidas do que eu». Está dito. Para além de andar quase sem sapatos, hoje foi dia de aturar malucos sem papas na língua, gente metediça e fotógrafas sem dedinhos para o Multibanco. Foi dia de comprar merendas a correr no supermercado, para mim e para a Patrícia, mas a coitada ficou retida em Alverca, sem comboios que a trouxessem e com uma neura desgraçada, a comer a sua salada de tomate, que era também para dividir comigo. E eu almocei sozinha no Saldanha a minha merenda e parte da dela, com dois sumos. A Patrícia contribuiu para a minha solidão e para a minha engorda sem querer.
Desculpem-me se os vossos dias são sempre assim. Os meus não. Trabalho sozinha num gabinete e vejo sempre as mesmas coisas e as mesmas pessoas. Diversifico o meu trabalho a escrever o blogue e a ler outros livros porque não aguento a pressão de mudar minúsculas e maiúsculas oito horas por dia, mas melhor isso do que aturar crianças malcriadas por uma miséria. Estamos sempre insatisfeitos…Chego a casa e compro o jantar porque não tenho paciência para a cozinha, simplesmente não fui feita para aquilo. Suponho que se tivesse filhos a minha vida seria uma correria louca e muito mais chinelos e sandálias se estragariam, mas não tenho. Chegar a casa é ouvir as histórias do meu pai, é ouvir uma voz na minha cabeça a dizer «faz os exercícios físicos que te mandaram» (deve ser o personal trainer himself), é ir um bocadinho ao messenger afogar mágoas com a Patrícia e discutir filosofia com o Pedro, ver a Ophra e filmes DVD roubados ao meu irmão.
Na verdade, apesar da minha rotina, sou das pessoas que conheço com menos monotonia na vida. Acordo sempre com uma disposição diferente, o meu pai tem sempre histórias toscas diferentes umas das outras (varia consoante a namorada que escolhe e as pessoas a quem dá boleia), vejo sempre coisas estapafúrdias e surreais, almoço no jardim com a Patrícia, como se fôssemos sem-abrigo com posses ou mulheres das obras, enquanto homens de bicicleta nos gritam piropos ordinários, volto para casa e durmo sempre de forma diferente, com uma disposição diferente e sonhos diferentes. Afinal, onde pára a minha monotonia??
Num mundo emoldurado pelo cinismo, tenho uma vida bastante autêntica. Reduzida no espaço, é certo, e no conjunto de actividades, mas nem todos temos vidas brilhantes e actividades fantásticas. Costumo dizer que escrevo o que posso e sei, nunca disse que ia descobrir a cura para o cancro (quem dera ter capacidades para isso…). Por isso, já não é mau, porque a minha vida é bastante coerente em muitos pontos (não em todos, certamente). Não trapaceio nem sacaneio ninguém, tenho algumas capacidades que uso (outras nem por isso), mas ao menos sou iluminada pela coerência do amor e da verdade. Não serei uma budista, mas vou no caminho da sabedoria das coisas simples…


Os médiuns

Esforço-me por ser uma pessoa racional. Acho que num mundo caótico e desordenado, cheio de desgraças e intempéries, coberto de atrocidade e pejado de pessoas imbecis, não resta senão um de dois caminhos: virarmo-nos para a crença desenfreada ou não acreditar em nada. Claro que podemos seguir um caminho alternativo e menos radical, como acreditar só em algumas coisas, mas se formos inteligentes vamos perceber que não serve de muito acreditar em espíritos ou em Deus e ficar por aí, sem andar mais para a frente. É correcto procurar e indagar quem somos. Eu sempre achei que qualquer crença, por mais absurda que seja, revela quem somos e a nossa honestidade na vida. Volto à carga naquilo que disse no post anterior: se somos budistas temos de exercer a nossa capacidade de budistas, se somos católicos, crentes, temos de praticar, mais não seja em actos bondosos, mesmo que não sejamos frequentadores assíduos da igreja. Há certamente pecados maiores do que não ir à igreja, mas devemos conhecer os seus preceitos e perceber o porquê de sermos católicos e não budistas ou hinduístas da Igreja Adventista do 7º dia, ou da Igreja Maná, ou da Igreja Universal do Reino de Deus.
A crença também pode revelar a nossa ignorância. Não chega pagarmos uma avultada quantia ao pastor ou à igreja, temos de perceber o contexto, e muitas vezes, por ignorância, isso nem é questionado.
Há coisas em que tenho uma postura mais politicamente correcta do que outras. Acho que devemos ler o mais possível acerca daquilo que nos assusta ou deprime. Quando comecei a ler livros sobre a depressão, também não gostava muito daquilo que lia, mas achava que esse era o caminho melhor: saber para evitar, combater, lutar com armas significativamente mais sensatas. Até sobre o cancro da mama, ando informada, em cima do acontecimento, dos tratamentos, das evoluções. É preciso identificar, perceber, combater. Mas isto é a teoria. Na prática, estaremos algum dia preparados para um cancro? Ou até para uma depressão (que também é daquelas coisas que «acontecem só aos outros»)? Não estamos, não. A menos que, como dizem os budistas, percebamos a lei da impermanência e saibamos lidar bem com a mudança, não só de casa, de estado civil, mas também de condição física e espiritual. E muito poucos de nós reagem bem quando mudam para pior. Geralmente achamos que mudar é sempre para melhor. Eu sou muito prudente com a mudança. Mesmo que se assemelhe ao paraíso, a mudança comporta riscos grandes, desafia-nos enquanto seres humanos. E, regra geral, quanto mais medo tivermos, pior vivemos. Porque ter medo é a base para não fazer, não mudar, não conseguir, não passar ao degrau seguinte. Eu tenho medo de muitas coisas e reconheço isso. Não vou dizer que gosto de andar de avião, ou andar sozinha à noite, ou ir à ginástica, ou cozinhar, ou ficar doente, ou saber à partida que vou aturar pessoas chatas que me destroem muitos neurónios por segundo. Todavia, faço-o, ou porque tenho de fazer ou porque quero, ou simplesmente porque as circunstâncias ditaram que assim fosse.
Muitas vezes a mudança não parece ajudar nada. Não dizemos, ao perder o emprego «ai que bom! Agora é que a minha vida dá a volta que eu precisava!». Provavelmente sentimos primeiro a frustração de a vida não ser o que esperávamos, ou de vermos pessoas a conseguir o mesmo que nós com menos capacidades, ou de simplesmente não termos dinheiro (que é muito muito frustrante). Assim como não chegamos ao médico, diagnosticam-nos um cancro e dizemos a sorrir: " Obrigada. Fazia-me falta perder o cabelo todo para mudar de visual. Esta mudança até ajuda ". Não é assim, até porque, se formos inteligentes, evoluímos, não estamos à espera que nos mandem evoluir, mas à nossa velocidade, não àquela que os outros nos pedem para termos, porque isso não existe. Não andamos aqui para sermos o que os outros querem que sejamos, nem para termos a personalidade que esperavam que tivéssemos. Ao longo de vida, tenho sido uma frustradora de expectativas muito grande, porque quase sempre tenho seguido o caminho que eu quero e não aquele que os outros gostariam que eu seguisse. Acho que quando faço as coisas que os outros querem é mera coincidência. Nunca percebi muito bem, mas parece que toda a gente gostaria que eu conduzisse, por exemplo, «para meu bem». Menos eu. Não percebi porque é que deveria ficar sentada todo o dia, visto que não posso, por razões de saúde, estar sentada muito tempo. Digamos que não nasci para ser marioneta, e chateia-me muito sê-lo. As conveniências e a superficialidade irritam-me solenemente. Parece que nunca descemos ao mais fundo de nós, para entender porque é que estamos sempre a dizer aos outros que sejam como «nós». Teremos assim tanto medo da diferença?
Não sei quais as capacidades do ser humano, e verdadeiramente ninguém sabe, mas calculo que haja pessoas muito bem informadas acerca daquilo que somos e que conseguimos atingir. E enquanto alguns de nós ficam aquém seja do que for, outros têm capacidades muito fora do normal, muito extraordinárias mesmo, que sinceramente admiro. Estamos habituados a achar que quem conhece o próximo é o médico ou o psicólogo, que estudaram especificamente o que «é» o ser humano, num conjunto corpo-espírito. Mas muitas pessoas transcendem esta descrição. Conhecem o próximo intuitivamente, até de uma forma inadvertida, furtiva, um bocado a rasar. Têm uma dimensão muito para além do superficial. Umas pessoas exploram isso mais do que outras.
A capacidade mediúnica ainda vai além disso, o médium é um veículo deste mundo e do «outro» (para quem acredita noutro mundo para além deste). É ainda mais sensitivo, mais aberto ao intangível.
Eu nunca soube muito bem lidar com essas capacidades – que julgo ter. Tenho sempre tendência a classificar o que sinto como sintoma depressivo ou pós-traumático, de forma a explicar racionalmente aquilo que me parece ser. Mas se fosse um problema cerebral seria diário, constante, regular. E não é. Parece haver uma hora, bastante escura, em que me levanto e tenho muito medo daquela sensação fria e desconhecida, de ter gente à volta a olhar para mim e até a querer falar comigo. Nunca consigo avançar na direcção dessa sensação, avanço logo para a cama e escondo-me por entre os lençóis. Muito raramente também pareço estar a ser observada no quarto, mas é mais raro. Pronto. Assinei o meu contrato de demência, aqui no blogue. Mas eu fui a primeira a dizer que tudo isto é cientificamente explicável. Além disso, odeio monotonia e tenho um trabalho monótono, por isso o meu cérebro deve dispersar e inventar esta coisa criativa que é sentir o inexistente. Não sou nada monótona, todos os dias sou diferente.
Mas assim como alguns de vocês estarão a chamar-me demente, outros dirão que esta percepção fora do vulgar é comum e é um dom. Eu também acho que sou doida, e que sinto o que impulsivamente quero ter. Mas há uma diferença abissal entre os desejos e a realidade que é a vida. A frustração de expectativas acaba por ser constante, sobretudo em quem tem percepção a mais, a dita extra-sensorialidade. Acabamos por perceber que há uma parte do nosso cérebro permanentemente ligada ao que nos frustra, quer isso seja simples ou complexo, quer passe por saudades (conceito já de si complexo), quer passe por coisas mais específicas, como detectar impostores.
Uma das minha amigas contou-me esta história. Foi com outra amiga à taróloga (a dita «bruxa»), muito céptica e incrédula. Ficou num canto e qual não é o espanto quando a taróloga lhe diz: " Estás mentalmente a mandar-me à merda! ". Na verdade, quem manda à merda tem uma expressão específica, não é preciso ser bruxo para adivinhar. Mas é preciso cuidado, há sempre alguém que nos lê os pensamentos, adivinhos, mágicos ou extra-sensoriais. Talvez tenhamos uma energia qualquer, a aura, o karma mais visível. Não sei. Mas há coisas que sinto e não sei como lá chego. Há conclusões lógicas, às quais chego pelo cérebro e pelos sentidos que todos conhecemos. Há conclusões sem lógica, embora muitas vezes certas, às quais chego pela perspicácia e por um sentido que escapa à razão humana.
Na definição dos espíritos, ser mediúnico é estabelecer um contacto entre cá e lá, ser uma espécie de corrente comunicativa. Mesmo que não se queira, pode-se ter essa capacidade, ser inata, mas simplesmente não lhe dar atenção, não estudar o que fazer com ela, como é ela, para que serve de facto. Ou pode-se aperfeiçoar, refinar-se de forma a melhorarmos a nossa perspectiva das coisas. Muitos de nós possuem uma omnisciência oculta. Ser omnisciente é um poder muito grande. Só os narradores detêm a omnisciência e Deus, mas em todo o caso Deus é considerado um narrador que conta a história do homem e do pecado no mundo. É um narrador participante, activo, elo de transmissão. Por isso a mediunicidade começa em Deus, ou no Além, e daí evolui para algo bem mais simples, porque se somos feitos à semelhança de Deus, então temos esse lado mediúnico, que pode ser activado ou recalcado.
Alguns de nós não têm tempo nem pachorra para pensar nisto, outros são simplesmente estúpidos. Penso que ninguém está muito à vontade com o seu sexto sentido. O sexto sentido é hoje aquilo que a sexualidade era há uns anos atrás: todos faziam, mas ninguém expressava opinião sobre o tema. Todos temos sexto sentido, mas muitos de nós assustamo-nos e recuamos com medo. Outros avançam em sentidos completamente errados, como a bruxaria (fazer mal ao próximo é subverter o sentido natural das coisas), e outros praticam sem se manifestarem.
Não sei se sou mediúnica ou se sou tola, mesmo, se o meu cérebro está programado para a bacoquice, a idiotice, se está mesmo programado para o trauma, para registar as quedas e com isso fazer filmes. Não sei até que ponto poderei comunicar com outros mundos, ou se eles existem. Sei que não gosto nada de acordar para o mundo real, que me parece reles, podre, hipócrita. Gosto muito mais dos meus sonhos. São completos, e talvez a verdade em si mesma esteja neles.

Wednesday, August 09, 2006


Os pusilânimes

Há uns anos atrás, não muitos até, sobretudo quando me dediquei à leitura de livros budistas, eu andava a aprender que todas as pessoas dão a sua contribuição ao mundo, são importantes, têm o seu papel. Volvidos estes dois ou três últimos anos, eu continuo a ler livros budistas mas a não acreditar em quase nada do que lá está. Porque não consigo mesmo e a realidade prova-me totalmente o contrário acerca do que os budistas dizem sobre as pessoas. Já para não falar nas balelas da reencarnação e eteceteras, porque isso para mim não tem explicação possível, andarem por aí almas a meterem-se em corpos para aprender «lições» de que não se lembram nas próximas vidas. Até o «dejá vu» está cientificamente provado. Mesmo assim os budistas dizem que foi algo que se passou numa vida anterior e nos lembramos nesta. Enfim…provavelmente quem acredita nisto é como quem acredita em Deus: é felizardo, tem a que se agarrar, apesar da falta de consistência desta teoria bacoca.
Pensem bem: que me interessa a mim se vou ou não ser castigada na próxima vida? Não me vou lembrar de nada mesmo…Não será esta teoria uma outra forma de desculpabilização do homem pela sua conduta? Na realidade, já viram o difícil que é não acreditar em nada de nada? Parece que nunca vamos para lado nenhum e estamos sempre sozinhos. Todavia, é assim que me sinto na maior parte das vezes. Volta e meia acredito, mas não em Deus ou no Buda, acredito só na felicidade.
O budismo tem uma coisa fantástica, que me parece acertadíssima: quanto mais fora do ego, melhor. Essa já me parece uma lição muito válida. Que mania a nossa de só agirmos em função do ego, das nossas necessidades e preferências, como se o mundo se afundasse ali mesmo, no nosso umbigo.
Depois reparem quem são os budistas: Buda era obeso e ria-se muito (portanto era um parvo que não fazia fitness nem comia barritas de cereais), no entanto é o mentor desta seita. Os budistas, por sua vez, ou são pessoas que acham que atingiram o Nirvana, e portanto têm um ar completamente «charrado», de quem fuma passas, ou são más pessoas. Reparem na quantidade de gente que diz acreditar nos princípios budistas mas não faz a mínima ideia do que isso é, em termos práticos. Tenho descoberto muitos budistas completamente corruptos.
Acho idílica a imagem de que todas as pessoas são boas e têm uma mensagem. Melhor, que todas as pessoas tenham uma mensagem, isso sem dúvida, está no carácter humano relacionarmo-nos uns com os outros, dizer o que pensamos, filosofarmos. Mas nem todos têm uma mensagem válida, sincera, autêntica, pura. Muitas pessoas são um caminho de sofrimento, às vezes atroz, embora nos desafiem e nos tornem por vezes mais fortes e sábios. Na realidade, uma grande maioria das pessoas tem uma mensagem destrutiva porque vive sem amor. As outras pessoas são simplesmente cruéis. Por isso, só sobra as pessoas que vivem com amor e não têm crueldade no coração, que me parecem raras.
Trabalhei e convivi com pessoas muito variadas: corruptas, mentirosas, sacanas, filhas da puta, boateiras, traidoras, manipuladoras. Provavelmente quem nunca passou por isso não identifica essas pessoas nem mesmo tendo-as à frente a fazer o pior possível. Se eu que tenho experiência me engano, imagino quem não tem…
Isto não me devia tirar o sono, não devia abalar as minhas convicções, não me devia fazer tão infeliz, não devia permitir que eu me levantasse todos os dias com um humor de cão e com vontade de fugir do mundo. Estes últimos anos também têm sido exemplares na aprendizagem do amor e da amizade profundos, também. Era nisso que eu devia estar concentrada. Mas o meu instinto de defesa (de mim própria e do próximo) leva-me sempre a franzir o sobrolho…se eu fiz um caminho tão complicado para atingir as coisas que tenho, porque é que algumas pessoas nem mexem os dedos dos pés? Deve haver uma lei qualquer a promulgar que os estúpidos chegam lá mais depressa.
A corrupção abala muita a minha crença no ser humano. Para além do transtorno emocional, há o transtorno profissional, que muitos de nós sentem duramente quando se trata se arranjar emprego ou conseguir a «tal» promoção. É certo que há muitos parâmetros subjectivos. Mas há muitos que não são. E depois há outros parâmetros classificados como objectivos que a mim não me parecem assim tão lineares. Mais uma vez a média…de curso, de estágio, de formação, de pós-formação. A mim a nota parece-me das coisas mais subjectivas. Começa pelo primeiro parâmetro. Onde tirámos um curso? Cansei-me de ver pessoas de institutos privados a sair com médias de 18 e 19 sem saberem escrever português, mas a ficarem colocados, porque o sistema preteria os palermas de médias 13 e 14 da faculdade de letras. Para ver a diferença de conhecimentos basta olhar para os currículos dos cursos. Não é preciso mais. Parece comum aceitar-se a corrupção como um mal menor. É só contornar, desviar o olhar, fugir, escorregar. Não resolve, mas está bem. Às vezes não temos armas nem paciência nem coragem para iniciar uma luta sem tréguas contra as situações que nos injustiçam. E mesmo assim fazemos as coisas, pagamos forte e feio para as ter, trabalhamos a carregar portáteis para as bibliotecas, por vezes ainda somos acusados de ter a vida «facilitada» porque há uns anos atrás nem havia computadores (mas também não havia tanta gente em mestrados e doutoramentos, certo?), e ficamos «entalados» no sistema, à espera de conseguirmos uma promoção pelas coisas que realmente fizemos e não demos a outros para fazer. É com tremendo desgosto que vejo tantas pessoas esforçadas (algumas a arrastarem mestrados sete e oito anos por motivos pessoais) a ficarem pelo caminho. Agora sejamos francos, acham mesmo que todas as pessoas se esforçam por alcançar as coisas? Algumas fazem um esforço bastante moderado…eu diria, medíocre. Mesmo assim são fantasiosas ao ponto de se acharem supremamente inteligentes. O mundo está cheio disto. De supremos idiotas prontinhos a subir na vida, convencidos de que o seu trabalho muda o mundo.
Talvez por tudo isto a minha percepção do mundo tenha mudado. Eu dantes estava convencida de que a corrupção era uma coisa rara, que existia no futebol, nas empresas, no sistema em geral, mas que não era concreta. Não estava ciente de que a corrupção pudesse estar sentada na mesma mesa que eu, ao meu lado ou namorasse com amigos meus. Não estava ciente porque confiava no destino, achava que as pessoas, mesmo que não fossem boas, não tinham más intenções, atitudes negativas propositadas. Mas a realidade é que não é assim. Eu não sou tolinha e não nasci para ser tolinha. Estou careca de ver pessoas a estruturarem os planos mais mirabolantes para vencer na vida sem nunca terem castigo, e sem mesmo serem vistas como hipócritas. Estou careca de ver pessoas pusilânimes a convencerem os outros da sua excelência, que deve ser tão óbvia quanto avistar um OVNI fora do Alentejo profundo. Isso contribuiu, ao longo da minha vida, para eu desacreditar as pessoas. E mais uma vez eu confirmo a minha ideia anti-budista: as pessoas não são todas boas, nem têm todas qualidades válidas para os outros. O estupro e a mentira podem ser grandes qualidades para a própria pessoa e prejudicar todos os que estão à volta. O budista anda cego, surdo e mudo. Mas eu não.




«O Einstein também não tinha boas notas»

É certo que tenho uma visão altamente negativa e feérica da realidade comum. É uma questão de perspectiva, pois claro. Ninguém tem de olhar para o pior do mundo. Se calhar fui educada/habituada desse modo. A minha avó, por exemplo, esteve sempre dividida entre duas interpretações da realidade: todas as pessoas são boas e merecem o perdão (visão católica) e as desgraças estão sempre à porta, é melhor nem abri-la. Se eu fosse a seguir a visão da minha avó, provavelmente nunca teria saído de casa nem para ir à rua. Muitas vezes ouvi a minha avó dizer «tenho medo que o vento te leve». É uma frase cabalmente estúpida (estamos em Portugal, não no Kansas), mas define bem a educação que tive. Quando eu era muito pequena, eu sonhava em abrir a porta e ir para outro lugar com outras pessoas, portanto, sempre quis que o vento me levasse, ao contrário da expectativa dela.
Ao longo da vida eu deveria ter feito muito mais força para que a mó mexesse no sentido que eu queria. Mas fiquei muito tempo parada, à espera de uma mudança que nunca aconteceu e se deu tão gradualmente que eu ainda vivo em casa. Isso ensinou-me que nunca devemos esperar a mudança, mas sim fazê-la, mesmo que seja no sentido menos correcto. Estar parado é que não. Torna-se frustrante e doentio.
Em geral sofremos da doença do corredor fixista. Andamos sempre a correr, andamos sempre ansiosos, mas se formos pensar bem, raramente saímos do mesmo sítio. O desconhecido é sempre um buraco negro, às vezes difícil de gerir. Por muitas mudanças que se operem nas nossas vidas, as mais importantes dão-se dentro de nós. Ou evoluímos, aprendemos, ficamos mais seguros, ou então não queremos nada disso e estamos agarrados à superficialidade que nos circunda e envolve, tipo bolha que não rebenta. Uma vez li um livro acerca de terapias alternativas que dizia que há pessoas que até fazem listagens daquilo que aprenderam no ioga, no reiki, na acupunctura, mas por dentro não se operam mudanças estruturais.
Tenho tentado mudar duas coisas em mim que volta e meia acho irremediáveis: a minha capacidade de perdão, que não sendo nula, anda perto da escala mínima; a minha visão destrutiva e negativa do mundo. E tenho tentado mudar isso sem abdicar de valores fundamentais, como o respeito por mim própria e pelos outros. Não falo a começar em perdoar a torto e a direito, porque não funciona assim. Não falo em achar tudo cor-de-rosinha de repente, porque não é assim.
Quanto maior é o grau de preocupação com as coisas, mais ansiosos e problemáticos somos. A preocupação, quanto maior e mais excessiva, mais problemas causa. Uma pessoa que se esteja a cagar não é chateada nunca, as coisas não atingem, as palavras não ferem. Uma pessoa como eu nunca se está a cagar para nada. Nem para si nem para os outros, nem para o que a rodeia. O que significa que não deito lixo para o chão, se tiver de fumar não o faço para cima de ninguém, nem passo à frente nas filas do supermercado. Mas significa também que tudo o que me dizem é registado. Tudo o que me fazem é registado. E, quando não gosto de alguma coisa, daí para a frente cedo pouco e o método é o da defesa pessoal, alerta máximo, código vermelho, porque odeio confianças desnecessárias. Por isso, na maior parte dos dias, odeio que me tratem como se eu fosse um computador totalmente programável pelas outras pessoas. O meu software não é assim.
Na maior parte das vezes, acabamos mesmo por achar que podemos programar e reprogramar as outras pessoas a nosso bel-prazer. A frase que mais me cansei de ouvir dos encarregados de educação dos meus alunos foi: «o Einstein também não tinha boas notas». Para já, premissa errada. O Einstein não tinha notas brilhantes, mas não era nenhum parvinho que arrastasse livros e pegasse fogo aos colegas. Além disso, vestia-se sempre de igual para não gastar neurónios a escolher roupa (coitadinhos dos neurónios da Patrícia!), e isso não cabe na cabeça de nenhum adolescente actual, que gasta fortunas em roupa. A primeira vez que eu escolhi e comprei uma peça de roupa foi no segundo ano da faculdade.
Número dois. Quem te diz a ti, pai/mãe parvinho/a que o menino é um Einstein? Não pode ser uma pessoa vulgar? Tem de mudar o mundo?
Pior do que tudo é tentar reprogramar um computador com outro avariado. Ou seja, o pai a querer que o menino seja brilhante quando ele próprio nunca foi. O pai a querer fazer do menino uma coisa para a qual ele não nasceu. Não me lembro de uma só vez que os meus avós não dissessem que «queriam» que eu e o meu irmão fôssemos médicos. Nunca tivemos vocação para tal. Provavelmente, os nossos avós queriam consultas grátis, o que é legítimo, tendo em conta o que se sofre para marcá-las. E, acima de tudo, queriam auto-medicar-se. Eu gostava de imaginar interromperem-me as urgências para pedirem os medicamentos que eles achavam que lhes fazia bem. Acho que se fosse médica, ia para a AMI, fugia de Portugal.
Temos quase todos esta mania terrível de jogarmos com as cartas dos baralhos das outras pessoas. De achar que podemos baralhar as cartas dos outros como queremos. E fazemos muito isso com os filhos, mas também com os amigos e as pessoas próximas de nós. Porque casamos e temos filhos aconselhamos os outros a fazê-lo (mesmo quando não gostamos de ser casados e de ter filhos), porque conduzimos achamos que os outros têm de conduzir, e por aí fora. Jogamos sem habilidade nenhuma com os sentimentos dos outros. É uma constante dizerem-me para ignorar esta grande mania, mas eu sou, infelizmente, daquelas pessoas talvez pouco seguras talvez estúpidas mesmo, que passa a vida a ser infernizada por pessoas assim. Muitas vezes temos de nos resignar a ouvir ou simplesmente a ignorar. É o que diz a Estela, se eu ao menos não ficasse tão chateada e realmente ignorasse…

Monday, August 07, 2006


O que acontece

Eu costumo dizer que vivemos todos numa redoma. A sociedade impele a isso, porque estamos sempre a correr para pagar contas, fazer tudo a tempo e de forma perfeita. No meio disto tudo, às vezes pode haver muito pouco daquilo que somos. Porque se há pessoas que apreciam esse stress, outras há que o detestam e se esgotam a tentar espartilhar-se nas opiniões dos outros.
Eu detesto muitas coisas. Mas a principal, que hoje em dia não sinto tanto como nos anos que ficaram para trás, é a falta de liberdade. Uma vida alucinada para podermos fazer tudo num dia, ganhar o suficiente ao final do mês, pagar contas e ainda sermos filhos, pais e netos de excelência é dose…
O que eu detestava na minha vida, e que ao longo do tempo tenho vindo a conseguir mudar, era o facto de estar sempre a correr, fazer o que não gostava, ganhar uma miséria que não me permitia sair de casa, e ainda chegar a casa sem paciência para ouvir histórias mirabolantes sobre coisas que não não me diziam respeito. Tenho de confessar que sou uma pessoa ansiosa, muito ansiosa, e com muito pouca paciência, mas nos últimos anos fui obrigada a uma paciência de Job. Sabem quem era Job? Aquela figura bíblica ultra-sacrificada a quem Deus castigava por tudo e por nada e estava sempre a entregar trabalhos e mais trabalhos sem lhe dar descanso. Nestes últimos anos tenho-me sentido uma pessoa sem descanso. Vem uma atrás da outra e parece-me que estou sempre rodeada de trabalhos complicados, para além do espartilho do que os outros querem de mim, normalmente em doses cavalares. Por isso eu tenho querido da vida algumas coisas em doses cavalares, também, porque me chateia muito ser Job.
Tudo para dizer que não cresci, nestes últimos anos, a pensar que as coisas acontecem aos outros, bem pelo contrário. Também não me acontece tudo a mim, no meio do azar sou muito felizarda, mas o contacto com o exterior (e com o interior) e com pessoas muito diferentes de mim, ajudou-me a entender que vivemos muito com a espada de Dâmocles sobre a cabeça, mas não temos essa noção. Em nada vemos as verdadeiras consequências. E tudo, por mais pequeno que seja, tem consequências. Até respirar. Mas não vemos assim. Não achamos que lá porque apanhámos um escaldão aos quinze anos vamos ter cancro de pele aos trinta. Mas é possível – embora pouco provável – que tal aconteça. Isto só em relação a nós próprios. Na nossa relação com as outras pessoas, ainda achamos menos válida esta premissa. Não achamos que estacionar o carro em segunda fila tenha consequências para além de uma multa (às vezes nem isso). Por exemplo, não fazemos questão de pensar que uma ambulância assim não pode passar, ou uma pessoa de carrinho de bebé. Portanto, é indiferente se prejudicamos cinco, dez ou vinte pessoas. Prejudicar em nosso benefício é a atitude comum. Eu generalizo essa atitude chamando-lhe corrupção (quando não é inadvertida, porque senão será inconsciência).
Eu costumo dizer que, se Deus existir, é um grande filho da puta. Raramente, na minha vida, vi pessoas a serem castigadas de forma exemplar. Não vale a pena castigar Job se não se castiga exemplarmente pecadores muito piores. Em que estava Deus a pensar? Pelo que entendi, Deus desafia aqueles que podem seguir o caminho que Ele quer, portanto, os iluminados, os que estão dispostos à ascese espiritual através da Fé, que os leva ao paraíso. Então quer dizer que se eu for muito estúpida, não sou desafiada porque não entendo desafio, e, como consequência, também não sou castigada? Então é isso. As pessoas estúpidas nunca são castigadas porque não percebem o desafio de Deus ou da própria vida.
Na nossa sociedade tendemos a ver os obstáculos como inultrapassáveis, sobretudo se forem questões que mexem com a nossa sobrevivência, como a doença, por exemplo. Mesmo que sejamos pessoas positivas, não há hipótese de não nos questionarmos «porquê eu?». Há anos atrás, eu vivia em redomas desse género, que em parte fui perdendo, em parte fui ganhando. Achava, por exemplo, que só os fracos e as pessoas doentes sofriam de depressão. No entanto, um dia chegou a minha vez e eu não achei piada nenhuma em acordar todos os dias com ataques de pânico, sentir-me sempre uma desgraçada, estar sempre tristíssima, e achar que daquele buraco eu não saía mais. Ainda hoje tenho vestígios desse tempo, no meu corpo e na minha alma, e não acho piada nenhuma.
Na minha vida, não tem facilitado muito não acreditar em nada. Considero-me uma hiper-realista. Tenho a noção de que tudo pode falhar sempre, a todas as horas, e nunca me entusiasmo muito com as vitórias. Sou muito moderada com as coisas boas e um tanto exagerada nas más, porque as acho sempre muito prolongadas, eternas. No fundo, doem mais.
Claro que me custa enfrentar a vida de costas tortas, miopia alta, quistos mamários: Não valho mais do que um camelo de pernas partidas. Mas raios partam, quantos de nós não somos vesgos e doentes e escrevemos livros, criamos teorias? O Borges não era cego? O Hawkins não é aleijado? A Frida Khalo não teve poliomielite e um acidente grave e pintou uma obra de excelência, também ela marcada por esse sofrimento atroz? Se Deus existe, porque é que os escolheu a eles para escrever, investigar, pintar? Quantos fundadores de ordens religiosas não eram aleijados? Quantos santos? Inácio de Loiola era coxo, tinha uma perna mais pequena do que outra. O sofrimento também aguça o engenho, ou obriga-nos simplesmente a um esforço redobrado e inclemente de sobrevivência??
Há duas teorias possíveis: a dos carrinhos de choque, que implica acreditarmos no caos como pano de fundo e na ordem como algo meramente aleatório; e a das consequências, que era bom que existisse, que implica acreditar que as coisas (boas e más) têm retorno. A maior parte das pessoas acreditará num compromisso entre as duas, mas também há pessoas originais, que pensam que só há consequências para os outros, são as pessoas que tipicamente se auto-intitulam de «muito boas pessoas», já para deixar claro que não fizeram nada de mal nas suas vidas, ou, no caso do catolicismo, que estão livres de pecado. São as pessoas que mais facilmente acreditam que elas é que estão correctas, e por isso os outros é que adoecem. Gostaria que Deus existisse só para provar que elas também são mortais, que a mortalidade é para todos, não depende do bem ou do mal.
Há estatísticas que provam que estamos sempre a adoecer. As doenças da sociedade modernizada são os problemas cardíacos e o cancro, que mais não deve ser do que um acumular torpe de porcarias no corpo, juntamente com uma genética completamente adulterada pela alimentação e pelo stress. Para além das ameaças externas, dos vírus e das bactérias, temos as ameaças internas: o stress acumulado, a energia mal dirigida, as emoções negativas. Um dia estoira.
O que me chateia é que isto é provocado pelas preocupações constantes da vida: qual é o caminho que devo seguir? Que trabalho devo procurar? Quando me apaixono? Quando tenho filhos? O que é que eu faço agora? E milhares de outras questões diárias, que aparecem segundo a segundo. Nas pessoas mais seguras e optimistas a resposta deve ser sempre «vai tudo correr bem», nas menos seguras «mas onde é que isto vai dar? Não estava preparado para tanto». Não devemos ser tão estúpidos que pensemos que tudo corre bem. Não é verdade. Quando a minha mãe adoeceu, toda a gente me dizia que devia ser positiva, que tudo corria bem. As pessoas mostravam-me estatísticas de cura do cancro da mama, mas não me mostravam as estatísticas de morte por cancro da mama, que é um flagelo mundial. Em Portugal, em cada 5 minutos morre uma mulher de cancro da mama. Acreditam? Eu também não sabia. Pois a minha mãe é uma dessas mulheres que faz parte da estatística negra. Houve 5 minutos dela nessa estatística. Feliz ou infelizmente, eu nessa altura não estava preparada para me ouvir a mim própria antes de ouvir as pessoas. Por isso, achei naturalmente que a minha mãe engrossaria a estatística do sucesso e nunca a do fracasso. Mas na vida temos mesmo de ser fortes e estar preparados para a morte, porque é disso que se trata. Temos de saber viver, de saber sofrer, de saber morrer. Se no meio disso tudo, alguma coisa fizer sentido e formos felizes, realmente felizes, já nos podemos dar por afortunados.
Enquanto ateia, Deus é para mim um desafio inclemente e grandioso. A expressão de Deus é a expressão do próprio homem, do seu pensamento. Deus entra com muita força na porta de cada um que acredita. Na doença, no sofrimento, na morte, mas também na saúde e na felicidade, atribuímos-lhe um cunho – quanto a mim fantasioso – de algo superior a nós próprios, mas que nos guia. Isso dá significado ao caminho que trilhamos, mesmo que seja longo e implique muito sofrimento. Foi isso que Job descobriu. Acreditar em Deus provavelmente altera o cérebro (recentes descobertas dizem isso mesmo). Durante muitos anos, acreditou-se que um crente era mais feliz do que um descrente. Curiosamente, hoje em dia os sociólogos dizem o contrário. Um descrente está liberto do peso que é acreditar em Deus, que muitas vezes aparece como uma dívida que deve ser paga ao longo da vida, tipo juros com correcção monetária. Mas quem se liberta desse peso também se liberta do sentido de Deus, isto é, da ligação entre os acontecimentos como algo divino e providencial, vendo-se como responsável número um nessa ligação. O esforço é meu, que sou ateia confessa, em ligar acontecimentos. É o que estou a fazer.






Memórias da minha infância

Lá estava ele e merece bem um texto à parte. Quando fui ao casamento da C. encontrei-o, já bem mais velho, mas a mesma cara, escondido no meio daquele populacho todo. De entre os convivas, estavam velhas caras minhas conhecidas ali do bairro, algumas distantes na minha memória, mas uma delas bem viva e presente: o Mosca. Ainda de óculos hiper-graduados (não posso gozar muito), mas sempre de sobrancelhas higienicamente rapadas e cabelo à José Cid, mas comprido, tipo anos 60, no tempo da guerra. Lembram-se do José Mário Branco novo? Assim. Cabelo escuro, muito escuro, mas, pelas minhas contas, pessoa para 70 anos. Em pequenina, a minha avó ia à sapataria do Mosca (acho que o Freitas é que era o dono, o Mosca era o empregado…a propósito, passados 20 anos soube finalmente que a criatura se chama Álvaro), e obrigava-me a experimentar (e levar) sapatos de verniz perfeitamente horrorosos, tendo como única alternativa as botas para o pé chato, que nunca usei (não faltava nesta sapataria sapatos ortopédicos, intitulados «Pés doentes»), ou sapatinhos à rapaz, que, embora mais confortáveis, eu odiava. Digo-vos, se há coisa boa no capitalismo é o facto de haver tanta variedade de roupa e sapatos hoje em dia, porque em miúda eu sofri um bom bocado com os fatos-de-treino de risca branca, os lenços na cabeça «para não morrer de meningite, que o sol mata» (sic, avó Norberta), que levou o meu irmão a chamar-me de «velha», ou, noutra variante mais acesa, «velha de merda» (em pequenina eu era a «porcaria vai-te embora, que eu não te quero ver aqui»), os sapatos apertados com fivela e as sandálias com cheiro a perfume, mas que absorviam o suor de tal forma que no final do mês matava qualquer ser humano. Na altura não havia consumismo, por isso tudo isto só seria substituído em caso de estrago irremediável. O meu irmão resolvia isso estragando as coisas sem conserto possível, mas na altura eu não era assim tão esperta e sabia que a mão da minha mãe era pesada.
Nesta altura já havia lojas de monhés e ciganos a vender na rua o que roubavam, mas não havia «lojas chinês» com roupas a granel e nem se sonhava com essa invasão.
Apesar da falta de tudo que havia nessa altura (excepto na casa da minha avó, em que havia sempre sumo de laranja, bolacha Maria, batatas-fritas cheias de óleo, arroz doce, gelatina e fruta variada, bem como sandes e tang para o lanche dos amigos), nós sobrevivíamos bem com roupa dos irmãos, roupa rasgada e cosida, sapatos furados e, no meu caso, por obrigatoriedade médica, óculos grossos que o Carlos Manuel me tentava sempre roubar. Não sei como sobrevivíamos sem telemóvel, mas ainda bem que assim era, porque não imagino o dinheiro que a minha avó gastaria em chamadas para saber onde andávamos nós.
Verdade seja dita. Éramos felizes. Mas também lixámos a felicidade a muita gente, entre eles o Mosca. O meu irmão e os amigos iam-lhe dando cabo do negócio, gritando para dentro da loja «Ó mosca!!». Se o Zé Carlos ia lá comprar sapatos ou ia aos Botões Bonitos (raio de nome para uma loja de retrosaria) a coisa dava sempre para o torto. Então se fosse o Fernando, o caldo estava mesmo entornado, porque de certeza que havia palavrões à mistura.
O Bananeiro foi outra vítima. O coitado do homem trabalhava numa mercearia à antiga, com um patrão porco e deslavado (segundo fontes da minha avó, este velho morreu a transbordar de merda pelo umbigo, melhor «imbigo», como diz ela), e não merecia a triste sorte de lhe estarem sempre a pedir «corneto de abóbora». O Caveiredo era outro desta corja. Vendia pornografia e livros da Heidi a 20 escudos, mesmo ao lado da loja do meu avô. Apesar de corneto de abóbora não estar entre aquilo que vendia, era também um produto largamente solicitado. O meu irmão furou-lhe muitas revistas da janela da minha avó.
Finalmente os bufos mais perigosos, que apareceram durante anos nas BDs do meu irmão: o Monhé, assim chamado porque era indiano e a Velha Má (assim chamada por ser velha e má). O primeiro deve ter inspirado o novo blogue do meu irmão, que dá voz a um Gandhi absolutamente incrível. É de assinalar que eu sempre fui uma pessoa muito aberta a novas raças, mas levar amigas pretas e indianas lá a casa foi sempre um fiasco. A primeira foi chamada de Branca de Neve, e a segunda…de monhé. Claro que desapareceram do mapa.
Houve outras personagens bastante bairristas que povoaram as nossas vidas, como os Fedores, que pelos vistos viviam numa comunidade poligâmica e incestuosa, com irmãos e irmãs a terem relações sexuais, mas também pais com filhos e tios com sobrinhos. O «tio Fedor» ainda foi a personagem mais fantástica porque coçava os pés à janela, mesmo em frente à varanda da minha avó (para azar dele). Durante anos apanhou com os nossos despojos: latas, pastilhas, rebuçados colados ao papel ou já metidos na boca, bolas do canudo, etc. O meu irmão tinha maior poder de alcance e ganhava-me sempre na quantidade de coisas que caíam lá dentro. Escusado será dizer que eu, quando atirava alguma coisa, ia parar à rua, mesmo.
Já a Chungosa, que vivia no prédio do Carlos Manuel (a Batalha), parecia ter uma paixão pelo Fernando. Era engraçado vê-lo a fugir dela.
Gente que trabalhou em padarias, pastelarias, retrosarias, lojas de computadores ali do bairro sofreu muito. Pobre padeira e pobre vassoureiro que estivessem no caminho, decerto ouviriam piropos pouco educados ou levariam com algum resquício de pastilha-elástica ou uma bomba de mau cheiro no Carnaval.
Na verdade, as gerações mudam. Hoje em dia somos muito menos inocentes. As coisas deixaram de ser uma revelação e as reacções das pessoas deixaram de nos interessar. Hoje em dia as brincadeiras são muito mais perigosas, com consequências nefastas, e os professores são mandados àquela parte com a facilidade de um estalar de dedos (e ainda levam pancada dos pais dos meninos). Deixou de ter piada pedir corneto de abóbora, porque hoje em dia espera-se muito mais arrogância das crianças e dos adolescentes. Se calhar até já existe corneto de abóbora e sugos de fruta sabor a melancia.


O mês de Agosto

Todos os anos eu escrevo no meu blogue alguma coisa acerca do mês de Agosto. E o que é que o mês de Agosto tem de especial? Nada. É o pior mês do ano. Antigamente Lisboa ainda ficava vazia, o que era muito bom. Mas agora está cheia de camones, espanhóis, italianos e tugas sem cheta para ir para o Algarve, apesar de já existirem férias financiadas. Tirar férias em Agosto pode ser uma coisa perfeitamente anormal, porque os portugueses abancam nas praias todos ao molho, no meio do lixo e a beber coca-cola. A visão do mundo torna-se tétrica, quando senhoras obesas exibem fatos de banho e biquinis com algo mais à mostra do que aquilo que realmente queríamos ver. Por isso levamos a FHM para a praia, para ver a Ana Malhoa a cantar o abecedário com pouca roupa e muito atrevimento. Que pensará a Vacareré disto tudo?
Em Agosto tudo é simples, porque os trolhas tiram férias e só os expeditos trabalham. Fecha tudo, e o que não é obrigado a fechar (como repartições públicas) está a meio gás e cheio de brazucas ilegais a tentarem ser atendidos primeiro.
Neste mês quente mas sempre ventoso (porcaria!, e ainda fazem festinhas de merda na praia) come-se gelados e as saladas sabem muito bem. Mas as intoxicações andam por aí, sabe-se lá porquê as pessoas apreciam bacalhau com natas neste tempo…
Os solários, o silicone e as dietas de emagrecimento metem nojo. Por isso me chateio tanto em ir à praia. Nunca se está bem. Há gordurinhas aqui, outra ali, as mamocas saiem do biquini (no meu caso é a procura de um tamanho de criança, XS). Eu cheia de problemas e tanta badocha a passear as batatas-fritas e os hambúrgueres nas coxas. O aspecto de solário também é lindo. Nunca vi tantas loiras completamente bronzeadas e de batom cor-de-rosa, mala rosa, camisola rosa e unhaca do pé pintada de rosa. Na FHM têm razão…há raparigas que nunca deveriam usar sandálias ou chinelos, porque pés feios revelam o pior de uma mulher. Será que na FHM fizeram fotoshop aos pés da Malhoa?
Restaurantes abertos é mentira. Bons, maus, assim-assim, tascas manhosas, todos pedem desculpa mas encerraram para férias. Depois venham com histórias que os restaurantes chinesas têm bichos na cozinha e comida fora de prazo, não interessa, são os únicos abertos em Agosto, e para além disso comemos porcaria todo o ano (como é que acham que se faz o fiambre? 90% é água).
Para o investigador nato, o mês de Agosto é aquele em que se dá mais uma forcinha à tese, à investigação, ao trabalho. Por isso, e contrariamente aos outros locais, a BN está sempre cheia.
O mês de Agosto é a chamada «passagem transitória» para Setembro. Não há nada para ver, não há nada para fazer. Se em Julho já começa a ser assim, Agosto é um deserto árido. Coitados de todos os meus amigos que fazem anos neste mês, porque não têm com quem comemorar…
Deve ser horrível tirar férias neste mês. O que é que se faz? Vai-se para a praia apanhar com areia na cara e tomar banho na urina dos outros? Fica-se em casa com ar condicionado? Vai-se à biblioteca? Vê-se filmes? Só pode.


O que me custa

O talento é uma coisa espantosa. Mesmo que não nos enquadremos nos 100 mais cromos do mundo, é bom sabermos cozinhar bem, bordar, pintar, tocar, aprender línguas, lidar com as pessoas. Infelizmente, só serve para sermos admirados, porque neste mundo utilitarista raramente há emprego para artistas, excepto a corja hollywoodesca, que é tão rica tão rica que paga cada milímetro do corpinho que tem. É muito bonito ter talento. E inútil.
Regra geral as pessoas são avaliadas por métodos supostamente objectivos, como exames e orais, ao longo da vida, que lhes definem uma nota. Por vezes somos suficientemente patetas para achar que essa nota somos nós, que o nosso cérebro bem esprimido dá aquilo. E não tem nada a ver. Desde quando as pessoas podem ser avaliadas em função de uma nota?
Há pessoas tão imaginativas que transcendem qualquer nota. Das pessoas que fazem parte do meu círculo de amigos, são muito raras as que se formaram com notas brilhantes. Sou da opinião, um pouco estereotipada também, que de 17 para cima não há diálogo possível a manter. As pessoas já sabem tudo, mas têm uma escassa flexibilidade para se adaptarem a coisas simples e raramente têm lata, que também é muito útil em diversas circunstâncias.
Em termos profissionais é ainda mais difícil sermos avaliados por uma nota. Quem me diz a mim que não há tipos que copiaram a vida toda para ter boas notas? Quem me diz a mim que não há tipos que, embora encham uma pauta, não são capazes de falar ao telefone? No entanto, vejamos quem tem os empregos mais bem pagos: os tipos brilhantes e os sacanas. Pessoas que sabem o que eu sei, com as minhas escassas qualificações e muita imaginação não têm grande utilidade. Eu tenho emprego e acho que é quase milagre. Como não acredito em milagres, deve ser sorte. Mas eu estava bem era a escrever argumentos em Hollywood. É que bastava a minha vida…
A minha inteligência tem uma coisa boa: não é enfadonha. Não sei tudo, não digo que sei tudo, não me armo aos cágados, apenas fantasio com o que tenho. Mas também tenho de ser franca: adorava ser brilhante. Para já, se eu tivesse boas notas, metade dos meus problemas de emprego estavam resolvidos: eu tinha colocação numa escola ou podia, enfim, pedir bolsa de doutoramento (que me deve estar vedada por ser burra e ter más notas…). Está bem que nunca seria rica. Mas para se ser rico, é mais a onda da sacanice ou do casamento por dinheiro. Só que eu armo-me em parva, tenho a mania dos valores morais, como se isso me levasse a bom porto. Por isso vou morrer pobre. O esforço vai todo para fazer o que gosto, não para ganhar rios de dinheiro.
Sou uma tipa ambiciosa, do ponto de vista académico. Quero doutoramentos, pós-doutoramentos, adorava ser jubilada (já não vou a tempo, a menos que morra aos cem anos). Só que sou pouco realista. Ou melhor, sou realista, se não não escrevia o que vou escrever agora: nada disso dá dinheiro. É uma merda gostarmos daquilo que põe o bolso vazio: um doutoramento paga-se, e paga-se bem…
Na vida, temos de arranjar consensos entre aquilo que gostamos e o que nos permite sobreviver. Mas eu recorro mais uma vez à Ophra, que diz sempre que quando queremos, de facto, uma coisa, até servimos às mesas para fazer isso. E ela não estava disposta a servir às mesas. E se calhar eu também não estou, a menos que o restaurante seja meu. E olhem que um restaurante dá dinheiro…
Agora o que mais me custa, na sociedade: custa-me a quantidade de tias toscas que trabalha na Câmara Municipal de Lisboa por serem amigas do Carmona Rodrigues (a palavra competência ganha um novo significado, no caso delas), custa-me as pessoas burras que fazem mestrados à conta dos colegas e dos namorados (existe, juro!), e se acham ultra-especiais e inteligentes, custa-me as pessoas arrogantes em cargos hierárquicos superiores (nunca se sabe onde está a competência delas, porque a falta de sentido de humor e a mesquinhez são superiores a tudo), custa-me as colegas idiotas que não sabem escrever português mas são professoras de português (e às vezes de francês, de inglês, de história…), custa-me que ainda achem que ter emprego é «ser médico, engenheiro» (até já excluíram os arquitectos e os advogados, porque esses não têm emprego e estão em call-center, também, juntamente com os professores, os biólogos e – pasme-se! – até os farmacêuticos), custa-me os empregos em que ninguém se pode levantar para ir fazer xi-xi, porque se o fizer é «incompetente e preguiçoso», custa-me as pessoas que são boas pessoas, mas isso é que não são de certeza, custa-me que me mandem ter filhos e não haja emprego/carreira compatíveis (e eu não me apeteça nada ter filhos), custa-me as pessoas da função pública que são competentes, mas completamente esquecidas e desprezadas (e, ao contrário, custa-me as outras que se apoiam nestas, mas não fazem a ponta de um corno e querem uma promoção quando chegam à menopausa), custa-me o desprezo geral pela cultura, pela investigação (temos de ir todos lá para fora, a ver se percebem que os portugueses existem e alguns até são inteligentes), pela história, e, acima de tudo, odeio o falso nacionalismo da bandeirinha na janela, porque farto-me de ouvir «eu queria era ser espanhol e viver em Espanha». Então se querias ser espanhol e viver em Espanha, seu palhaço português, arruma as tuas tralhas e vai-te embora, meter a gasolina mais barata no carro porque não sabes andar de transportes públicos!! Tanto nacionalismo bacoco dói-me nesta alma de fadista sem voz, porque acho que comentários destes, no tempo do Salazar, levavam à forca. E esqueci-me de dizer: custa-me tanto as pessoas andarem de carro e queixarem-se que têm o cu gordo. Depois vão ao ginásio e param o carro mesmo mesmo à porta, porque se for um bocadinho mais longe têm de «andar muito». A seguir vão andar na passadeira durante uma hora para «queimar calorias»…Faz sentido??? Por favor, não me mandem mais conduzir, que isso também me custa.